Ciências Humanas e Sociais
Perspectivas 2010: da crise ao pós-capitalismo
Parte da esquerda tradicional está, em várias partes do mundo, desencantada e deprimida com os desenvolvimentos da crise financeira internacional. Ela não resultou, ao contrário do que alguns acreditavam, numa implosão do sistema capitalista. Nas economias mais atingidas, os efeitos dolorosos tendam a se estender — desemprego e empobrecimento, em especial. Mas a ação dos Estados evitou tanto um drama social maior quanto uma série devastadora de falências em dominó (que parecia possível, no final de 2008). Teria sido mais uma “oportunidade perdida”.
No nascer de um novo ano, vale a pena temperar este pessimismo com alguns sinais no sentido oposto. Eles indicam que a grande batalha em torno da crise está apenas começando. E sugerem que, em vez de um desfecho mítico, pode iniciar-se uma etapa de grandes incertezas e instabilidade, mas também de enorme abertura para a construção de alternativas aos valores e às lógicas sociais vigentes. Em outras palavras, pode surgir um cenário em que o sistema predominante nos últimos séculos ainda se mantém — e no entanto é possível construir, de modo muito mais acelerado, relações pós-capitalistas.
O primeiro dado é uma vasta pesquisa internacional encomendada pela BBC, para sondar a percepção das populações mundiais sobre o capitalismo. O estudo foi conduzido no segundo semestre de 2009. Desdobrou-se em 27 países, onde foram ouvidas nada menos 29 mil pessoas (pelo instituto Globescan), num esforço para obter uma mostra da diversidade cultural e política do planeta. Seus resultados apareceram em novembro, por ocasião do 20º aniversário da queda do Muro de Berlim. São impressionantes, mas a mídia brasileira praticamente os ignorou. Duas décadas após o acontecimento apontado à sua época como o triunfo definitivo das sociedades de mercado, ou como o “fim da História”, a BBC constatou que apenas uma pequena minoria concorda com a tese essencial dos neoliberais então vitoriosos: para 11% dos entrevistados o capitalismo “funciona bem”, e as tentativas de submetê-lo a controles sociais ou estatais vão “torná-lo menos eficiente”. A impopularidade é global: em apenas dois países (Estados Unidos e Paquistão), entre os 27 sondados, a aprovação sem ressalvas ao sistema chega a ultrapassar 20% dos entrevistados.
O imenso grupo dos que desejam mudanças divide-se em dois blocos. Para 51% dos ouvidos pela BBC/Globescan, o capitalismo “tem problemas, que podem ser resolvidos por meio de regulações e reformas”. O sentido das mudanças pretendidas por esta maioria é nítido: os governos precisam “regular a economia de modo mais vigoroso” e “distribuir riquezas mais intensamente”. Há, por fim, um terceiro grupo considerável, que deseja ir ainda mais longe. Para 23% dos que responderam à enquete, o capitalismo “está irreparavalmente condenado, e um novo sistema econômico é necessário”. O percentual é duas vezes maior que o dos satisfeitos com o status-quo. E avança, em certos países: chega a 43% na França, 38% no México, 35% no Brasil e 31% na Ucrânia.
Os dados são notáveis, ainda mais se comparados com uma sondagem feita poucos anos antes. Em 2005, o mesmo Instituto Globscan verificou, ao ouvir populações de 20 países, que 63% viam o capitalismo como “o melhor sistema possível”. Que conclusões tirar da pesquisa — em especial ao cotejá-la com o sentimento de pessimismo que contamina parte da esquerda mundial?
É muito interessante examinar, a este respeito, o curto — porém profundo, denso e inspirado — resumo que o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein redigiu para a intervenção que fará num capítulos do 10º Fórum Social Mundial (FSM) 2010. Entre 25 e 29 de janeiro, Wallerstein estará em Porto Alegre, onde ocorrerá, entre outras atividades, o seminário “Dez anos depois”. É uma tentativa de balanço da primeira década de existência dos fóruns altermundistas [O primeiro FSM ocorreu em janeiro de 2001; veja mais informações sobre o FSM-10 nos posts abaixo].
O resumo de Wallerstein [ler original, em inglês] afirma, grosso modo, três idéias fortes e não-usuais. Primeira: ao contrário do que pensa a quase totalidade dos economistas e analistas políticos, a crise financeira não está se dissipando. Ao contrário: ela deverá provocar, em breve, a explosão dramática de uma nova bolha — a das dívidas soberanas dos Estados, em especial o norte-americano. Explica-se: a onda de pânico gerada a partir de meados de 2008, nos mercados financeiros, levou boa parte dos investidores a aplicar em papéis emitidos pelos Estados, e considerados mais seguros. Na maior parte dos países (o Brasil é uma rara exceção), as dívidas públicas dispararam, tanto por este motivo quanto pelo enorme esforço realizado no salvamento dos bancos e na ressurreição das economias. Em algum momento, não distante, os investidores desconfiarão que os Tesouros são incapazes de honrar tal dívida e passarão a pressioná-los.
Wallerstein prossegue: os Estados Unidos, centro da crise e maior devedor do planeta, serão os mais atingidos, o que acarretará dois processos de dimensões globais. O dólar sofrerá forte desvalorização (devido ao número crescente de investidores interessados em livrar-se de títulos emitidos pelo Tesouro norte-americano), podendo perder sua condição de moeda de circulação internacional. Isso retrairá os investimentos internacionais, devido aos riscos de grandes prejuízos, em consequência de oscilações muito fortes entre as moedas. E o enorme poder geopolítico dos EUA, já fortemente tensionado no Iraque e Afeganistão, declinará rapidamente, já nos próximos cinco anos.
O texto não abre espaço para triunfalismos vazios — e aqui vem sua segunda idéia essencial. Nada garante, frisa o autor, que um planeta com os Estados Unidos e o dólar mais fracos será, automaticamente, melhor que o atual. Em várias partes do mundo, forças ultra-conservadoras, intolerantes e violentas lutarão para ocupar o espaço aberto por este declínio. É o caso dos próprios EUA, onde Wallerstein prevê “demonização de Obama (acusado de traição)”, criação de milícias de extrema-direita e mesmo pressão para intervenções militares. Mas, também, da Europa (os sinais de direitização e de xenofobia se multiplicam) e do Oriente Médio (a retração dos EUA pode abrir caminho para o controle do Afeganistão pelo Talibã, um golpe militar pró-fundamentalistas islâmicos no Paquistão e um ataque militar de Israel contra o Irã, com efeitos imprevisíveis).
Entre os desdobramentos positivos, Wallerstein elenca a provável redefinição dos espaços geopolíticos no mundo, com o vazio da retração norte-americana abrindo espaço para uma ordem mais multilateral. A Europa Ocidental tenderia a voltar-se para Leste e ampliar laços com a Rússia. China, Japão e Coréia buscariam uma aproximação difícil, mas necessária para consolidar um bloco de poder no Oriente. Na América do Sul, poderia surgir um terceiro bloco, “liderado pelo Brasil” e obrigado a enfrentar, entre outros desafios, “múltiplas tentativas de golpes de direita”.
A terceira idéia forte e inovadora do texto é sua visão sobre as batalhas “de médio prazo”: as que se concluirão em 15 ou 25 anos, se darão “não entre Estados, mas entre forças sociais presentes em todo o mundo”, e serão determinantes para definir o desenho do mundo pós-crise. Para Wallerstein, o tema relevante, ao contrário do que supõe parte da esquerda, já não é saber “se será possível ou não acabar com o capitalismo” — mas “organizar-se para o sistema seguinte”, que “estará em processo de construção”.
É que a crise, sugere o autor, levará as próprias classes hoje poderosas a buscar sua própria alternativa. “Os grandes controladores do capital reconhecerão abertamente a impossibilidade de acumulação futura” e adotarão “a busca ativa de modelos sistêmicos que lhes permitam conservar as três características essenciais do atual: hierarquização, exploração e polarização”.
Wallerstein frisa, como conclusão: é preciso afastar, também aqui, as visões mistificantes. “A História não está do lado de ninguém… O resultado final [da batalha] pode ser um sistema muito melhor ou muito pior que o atual sistema-mundo capitalista. O essencial será (1) alcançar lucidez analítica, (2) acompanhada de escolhas morais fundamentais e de (3) ação política inteligente e efetiva. Não será nem um pouco fácil”.
É um alerta, com alguns tons dramáticos. Mas sugere liberdade: o futuro não virá de uma implosão mágica, provocada pela crise; nem estará comprometido, se ela deixar de ocorrer. Em 2010, e em todos os anos seguintes, ele está em nossas mãos.
*Reflexões a partir de uma pesquisa global da BBC e uma contribuição de Immanuel Wallerstein ao Fórum Social Mundial 2010
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