Arte da imperfeição
Jacyntho Lins Brandão
Arduíno Bolivar foi erudito jurista, professor, escritor e tradutor mineiro, cuja biblioteca era singular: por economia ou simples idiossincrasia, mandava ele encadernar os livros em volumes que ajuntavam mais de um. Assim, cada lombada escondia duas, três ou até quatro obras diferentes. "Três Tragédias Gregas" poderia bem pertencer à biblioteca de Arduíno Bolivar. De um lado, porque ajunta, num único, muitos livros. De outro, porque sob um título comum o leitor encontrará não três, mas três vezes três tragédias.
Os apressados perderão o que há de interessante, se forem só em busca do que o título promete. A primeira pista está na capa, em que constam como autores Guilherme de Almeida e Trajano Vieira, e não Ésquilo e Sófocles. É que está em foco a chamada "tradução poética", vulgarizada por Haroldo de Campos sob o nome de "transcriação". É ela que propicia o milagre da multiplicação. De início, na bela "Antígone" de Guilherme de Almeida, de que se reproduz parte do manuscrito e das notas do poeta, além do texto impresso. Depois, vem de chofre o original de Sófocles. Logo a seguir, o "Prometeu Prisioneiro" e o "Ájax" de Trajano Vieira. Quando parece bastar que a promessa de três sejam cinco, entra em cena Haroldo de Campos, com "O Prometeu dos Barões", que traz longos trechos do "Prometeu Acorrentado" do Barão de Paranapiacaba e uma única, mas preciosa, página do manuscrito do "Prometeu Encadeado" de D. Pedro 2º. A conta porém não pára em sete, pois ainda se lê, na íntegra, o "Prometeu Acorrentado" de Ramiz Galvão, seguido de estudo de João Ribeiro, que confronta a tradução brasileira com a francesa de Puech e a italiana de Bellotti. Já são oito, quase dez -mas ainda há mais: o trecho inicial da "Antígone" de Hoelderlin e da "Antígone de Hoelderlin" de Haroldo de Campos. E assim três se tornam seis, nove, doze!
Convém portanto estar preparado para enfrentar um volume que, à primeira vista, parece desorganizado, como aqueles velhos manuscritos onde se iam ajuntando obras ou parte delas enquanto houvesse espaço para o copista escrever sobre o papiro ou pergaminho. Retirando-se a tradução do "Ájax", há nele um compacto livro sobre "Prometeu" e um outro sobre "Antígone". A primeira pergunta então seria: por que não publicar três livros, facilitando a vida de leitores e bibliotecários? A resposta poderia ser que não se trata de três tragédias, mas da celebração da própria poética da tradução -o que cada um terá de descobrir por si, ora surpreendido com iguarias completas, ora com simples aperitivos, como no caso do "Prometeu" do imperador. Nesta festa de Babete que parece não ter fim, só não se sabe que papel cabe à água pura do grego de Sófocles, aliás reproduzido sem indicação da fonte. Se a idéia era permitir o confronto com a tradução de Guilherme de Almeida, por que o texto grego não foi posto defronte do português? E por que não se serviu também a carne crua do "Prometeu" e do "Ájax" na língua original?
Seriam falhas menores. Entretanto, a apreciação do trabalho de Guilherme de Almeida exige a identificação do texto grego que lhe serviu de base. Não foi decerto o que se reproduz em "Três Tragédias". Isso é fácil de constatar, já que a disposição métrica de parte dos cantos corais difere das opções do tradutor, mais próximas das adotadas por outros editores. Assim, o elogio ao amor -"e vogas sobre o mar e pelas agrestes choupanas"- foi vertido num único verso (e não em dois, como na edição grega publicada). O mesmo repete-se em vários pontos.
Em geral, creio que para o presente trabalho vale a máxima do inca Garcilaso de la Vega, quando, descrevendo as antiguidades de seu povo para os conquistadores espanhóis, afirmava que toda comparação é odiosa. Em "Três Tragédias" cada tradução tem sua perfeição interna, não sendo portanto comparável com outras. Em tudo são primorosas. As várias do "Prometeu" que aí estão servem bem de exemplo, inclusive no confronto com as que aí não estão, como a inspirada de Jaa Torrano. Não é preciso ressaltar as consagradas qualidades da "Antígone" de Guilherme de Almeida. Baste lembrar que se trata de um poeta traduzindo outro poeta. Trajano Vieira é sempre sensível aos efeitos do texto, na linha de Haroldo de Campos. Tudo isso confirma que traduzir supõe exercício de criação. Se houvesse correspondência perfeita entre línguas e culturas, não precisaríamos de tradutores, apenas de computadores. No fundo, essa é a nossa vantagem: a imperfeição.
É por isso que uma boa solução sempre envolve perdas. No "Ájax", o maior desafio está no nome grego do herói: "Aias". Sófocles explorou os efeitos de sua aproximação com "aiai", interjeição de dor, correspondente ao verbo "aiázein", "lamentar-se", "gemer", termos frequentes na língua dos trágicos. O poeta entretanto vai além, ao fazer o próprio "Aias" gemer "aiai" e perguntar quem poderia supor que seu nome ("ónoma") viesse a incluir o "epônimo" de seus males ("kakois"), motivo por que pode ele "dizer aiai" ("aiázein") duas e três vezes, já que aqueles males ("kakois") lhe advêm. Trajano Vieira obteve bela solução: "Ájax jaz. Quem diria que meu nome/ se ajustaria assim aos infortúnios?/ Acrescento aos dois termos um terceiro:/ já!, que tamanha é a urgência de meus males". Desse modo, resolveu bem o eco de "Aias" em "aiai" e "aiázein" -fazendo ressoar "Ájax" em "jaz" e "já". Mas perdeu o eco de "epónimon" em "onoma" e a enfática repetição de "kakois".
Mais ainda, Sófocles preparou essa aproximação mediante a repetição de ditongos, cujo efeito o tradutor abandonou. O verso 335, em que Ájax exclama "ió moi moi", foi traduzido por um insosso "desgraça" (não seria melhor algo como "ai Ájax"?). Em 339, "ió pai pai" foi vertido só como "filho" (não poderia ser "ai filho de Ájax"?). Em 370, um "aiai aiai" na boca do herói transformou-se em "dor imensa" (por que não reiterar o belo "Ájax jaz"?). E assim por diante.
Nem a perícia de Guilherme de Almeida escapa. Deve haver solução melhor para a famosíssima abertura do primeiro estásimo: "Pollà tà deinà koudèn anthrópou deinóteron pélei". Se "muitos milagres há, mas o mais portentoso é o homem" responde bem às exigências rítmicas, sacrifica o sentido, transmitindo uma visão otimista. O núcleo do enunciado é "deinós", que qualifica o que é grandioso e ao mesmo tempo temível (conforme a raiz de "déos"). O sentido então seria: "Muito de terrível há, mas nada mais terrível que o homem". Ainda compelido pelo ritmo, o poeta introduz no verso seguinte um "sorrindo" ("Ele, que singra o mar sorrindo...") que não existe em grego e reitera um otimismo alheio a Sófocles. Como afirma Walter Jens -num instigante diálogo em que põe em cena Sófocles debatendo com Brecht sobre a "Antígone"- , "deinós" deve ser entendido como "ungeheuer" ("monstruoso", conforme a tradução de Hoelderlin) e não como "gewaltig" (poderoso), que costuma ser a opção comum. Ele justifica dizendo que o homem é "deinós" "exatamente no duplo sentido de grande e de não confiável", concluindo: "Justamente isto é o homem -justamente isto é Creonte: grandioso como senhor da natureza, lúgubre em sua ambivalência moral".
É provável que o maior mérito de "Três Tragédias", ao confrontar boas e belas traduções, seja mostrar como o próprio trabalho de traduzir é "deinós": exigentemente perfeccionista na consciência de sua ambivalente imperfeição. No fundo, portanto, algo muito humano. Alguém imaginaria Deus traduzindo seu linguajar absoluto? Certamente não, pois lhe faltaria arte na medida em que lhe sobra perfeição. Entre nós, todavia, enquanto houver talento e algo em que escrever, a tradução persistirá como talvez a mais humana das artes. Arte da (im)perfeição.
Jacyntho Lins Brandão é professor de língua e literatura grega da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Folha de São Paulo
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