Silêncio corrosivo
Murilo Marcondes De Moura
A relação dos melhores poetas ocidentais dos últimos dois séculos acusaria, certamente, uma preponderância francesa. Mas essa lista seria também um grande obituário. Para um poeta francês atual, deve ressoar com maior concretude a famosa frase de Marx: "A tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos".
Por esse fato, a antologia "Poetas de França Hoje (1945-1995)" traz consigo as marcas tanto da elegia como do júbilo. Elegia, pelo reconhecimento de uma notável perda de poder de irradiação da cultura e da poesia francesas; júbilo, pela convicção de que essa perda é antes de ressonância imediata que de vigor efetivo.
A proposta do livro (cujo título homenageia a famosa antologia de Guilherme de Almeida) é fornecer, dentro do recorte proposto, um mostruário de grande abrangência. Trata-se de reunir, dos últimos 50 anos, o que de melhor produziram 30 poetas, divididos cronologicamente em três grupos.
Há aqui uma mescla heterogênea de datas, atitudes, propostas e dicções. O poeta mais velho nasceu em 1898, o mais novo em 1963; alguns começaram em plena vigência do surrealismo, outros quando este já havia sido decretado há muito "um cadáver". Há os que foram tocados fundamente pela experiência da guerra e pelo ardor ideológico, e outros que consideram a história uma "dama agitadíssima", de quem se deve, por princípio, desconfiar.
Quase todos os poetas do primeiro grupo ainda serão familiares ao leitor brasileiro: principalmente Henri Michaux (um tanto deslocado do conjunto), mas também Yves Bonnefoy, Alain Bosquet e Jean Tardieu. Alguns do segundo grupo devem ser conhecidos sobretudo pela sua militância em revistas que fizeram época (como "Action Poétique" e "Tel Quel"), ou pela produção ensaística: Jacques Roubaud, Michel Deguy, Henri Deluy, Denis Roche, Henri Meschonnic etc. Já os do terceiro grupo são, em sua absoluta maioria, desconhecidos nossos: Alfieri, Cadiot, Beno?t-Conort, Guy Goffette, Jean-Michel Maulpoix, Anne Portugal...
Todos estão saturados de cultura: professores, críticos, tradutores, editores ou redatores de revistas etc., demonstrando que a inserção profissional dos poetas segue alguns roteiros inevitáveis (o mesmo ocorre, diga-se de passagem, na poesia brasileira atual) e, quem sabe, de consideráveis consequências para as obras.
As dificuldades encontradas por Mário Laranjeira não devem ter sido pequenas. O leitor talvez possa avaliá-las, imaginando uma tarefa análoga para a poesia brasileira do mesmo período. Mas, se o arbitrário espreita os realizadores de antologias, pelas inevitáveis omissões, pelos critérios instáveis de consagração e de representatividade, deve-se louvar, no caso do curador dessa antologia, o trabalho escrupuloso e competente.
Tomem-se, como exemplo, as notas introdutórias a cada um dos poetas, breves e discretas, mas que pressupõem muito estudo: além da leitura das obras, da fortuna crítica dos autores e das linhas gerais da poesia francesa do período escolhido, o cotejo com antologias francesas e internacionais e, por vezes, a consulta direta aos poetas.
O mesmo pode ser dito das traduções, que são antecedidas de uma explicação igualmente sem nenhuma afetação, fácil de formular e difícil de executar, inspirada na "semanálise" de Kristeva, mas também com bom senso e bom gosto. Mário Laranjeira deve ter uma história longa de leitura de poesia, e mostra-se pleno de recursos para enfrentar uma tarefa tão complexa. A variedade de registros apresentada pelos poetas escolhidos, que vão desde o aproveitamento da poesia popular ao experimentalismo mais exacerbado, exigiu do tradutor, além de generosidade, conhecimentos sólidos de poética e, naturalmente, não apenas da contemporânea.
A posição de tradutor, programaticamente assumida por Mário Laranjeira, é, ao mesmo tempo, de apagamento e de presença forte, de discrição e de incrível atenção para o detalhe. Concordo com Nelson Ascher, quando este afirma que as traduções são "impecáveis", mesmo quando... pecam. O fato é que algumas soluções sempre poderão ser contestadas, seja por algumas inversões (pág. 241, verso 3), ou ambiguidades (pág. 34, versos 7 e 8; pág. 43, verso 1; pág. 415, verso 5; pág. 422, verso 6), ou mesmo pelas inevitáveis licenças (como em "O Poeta e o Poema", de Bosquet, e no final de "Ao Mestre", de Jacques Réda), mas são ninharias diante do êxito final.
Mário Laranjeira insiste na "ausência de qualquer princípio centralizador" na poesia francesa desde 1945, a ponto de diferenciá-la, nesse aspecto, de uma extensa tradição francesa -de Du Bellay aos surrealistas, que continham propostas agregadoras. Contudo, não deixa de discernir, em várias passagens, duas linhas de força básicas, como também algumas características partilhadas pela maioria dos poetas antologizados: o "lirismo existencial" e o "silêncio corrosivo", e em ambos uma tendência à abstração e à opacidade.
Em relação a esse último aspecto, a lírica francesa posterior a 1945 não foge a uma tendência internacional: um retraimento bastante intenso da linguagem poética, constrangida a lidar apenas consigo mesma, num jogo arriscado em que se misturam a negatividade autêntica e a esterilidade, o refinamento e a perda de vitalidade.
Isso conduz, afinal, à questão delicada do valor dos poemas presentes na antologia. Aqui outra vez a antologia surpreende positivamente. Mesmo deixando de lado os poetas do primeiro grupo, já muito mais consagrados, podem ser destacados vários momentos de enorme qualidade. Entre eles, alguns poemas de Jacques Roubaud -"No Espaço Mínimo", "Esta Fotografia, Tua Última", "Não-Vida", escritos a partir da morte da mulher; o "Fragmento do Cadastro", de Déguy, sobre o holocausto; "Ciúme" e "A Gente Diz...", de Goffette; a bela abertura de "Escrito na Alva", de Maulpoix, assim como o poema "Aqui Se Malha o Ferro". Nem sempre a radicalidade adotada por alguns é convincente; de Cadiot, por exemplo, acho mais feliz o despojamento de "Romeu e Julieta", curioso libreto de ópera para o importante compositor francês da mesma geração, Pascal Dusapin.
Não quis me furtar a essa brevíssima seleção, pessoal e discutível, para solidarizar-me, de algum modo, com esse empreendimento excelente de Mário Laranjeira, merecedor de todos os elogios.
Murilo Marcondes de Moura é professor de literatura brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Folha de São Paulo
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