Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole
Ciências Humanas e Sociais

Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole



Magnani, José Guilherme. Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole, São Paulo, Studio Nobel, 1999, 143pp.

Leila Amaral
Professora do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião - UFJF


O cenário de Mystica Urbe é a cidade de São Paulo. Através dela, o autor persegue a caminhada de "pedestres" que, em seus percursos variáveis, serpenteiam a cidade a procura de "valores alternativos", "novos paradigmas de conhecimento" e "desenvolvimento espiritual", independentes de sistemas religiosos institucionalizados. Mas a pesquisa realizada por José Guilherme Magnani o legitima a estender suas hipóteses para além desta cidade que lhe serve de campo etnográfico.

Observação e análise estão focalizadas nos cruzamentos inevitáveis de práticas religiosas, espirituais e terapêuticas que certos caminhantes citadinos realizam a partir de uma visão holística do homem e da natureza. Impelidos pelo desejo de integração das dimensões corpo-mente-espírito, combinam estilos e usos terapêutico-espirituais provenientes de uma freqüência diversificada por entre espaços filosófico-espiritualistas, centros voltados para a pesquisa e ensino de temas esotéricos e pontos de vendas. Freqüentam, principalmente, certos espaços que Magnani denomina Centros Integrados. Nesses Centros, gerenciados em moldes empresariais, seus freqüentadores não se restringem a uma atividade básica; não se prendem a concepções dogmáticas, nem apresentam um corpo doutrinário fechado; não dispõem de rituais iniciáticos; nem centram suas atividades na mera venda de produtos e serviços. Apresentam, todavia, propostas no interior do difuso discurso esotérico, fundamentando suas escolhas "com base em uma corrente em particular ou num conjunto de discursos mais ou menos sistematizado, podendo, contudo, combinar elementos de várias tendências filosóficas, religiosas e esotéricas clássicas" (: 27).

Toda essa atividade busca sua fundamentação "em alguns sistemas de pensamento e religiões de origem oriental, em cosmologias indígenas, em corrrentes espiritualistas, no esoterismo clássico europeu e até em propostas inspiradas em certos ramos da ciência contemporânea; e não poucas vezes em todos eles simultaneamente, resultando em surpreendentes bricolagens" (: 12). Trata-se, enfim, de um fenômeno cuja proporção sofre constante ampliação devido à possibilidade sempre presente de invenções de ritos e novas propostas de utilização do tempo livre. Assim, nem mesmo o lazer e o consumo de bens culturais encontram-se ausentes dessa busca de aprimoramento espiritual que caracteriza as terapias corporais, as inumeráveis palestras, cursos, demonstrações, workshops, congressos, encontros, vivências, cerimônias e ritos envolvidos.

Para caracterizar o universo de valores, hábitos e discursos veiculados através da trajetória particular desses caminhantes e para designar a distribuição e a articulação entre os espaços e práticas concretas que integram esse universo, Magnani reserva o adjetivo neo-esotérico. Seu objetivo é observar e captar as regularidades e a dinâmica própria desse universo, através dos vínculos e pactos que ele estabelece com o ritmo, as instituições e a paisagem da cidade, descrevendo e classificando a forma de implantação de seus diferentes espaços e práticas, na cidade, e as possibilidades de contatos e articulações entre eles. Recorre, com tal fim, às categorias "circuito neo-esotérico", para se referir a um uso do espaço que não se atém à contigüidade, e "trajeto neo-esotérico", para se referir ao movimento realizado por um usuário ou um grupo homogêneo deles ao transformar as possibilidades oferecidas pelo circuito em uso real.

Concentrando sua atenção nos trajetos e circuitos, Magnani nos faz perceber a interpenetração dos diferentes campos espirituais e não espirituais entre si e com os diversos domínios da existência social, quando as atividades espirituais, religiosas e não religiosas se misturam muito, através de um conjunto de serviços que estão na cidade, em diferentes espaços que não se fecham em um único pedaço. Torna-se visível, dessa forma, a aquisição de instrumentos variados de espiritualidade através de escolhas pessoais que, no entanto, não se deixam confundir com anonimato, fragmentação, desordem ou "caos semiológico". Observando as práticas neo-esotéricas desvinculadas dos limites da contigüidade espacial, Magnani pode percebê-las situadas em um horizonte mais amplo de contatos, em um fluxo aberto de trocas entre agentes que circulam em uma bem estabelecida teia de solidariedade. Pode perceber também a extensão das esferas da espiritualidade e da religiosidade em diálogo com outros lugares da cidade: praças públicas, parques, regiões turísticas, shopping centers, teatros, casas de show, livrarias e, até mesmo, instituições universitárias e científicas.

Consciente da impossibilidade de definir o fenômeno que constitui o objeto de seu estudo como um "movimento", porque é impossível reconhecer nele uma unidade interna e consistente de doutrina, a qualidade do trabalho de Magnani está em destacar a positividade do fenômeno, em contraposição às teses que exploram essa característica por um viés negativo. Distanciando-se das explicações que percebem o universo do neo-esoterismo como um agregado de crenças e práticas díspares a constituir um imenso mosaico desprovido de sentido, Magnani persegue o movimento do fenômeno para apreender uma dinâmica ordenada de circuitos e trajetos, retirando-o do limbo das supertições e dos simulacros de nossa época.

Em diálogo com as mais recentes pesquisas de autores brasileiros sobre o tema e a partir de uma clara opção teórico-metodológica, alia sua minuciosa observação de campo às referências básicas que encontra nos trabalhos de Lévi-Strauss, sobre o modo de operar dos mitos e sua análise estrutural; Clifford Geertz e sua teoria de "modelos de" e "modelos para", para a interpretação de um determinado ethos cultural; Max Weber e sua proposta metodógica dos "tipos ideais"; e Pierre Bourdieu a partir das categorias estrutura e habitus, especialmente de sua expressão "unidade de propriedade", em correspondência com a tese da existência de um conjunto de produtos, valores e símbolos associados a um determinado universo que, devido a sua recorrência, acaba por conformar um padrão de comportamento ou estilo de vida. Sob essa orientação, o esforço de Magnani se concentra em detectar os princípios de ordenamento do universo "neo-esô", na base de seu funcionamento e organização: a) na distribuição das vivências e celebrações no tempo - o calendário neo-esotérico; b) na oferta, em termos de implantação e distribuição de seus espaços na cidade - o circuito neo-esotérico; c) no discurso que lhes serve de fundamento - a existência de uma grande narrativa neo-esotérica e d) no âmbito de seus freqüentadores e seus comportamentos - a constituição de um ethos neo-esotérico que conforma um estilo de vida com valores, padrões de consumo e formas de sociabilidade peculiares.

Com a tipologia do material coletado, Magnani tenta manter e visualizar a diversidade de práticas, espaços, discursos e freqüentadores, reconhecendo a inegável heterogeneidade de práticas, propósitos, crenças e rituais e os diferentes graus de formas de adesão, elaboração e sofisticação na fundamentação das atividade, ao mesmo tempo que procura determinar, através de uma observação sistemática, a lógica de um universo identificável pelo adjetivo neo-esotérico. Oferece, enfim, em Mystica Urbe, um princípio de classificação "aplicável em diferentes níveis de abrangência, permitindo distinguir tantos planos quanto sejam necessários para estabelecer um conjunto homogêneo e comparável" (: 68-9). Com seu olhar ao mesmo tempo "totalizador" e "para dentro" do universo pesquisado, Magnani procura escapar das abordagens que se dirigem para o fenômeno com um "olhar de 'longe e de fora' com o qual sustentam a tese do 'caos semiológico'". Em conseqüência, o autor de Mystica Urbe derruba algumas imagens estereotipadas em relação ao universo neo-esotérico, inclusive no meio acadêmico, particularmente no âmbito das pesquisas sociais, ao enfatizar: a) a existência de formulações altamente sofisticadas, destinadas a um público exigente e bem informado, "erudito" e "participativo", em correspondência com o padrão econômico, social e cultural de classes média e alta, principais alvos das atividades "neo-esô", apesar da heterogeneidade de seus adeptos; b) a possibilidade de uma vivência comunitária que se constrói na metrópole efêmera e se dissolve no final de cada palestra, curso ou vivência, mas que permanece viva e ancorada no circuito, na rede de sociabilidade e de trocas entre pessoas que, em seus trajetos, compartilham valores, um padrão discursivo e de comportamento e um código amplamente reconhecido e aplicado às situações do cotidiano, e c) a existência de atividades realizadas no meio "neo-esô" que não são exclusivamente individualistas, privadas e narcisicamente centradas em escolhas e desejos pessoais de sucesso e prosperidade, mas que são passíveis de envolver trabalhos sociais voltados, para além do engajamento ecológico, para populações carentes, mulheres em situação de violência e postos de saúde, por exemplo. Fica também em questão o isolamento das atividades envolvidas no circuito "neo-esô", como um gueto excêntrico e à parte. Com sua descrição, percebe-se uma saída das tribos - uma reversão do indivíduo acuado por trás de barricadas comunitárias e identidades fechadas, constituídas pelas metáforas de proteção e defesa - para oferecer um sentido de comunidade aberta, sem muros ou portões, em sintonia com a dinâmica da cidade e seu correspondente desenvolvimento de redes de solidariedade.

Mystica Urbe traz à tona, através da ótica de Magnani, um debate entre duas abordagens que, a partir de pontos de vistas opostos, tentam oferecer uma explicação do universo aqui denominado neo-esotérico.

Em um pólo, tem-se a afirmação de que não existiria um significado ou sentido possível nas combinações heterodoxas realizadas nesse universo, porque suas práticas não passariam de combinações individualizadas que se perdem em uma miríade de experiências à moda de um relativismo radical.

Em reação a essa abordagem, Magnani esforça-se para apreender, na dinâmica dos circuitos, uma estrutura de significado, reconhecendo em suas diferenças variantes de um mesmo sistema. Apesar de observar, através de exemplos etnográficos, e advertir seus leitores sobre a complexidade das combinações, articulações, invenções e trocas que apontam para a riqueza e variação no uso dos serviços e técnicas em oferta, na extensão e na sobreposição de diferentes sistemas em cruzamento, Magnani opta por oferecer a descrição de um "plano geral": "tipos de operações" e "equilíbrios estruturais". Não contempla, com a mesma intensidade, os modos de usar os produtos, as técnicas, as orientações e as palavras que circulam no universo em questão, o que poderia reforçar sua crítica à tese do "caos semiológico", ao apontar para a riqueza semântica que é produzida quando "os sistemas de representações ou os procedimentos de fabricação não aparecem mais só como quadros normativos mas como instrumentos manipuláveis por usuários" (Certeau, 1999). O desenho de circuitos e trajetos, totalizável pela vista, porque circunscrito a espaços flexíveis, mas prontamente delineados e configurados - "um lugar supostamente sincrônico" - é privilegiado em relação aos atos, às performances indissociáveis de momentos singulares, cujo movimento subreptício e astucioso tem a ver com atividades de "fazer com" o material oferecido durante o percurso de pedestres caminhando na cidade (: 98-9).

Em concordância com Magnani, eu diria que as práticas incessantemente inventadas nesse universo e por ele classificadas e organizadas em tipos lógicos não se apresentam como um "moinho satânico" de combinações que se perdem na atomização de experiências puramente individuais e relativistas. Mas, em contraposição a Magnani, eu diria que elas não brotam de uma matriz estrutural capaz de ser apreendida pelo pesquisador, no seu afã de encontrar sínteses coerentes e lógicas estruturais. Tais combinações heterodoxas formam sínteses, sim, mas sínteses provisórias, nas quais os diferentes sistemas, filosóficos, religiosos, científicos, psicoterapêuticos e míticos, em interação, deixam-se possuir uns pelos outros, fazendo que elementos opostos e mesmo contraditórios, retirados de diferentes contextos de significado, tendam a estarem ali se tocando e se deixando contaminar mutuamente.

Essas sínteses provisórias e ambíguas, realizadas através "dos incontáveis casos de técnicas inventadas a partir da junção de elementos de sistemas diferentes e da imaginação do terapeuta", escapam da classificação oferecida por Magnani, como ele mesmo observa (: 54, nota 15). Isso se dá, porque a lógica dessas combinações não é a da imitatio, mas a da inuentio. Ao invés de uma representação ou de um ritual que se faz ou que se realiza segundo um molde ou gênero préexistente - uma regra -, as vivências, workshops, encontros, feiras e cerimônias acontecem como performances que substituem o culto e aplicam-se à descoberta de algo verdadeiramente novo e inusitado. São a novidade e a singularidade de falas e gestos performáticos que têm valor preponderante em relação a uma norma a ser repetida ou reatualizada. Trata-se, pois, de um universo aberto a experimentações, atraindo, inclusive, uma parcela representativa de cientistas e intelectuais, personalidades respeitadas e de renome na comunidade acadêmica nacional e internacional, como fica significativamente sugerido no esclarecedor relato de Magnani (: cap. 2).

Ao invés da apresentação do universo em questão como um campo da "pura diferença" ou de um relativismo radical, como fica sugerido na abordagem criticada com pertinência por Magnani, ou de um campo no qual se reconheceria uma "identidade estrutural", na base da orientação teórica que sustenta a classificação oferecida por Magnani, poder-se-ia sugerir, pelo menos no que diz respeito aos Centros Integrados, uma apreensão do universo "neo-esô" menos como um sistema e mais como um esforço performático para colocar diferentes sistemas simbólicos em comunicação. Tal sugestão pode apresentar-se produtiva para se pensar a comunicação, na sociedade contemporânea, não tanto a partir de um acordo necessário quanto ao sentido do símbolo, mas, principalmente, quanto ao seu poder semiótico. Algo que acontece, entre outros exemplos possíveis, com o conceito de "unidade essencial", no universo das performances "nova era" ou "neo-esô", nas quais o significado de "unidade" supostamente compartilhado é menos importante do que o poder na crença em uma "unidade", quaisquer que sejam os sentidos que ela possa adquirir nos diferentes sistemas simbólicos em interação.

Poder-se-ia reconhecer, nesse esforço de comunicação ampliada, a contemporaneidade do universo "neo-esô", em relação à dinâmica da cidade, como é a intenção de Magnani. Mas poder-se-ia também reconhecer nele a sua contemporaneidade em relação à possibilidade de oferecer recursos simbólicos para enfrentar os desafios colocados pela nova ordem social global, através de suas práticas combinatórias e de sua retórica ambulatória.

Bibliografia

CERTEAU, M.
1999 Invenção do cotidiano. I - Artes do fazer, Petrópolis, Vozes.

Revista de Antropologia



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