Eis alguns excertos da prosa diarística de Miguel Torga:
Coimbra, 16 de Junho de 1947 – Sobretudo, não desesperar. Não cair no ódio, nem na renúncia. Ser homem no meio de carneiros, ter lógica no meio de sofismas, amar o povo no meio da retórica.
Coimbra, 5 de Abril de 1948 – Creio que não é preciso. Em todo o caso, fica aqui a declaração.
O que eu fui sempre, o que eu sou, e o que serei, é um artista, um homem e um revolucionário. Na medida em que sou artista, quero um mundo onde a beleza seja o vértice da pirâmide. Na medida em que sou homem, quero que nesse mundo os indivíduos sejam livres e conscientes. E na medida em que sou revolucionário, quero que a revolução traga à tona as grandes massas, e que nunca acabe de percorrer o seu caminho perpétuo, sem estratificações e sem dogmas.
Gerês, 17 de Agosto de 1958 – Sou, na verdade, um geófago insaciável, necessitado diariamente de alguns quilómetros de nutrição. Devoro planícies como se engolisse bolachas de água e sal, e atiro-me às serranias como à broa da infância. É fisiológico, isto. Comer terra é uma prática velha do homem. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele. O mal, no meu caso particular, é que exagero. Empanturro-me de horizontes e de montanhas, e quase que me sinto depois uma província suplementar de Portugal. Uma província ainda mais pobre do que as outras, que apenas produz uns magros e tristes versos…
Coimbra, 15 de Outubro de 1963 – Quase a seguir um ao outro, dois fanatismos de pólos opostos a baterem-me à porta. Combati-os com igual denodo, embora o de raiz liberal arregalasse os olhos de espanto à medida que se via contrariado. Não era eu habitante da margem esquerda do rio das ideias? Que significava, pois, semelhante reacção? Isto apenas: a impossibilidade que sempre tive de aceitar como bom do lado de cá o que reprovo do lado de lá. Acredito em certos princípios, mas sem a cegueira dos iluminados. No auge da maior paixão, a lucidez corta-me as asas. E caio envergonhado dos pínacros da certeza no raso chão da dúvida. Daí a minha real incapacidade de adesão a igrejas de qualquer natureza. Saí da religiosa em que fui criado e da literária em que entrei um dia, por motivos idênticos: faltava-me o ar naqueles fechados ambientes de ortodoxia. Na altura, tentei justificar logicamente o meu procedimento. Mas as razões que se dão para certos actos é o que deles menos importa. Abandonei as duas confrarias, e nunca mais entrei em nenhuma. Isto, sim, diz tudo. Significa que o meu espírito, embora sedento de absoluto, como sempre o conheci, se recusa encontrá-lo em qualquer prisão dogmática, e porfia em descobri-lo no descampado inquieto da liberdade crítica.. .
S. Martinho de Anta, 23 de Dezembro de 1982 – Cá estou mais uma vez cingido à minha natureza profunda. Vestido como qualquer camponês e a sentir-me bem dentro desta pele terrosa, cavo o quintal, arranco silvas, podo roseiras, racho lenha. E converso com gente do meu agro que me vem visitar ou consultar, gente que nunca me leu, nem faz ideia do que é ser poeta, que fala de trivialidades e quer ouvir respostas triviais. Alimento como todo o meu ser essas conversas intermináveis, feitas de tudo e de nada, e quando elas acabam retomo a enxada de boa consciência, na paz de quem compreendeu e foi compreendido. Sabe bem compartilhar da condição comum. Lá em baixo sou uma ficção entre ficções; aqui sou uma criatura entre criaturas.
Passagem pelo Cárcere ( in O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974)
(Nota: Torga foi preso pela PIDE em Novembro de 1939 em Leiria e levadomais tarde para o Aljube de Lisboa)
Entregue na sede da PIDE, horas depois só por dentro continuava a ser gente. Por fora, fiquei reduzido a uma cara fotografa de todos os ângulos lombrosianos, a umas mãos esborratadas que deixavam impressões identificadoras numa ficha, a um nome sem senhoria e sem título, a um monte de ossos que o arbítrio alheio fazia mover.
- Volta a cara…Espalma agora aqui a pata…Levanta-te…
Conhecia já de nome, até bem demais, a casa, que uma legenda negra celebrava. Contavam-se por toda a parte horrores dos suplícios a que eram submetidas nos cubículos do sótão – os famigerados «moinhos» - as vítimas renitentes à confissão. Dias e noites a fio, de pé, sem dormir, ou, mal fechavam os olhos, acordadas a cachação pelos «macaquinhos», os guardas que a rendição frequente mantinha sempre em forma. Havia casos de alucinação por esgotamento, como o de um operário que cuidou ver a mulher violada e o filho único estrangulado e ia matando a sentinela com o escarrador de ferro fundido a que lançava mão. Mas, sem mesmo subir a essas celas de tortura, qualquer consciência livre encontrava nos rés-do-chão razões de sobra para se envergonhar da existência legal no mundo de semelhantes infernos de aviltamento. Mais do que as sevícias sofridas e o seu destino ali decidido, importava o massacre da personalidade de cada condenado, a perdição da sua alma tentada de todas as maneiras. De uma criatura digna que dava entrada no covil saía muitas vezes, dias, semanas ou meses depois, um trânsfuga, um traidor, um covarde – um ser psicológica, quando não fisicamente, desfigurado, que a si próprio se desconhecia.
(…)
- És então escritor?
- Sou.
- E poeta também, pelos vistos…
- Também.
- Um tipo formidável! Médico, escritor, poeta…Vais longe!
- Hei-de ir até onde puder.
Tinha a impressão de que aquele cinismo me escorria pelo corpo como uma baba.
- Muito me contas! E queres então fazer a revolução social?
- Quero que me deixe em paz.
- Deixo. Mas antes vais responder a umas perguntinhas…
- Não tenho nada a acrescentar às declarações que já fiz.
- Tens. Ora pensa lá bem …
- Está pensado.
- A sério?
- A sério.
- Ouve: eu podia pôr-te aí a falar como um papagaio. Era só dar-te corda. Mas não vale a pena. Temos muito tempo. Fica para mais tarde…Verás que daqui a alguns diass mudas de ideias…
- Não mudo.
- Mudas, mudas…
Sem táctica elaborada para enfrentar a nova situação e ferido nas mais íntimas veras do amor próprio, reagia em bloco, maciçamente, com a dureza das minhas fragas.
- Tu parece que tens fumaças de valentão! Sossega, que eu tiro-as…
- Não tira.
Ainda fez um gesto. Mas deteve-se, sorriu escarninhamente, e chamou por um subalterno.
- Este segue também…
( extracto de O Quinto Dia da Criação do Mundo, Coimbra, 1974)
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