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Ciências Humanas e Sociais

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O poeta em seu ateliê

João Alexandre Barbosa

Se, no futuro, se fizer uma coletânea que procure dar conta do que foi a reflexão poética em nosso tempo, não tenho dúvida que estes textos de Ponge hão de figurar como um dos capítulos mais importantes. Mesmo que isso não venha a acontecer, dadas as fragilidades que sempre existirão nos julgamentos críticos, é já uma prova de grande perenidade sua leitura depois de mais de 50 anos de suas primeiras publicações.
Na verdade, embora tenha publicado seu primeiro volume de poemas, os "Douze Petits Écrits", em 1926, foi somente com o aparecimento de "Le Parti Pris des Choses" (1942) que Ponge atraiu um número maior de leitores -Philippe Sollers, escolhendo testemunhos críticos para a primeira obra, no volume correspondente a Ponge da coleção "Poètes d'Aujourd'hui" (Seghers), relacionou apenas Jean Hytier e Bernard Groethuysen. Já nos anos 40 e 50, a colheita é mais rica: aí estão os textos de Sartre, Camus, Blanchot, Magny, E. Noulet, A. Rousseaux, Max Bense, como provas de uma recepção de alto nível, a que se juntam outras vozes na "Hommage à Francis Ponge" (Nouvelle Revue Française, 1956).
Nos anos 60, quando o li pela primeira vez, havia uma espécie de presença intelectual do poeta, sobretudo em torno daqueles grupos que se formaram a partir da criação de revistas como "Poétique" e "Tel Quel". (Assinale-se que, já em 1962, Haroldo de Campos publicava um texto de imprensa sobre o poeta, a que se seguiria uma tradução, em 1969, do poema "L'Araignée", ambos hoje fazendo parte de "O Arco-Íris Branco", Imago, 1997.) Tudo para culminar, em termos de recepção crítica, nos anos 70 e 80, com duas publicações: o número especial de "Books Abroad" (University of Oklahoma, 1974) e os "Cahiers de l'Herne" (1986), dois anos antes da morte de Ponge. (Assinale-se ainda que é de 1961 a magistral homenagem que lhe foi prestada por João Cabral no poema "Sim Contra o Sim".)
É este o poeta que, mais de meio século depois, tem alguns de seus textos mais teóricos publicados no Brasil e, pelo que sei, já se anuncia uma tradução de uma de suas coletâneas de poemas. Na verdade, além da referida tradução de Haroldo de Campos, lembro apenas das de Júlio Castañon e Leda Tenório da Motta para uma publicação sobre o poeta editada pela "Revista USP", em 1989, onde comparece apenas um texto de "Méthodes", um fragmento de "My Creative Method", com que se abre a seleta agora publicada. Porque se trata disso: de uma escolha de seis textos, baseada numa edição da Gallimard de 1971, dentre os 18 que compõem a edição original da obra, o segundo tomo de um conjunto intitulado "Le Grand Recueil", incluindo ainda "Lyres" e "Pièces". A escolha me parece a melhor possível, embora eu gostasse de ver incluído o "Entretien avec Breton et Reverdy" (1952), na medida em que a participação de Ponge é fundamental para acentuar sua singularidade na poesia francesa do momento. De qualquer modo, traduzidos e introduzidos por Leda Tenório com extraordinária competência, os textos desta antologia são suficientes para dar ao leitor brasileiro o perfil daquela singularidade. E onde está ela?
Antes falei de "textos mais teóricos" de Ponge. Faço uma correção: sendo textos surgidos de uma reflexão explícita sobre a atividade poética, apenas na superfície das presumidas intenções (conferências, entrevistas, textos reflexivos) parecem distintos daqueles que compõem os volumes de poemas. Isto porque a escrita de Ponge não somente rasura as distinções tradicionais entre os gêneros, mas é precisamente uma arma afiadíssima de desestruturação das relações pacíficas entre subjetividade e objetividade. Neste sentido, os aspectos teóricos dos textos não estão assentados em serenas objetividades, sendo antes convergências ocasionais dos experimentos que realiza com as possibilidades da palavra. É como se, entre o teórico e o poeta, o pequeno intervalo fosse eliminado pela própria linguagem que o nomeia normalmente. Nem o poeta é um teórico, nem o teórico é um poeta, porque nenhum dos dois está configurado antes do próprio movimento que é a linguagem com que são identificados.
Difícil, portanto, falar em "textos mais teóricos": para F. Ponge parece não haver poema onde não há a incerteza das relações entre linguagem e realidade que, por sua vez, desencadeia as reflexões provocadas pelo desejo de substituí-la pelo mínimo domínio da nomeação. Daí, provavelmente, aquele singularíssimo tratamento pongeano das relações entre sujeito e objeto, assim formulado por Italo Calvino em 1979: "Diremos que em Ponge a linguagem, meio indispensável para manter juntos sujeito e objeto, é continuamente confrontada com aquilo que os objetos exprimem fora da linguagem e neste confronto é redimensionada, redefinida -frequentemente revalorizada".
Não há maior objetividade: a expressão dos objetos "ora da linguagem" é a maneira mais radical, sem dúvida, de afirmar a sua existência sem o homem e a mulher, seres de linguagem. Não se pense, todavia, em alguma forma de mitificação do objeto. De uma ou outra maneira, os textos deste volume dizem o que está na conferência "A Prática da Literatura", também incluída na coletânea: a criação artística como possibilidade quase agônica de estabelecer um diálogo entre os dois mundos sem que ao artista seja dado o benefício da "humanização" das coisas. A sua "humanidade" está em ser capaz de instaurar coisas (os poemas, as obras de arte) entre coisas, utilizando-se das mesmas palavras, das mesmas velhas tintas, dos mesmos velhos potes compartidos por seus semelhantes. Ou, como diz o próprio poeta: "Pelo simples fato de querer dar conta do conteúdo inteiro de suas noções, eu me deixo puxar, pelos objetos, para fora do velho humanismo, para fora do homem atual e para a frente. Acrescento ao homem as novas qualidades que nomeio". Não são, portanto, qualidades encontradas, mas nomeadas: por entre os intrincados significantes dos mundos mineral, vegetal ou animal, a sensibilidade de Ponge -uma sensibilidade não somente para os significados, mas sobretudo para aqueles significantes- encontra uma maneira de nomeação que não tem nada a ver com solipsismos ou animismos disfarçados, pois a significação não parece ser seu destino.
Deste modo, Camus foi certeiro na apreciação da obra de Ponge: "Penso que o "Parti Pris' é uma obra absurda em estado puro -quero dizer que ela nasce, conclusão tanto quanto ilustração, na extremidade de uma filosofia da não-significação do mundo". A poesia, como está dito num admirável texto da coletânea, é como um murmúrio que se ouvisse entre mudos. Um murmúrio que resultasse das sutis relações entre diferença e semelhança que caracterizam a existência do homem, da mulher e da natureza. Mais uma vez o próprio Ponge: "Pois a obra de arte retira toda sua virtude a um só tempo da semelhança e da diferença em relação aos objetos naturais. De onde lhe vem essa semelhança? Do fato de ser feita, ela também, de uma matéria. Mas e a diferença? De uma maneira expressiva, ou tornada expressiva na ocasião... Expressiva, o que quer dizer isso? Que ela acende a inteligência (mas deve apagá-la logo em seguida). Mas quais são os materiais expressivos? Aqueles que já significam alguma coisa: as linguagens. Trata-se unicamente de fazer com que não signifiquem muito mais do que funcionem".
Por isso, para ele, o artista não é um mago, e sua função é muito clara: "Ele deve abrir um ateliê e tratar de consertar o mundo, por fragmentos, como ele aparece. (...) Reparador atento da lagosta ou do limão, da colméia ou da compoteira, aí está o artista moderno. Insubstituível em sua função". A primeira frase do livro é uma alusão ao início do "Monsieur Teste", de Valéry, e o que se recusa não é a tolice, mas as idéias e, por aí, como o leitor verá com o prosseguimento da leitura, uma adesão ao famoso dito de Mallarmé, o verdadeiro tronco de onde brota Ponge; mais adiante, vai ironizar o absurdo e a atualidade de Camus, assim como se distanciar dos caligramas de Apollinaire.
Na verdade, sem ostentar erudição, os textos deste livro conversam com o que de mais decisivo surgiu da reflexão moderna sobre poesia, a ela acrescentando uma voz que sabe, antes de mais nada, conversar com os fragmentos de uma linguagem de nomeação do mundo. Uma poética do murmúrio.
João Alexandre Barbosa é professor de teoria literária e literatura comparada da USP e autor, entre outros, de "A Metáfora Crítica" (Perspectiva) e "A Biblioteca Imaginária" (Ateliê).

Folha de São Paulo



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