Gustavo Blázquez
Mestrando, PPGAS-MN-UFRJ
HOUSEMAN, Michael e SEVERI, Carlo. 1994. Naven ou le Donner à Voir. Essai d'Interprétation de l'Action Rituelle. Paris: CNRS-Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme. 224 pp.
O texto apresentado por Houseman e Severi propõe mais que uma simples interpretação de um tipo particular de ritual ? o naven ? praticado por um grupo da Nova Guiné, os Iatmul, ritual no qual os homens se vestem de mulher e vice-versa.
O livro, na verdade, é uma tentativa de combinar a discussão teórica de temáticas fundamentalmente relacionadas com os rituais, a investigação empírica realizada por Gregory Bateson nos anos 30 e por integrantes do Museu Etnográfico da Basiléia a partir dos anos 70, e a problematização de questões relativas à história da antropologia.
Os autores convidam-nos a discutir e cruzar a explicação da ação ritual em geral com a análise de um tipo específico de ritual. O potencial explicativo de sua teoria do ritual é posto à prova a partir da análise do naven. Para realizar o que denominam um "experimentum crucis" (:13), propõem, ao longo dos oito capítulos que formam o livro, o que poderíamos considerar como uma série de cruzamentos.
O primeiro deles se estabeleceria entre Bateson e a tradição funcionalista. Formado na Inglaterra malinowskiana, Bateson escreve Naven, texto que se inicia com uma crítica radical do conceito de função utilizado nas ciências sociais de sua época, que confundiriam as causas do fenômeno a ser estudado com os propósitos do mesmo. Bateson realiza tal crítica, baseando-se em seus próprios cruzamentos com a matemática, a lógica, a biologia, William Blake...
Naven é uma experiência, uma tentativa de descrever o comportamento humano mediante o reconhecimento de que o observador faz parte do próprio comportamento observado. O cruzamento entre descrição e interpretação obriga-o a realizar uma opção metodológica ? descrever a sociedade a partir de um de seus aspectos ? e uma opção teórica, extraída da biologia ? a descrição dos mecanismos que operam "em um único microorganismo pode revelar mecanismos essenciais para compreender qualquer organismo" (:23).
O segundo cruzamento se daria entre Bateson e o próprio Bateson. Em sua leitura de Naven, os autores enfatizam as diferenças entre o Bateson da primeira edição de 1936 e o da segunda de 1958. Em 1936, Bateson mostra que um comportamento pode ser explicado de modo estrutural, funcional e ethológico. As normas comportamentais se diferenciam a partir de um processo de interações, denominado cismogênese, que pode ser de tipo simétrico ou complementar. Em 1958, já estabelecido em Palo Alto, na Califórnia, e com uma teoria da comunicação já desenvolvida, aplica o conceito de cismogênese ao ritual: este é considerado, então, como um mecanismo para controlá-la. No capítulo 2, os autores apresentam uma crítica a essa tentativa de aplicar uma teoria cibernética ao ritual, proposta por Bateson e desenvolvida por Handelman.
O terceiro cruzamento aplica-se a Bateson e o Museu Etnográfico da Basiléia. A partir do capítulo 3, os autores cruzam os dados etnográficos dos anos 30 com as recentes etnografias produzidas por pesquisadores suíços.
Bateson descreve o naven como uma série de cruzamentos de palavras e ações entre sujeitos travestidos, que tem lugar quando se realiza pela primeira vez uma determinada prática. Sua análise toma como elemento central a relação entre o Ego (laua) e seu tio materno (wau), que se comporta como mãe e esposa do laua. A partir dessa inversão, produzem-se outras, que Bateson, entretanto, não leva em consideração, e que Houseman e Severi ressaltam, como por exemplo, a da tia paterna (yau) que atua como pai e esposo de Ego. Naven expressaria, portanto, o conflito entre os sexos característico do ethos Iatmul. As etnografias recentes criticam esses desenvolvimentos e colocam em cena outro conjunto de cerimônias que os Iatmul também denominam naven e que Bateson não levou em conta. Essas novas investigações propõem considerar o ritual iatmul como uma cerimônia tipicamente feminina.
Houseman e Severi servem-se desse corpus etnográfico para analisar três tipos diferentes de naven, ou três modalidades diferentes de naven. Sua análise centra-se em torno de duas questões: por que ações muito diferentes são reconhecidas por seus atores como naven? Por que são diferenciadas de outras práticas que também incluem o travestismo? "Estas duas perguntas só admitem uma resposta. Trata-se de identificar nos dois casos um nível organizacional que, ligando as diversas ocasiões cerimoniais, defina o conjunto de traços que permitem (aos Iatmul e a nós) reconhecê-los sempre como naven e diferenciá-lo de outros rituais" (:170). Esse nível organizacional é entendido como "uma série de regularidades que o contexto impõe à ação" (:171) e pode ser buscado tanto na encenação ou, como sustentam os autores, na configuração de relações estabelecidas em torno de Ego pela própria ação ritual.
O quarto cruzamento relaciona o naven com a teoria da ação ritual. Houseman e Severi apresentam, no capítulo 7, um conjunto de críticas às teorias do ritual, que se centram em sua função ou em seu significado, e propõem uma explicação da ação ritual centrada na identificação do nível organizacional. É apenas a partir deste que se poderia começar a pensar no significado e na função do ritual.
Essa teoria é cruzada com naven, ritual considerado desprovido de conexão com a política, a economia, o xamanismo etc. Tal afirmação nos parece um tanto arriscada se levarmos em conta que durante o ritual o Ego "escolhe" entre todos os possíveis Wau seu Wau, servindo o ritual como contexto para determinar a identificação da relação avuncular classificatória. Mais do que isso, o laua classificatório está destinado a ser o wau real dos descendentes de seu wau classificatório e vice-versa, dando lugar a um tipo particular de aliança. E é "a relativa pobreza do naven que pode nos ajudar a esclarecer as modalidades de transmissão do simbolismo ritual através da ação, encontradas em outros lugares de maneira tão mais complexa que geralmente é impossível detectá-las. Naven é, de fato, tanto por sua forma quanto pelos personagens que envolve, um ritual relativamente simples" (:193).
Em sua elaboração de uma explicação para o simbolismo ritual, Houseman e Severi valem-se de certos desenvolvimentos de Dan Sperber que lhes permitem estabelecer o que diferencia uma ação ritual de uma não ritual, e como se apreende uma ação ritual propriamente dita. Esta nova teoria do ritual utiliza cinco conceitos-chave: condensação, forma relacional, estilo, campo relacional e trabalho do rito.
A ação ritual condensa uma série de relações e oposições entre os sexos; princípios matrilineares e patrilineares; procriação e ancestrais totêmicos; cópula e homicídio; pares que devem permanecer separados de acordo com o ethos Iatmul. Estas condensações são incluídas em uma dinâmica que os autores denominam forma relacional, que, no caso do naven, pode se caracterizar como a condensação dos modos contraditórios de cismogênese e dar lugar a um estilo caracterizado por um tipo de travestismo decididamente caricaturesco.
O naven é construído sobre a base de um campo relacional vinculado às condições que definem a procriação, de maneira tal que o trabalho do rito consiste na "colocação de um certo número de laços constitutivos da identidade em um universo de parentesco" (:206), uma abertura do parenthood ao kinship. Naven, que em língua Iatmul significa mostrar-se, mostraria o Ego no parenthood e no kinship.
O quinto cruzamento estabelece a relação entre Houseman e Severi, por um lado, e Bateson, por outro. Partindo do multifacetado Bateson, de alguns de seus conceitos e de seu trabalho etnográfico, os autores finalizam propondo uma nova explicação tanto do naven quanto da ação ritual. Bateson não aparece, entretanto, apenas como uma referência inicial. Pelo contrário, o livro resgata o ethos batesoniano, antifuncionalista, defensor de um trabalho teórico próximo dos dados empíricos e de um certo olhar clínico. A construção da argumentação de Houseman e Severi é fiel à idéia de entender o comportamento como uma rede de relações complexas, bem como, talvez, à mais radical das propostas de Bateson: antes de trabalhar com a função ou o significado de um ato é preciso realizar um estudo da forma das relações nele implicadas, de seu estilo.
Não obstante essas aproximações, nossos autores distanciam-se desse ethos ao negar a possibilidade de uma síntese final caracterizada pelo equilíbrio: "O ritual é ao mesmo tempo uma manifestação do processo de reprodução social [e] um mecanismo que contribui para orientar seu desenvolvimento" (:87). Nesse sentido, a proposta de descobrir em um caso supostamente simples propriedades universais deveria ser objeto de uma análise mais detida, uma vez que aqui, acreditando apoiar-se em Bateson, nossos autores talvez estejam mais próximos de Durkheim.
Tradução de Maria Macedo Barroso
Revista MANA
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FONTE: http://jovemcurioso.com.br/o-assustador-ritual-da-tribo-kuku-kuku/ "Se você pretende visitar a região de Menyama, na Papua Nova Guiné, se prepare para encontrar cenas assustadoras. Alguns corpos carbonizados e endurados em penhascos...
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