Santo Poder
Ciências Humanas e Sociais

Santo Poder


O domínio do sagrado
A busca pela experiência (e compreensão) do sagrado passa pelo entendimento da dinâmica das relações de poder das instituições religiosas
Por Luiz Eduardo Souza Pinto

O ser humano, ao longo dos tempos, sempre buscou compreender o sagrado e a sua dimensão. O mistério em torno dessa questão desperta atenções. O termo sagrado não é absoluto, isto porque a dimensão da sacralidade, seja de uma palavra, um objeto, um lugar ou uma pessoa, não se apresenta na mesma intensidade sob todos os olhares. É uma associação de ideias e percepções abstratas que define o que se torna sagrado.

Os seres humanos têm a necessidade profunda de acreditar em algo ou alguma coisa que dê sentido à vida e a experiência com o sagrado envolve uma profusão de sentimentos capazes de gerar uma noção explicativa sobre a origem do universo e da existência, sendo, portanto, a expressão de nossas crenças mais profundas. É para objetivar o que é subjetivo que os humanos deram uma aparência familiar a algo que é inviolável, tamanha sua importância. O que se sacraliza pode ser um templo, um objeto, uma pessoa ou mesmo uma palavra. Isto porque as formas divinas devem ser compreensíveis para a natureza humana.

A representação do sagrado tornou mais próximos os laços entre o céu e a terra. Desta maneira, os humanos poderiam entrar em comunhão com o sobrenatural, com as divindades. É neste contexto que os mitos ganham importância. Eles criam condições explicativas, que podem ser partilhadas por todos os membros de um mesmo grupo.

O conjunto de valores sagrados cria em torno de si uma comunidade que se liga pela crença nestes valores: o sentido compartilhado e mutuamente percebido por uma coletividade fornece uma razão à existência marcada pela perplexidade e incertezas quase infinitas. O sistema de crenças tem por objetivo dar alguma significação. É diante dos fenômenos inexplicáveis que os seres humanos buscam causas identificáveis para dar sentido à sua existência. É neste contexto que as narrativas míticas e os símbolos fornecem uma interpretação para os mistérios.

Mas, embora o sagrado possa ser transmitido, direcionado a algo familiar, sua dimensão total está muito além da compreensão, e justamente por isso o sagrado é uma força que só pode ser compreendida a partir de locais específicos, ritos próprios ou personificações exclusivas que criam ou projetam algum sentido.

É por dar uma explicação ao caos universal que Mircea Eliade observa que o sagrado contribui para organizar o universo, fornecendo orientações práticas de conduta. Quando os humanos passaram a evocar os deuses, passaram também a contar com eles para a intervenção no mundo incontrolável, e assim os rituais transformam-se em mecanismos capazes de convencer o sobrenatural a conceder favores. As manifestações ritualísticas ganham status de poder capazes de, até mesmo, constranger as divindades. Os ritos e os símbolos se tornam, então, instrumentos que, se bem utilizados, alteram a ordem do universo, e desta maneira evitam o caos. Sem a utilização dos ritos ou da simbologia, as forças extra-humanas não seriam atingidas, pois, é necessário algo para mediar a relação entre os homens e os deuses. É na busca por respostas que os seres humanos fundamentam a necessidade do sagrado.

A busca pelo sentido da vida levou os seres humanos a criar em sistemas de referências imutáveis e atemporais. E na busca pelo sagrado tem-se a necessidade de torná-lo tangível. Por isso, o ser humano sempre delimitou o espaço sagrado com limites bem precisos. Os locais sagrados ficam fora da vida comum, e, como observa Eliade, eles são heterogêneos, pois ocupam um espaço diferenciado da realidade ordinária. É comum que nos locais sagrados sejam erguidas construções nas quais o sagrado é reverenciado, um local distinto da homogeneidade profana.

Como sugere Eliade, a entrada em prédio sagrado é um momento de purificação, no qual a percepção se altera, fazendo-se sair da realidade cotidiana. Além de uma linha espacial para a compreensão da concepção do sagrado, os seres humanos precisam criar uma linha temporal, como observa Herveau-Léger. É necessário gerar pontos na linha do tempo para poder entrar em contato com o universo, mas ressalva-se que este tempo é ao mesmo instante atemporal.

No rito, que se celebra o tempo sagrado, há uma efusão coletiva capaz de elevar os participantes acima das trivialidades, como considerou Durkheim, e, posteriormente, Marcel Mauss ao descrever sobre a oração como uma ação coletiva. Celebrações e cerimônias marcam momentos importantes da vida da comunidade, o que garante coesão social. Os ritos como os mitos evocam uma noção de tempo bem diferente do tempo linear e cronológico.

Na sociedade, a dimensão do sagrado se organizou em torno de instituições religiosas. Regras e dogmas servem para orientar condutas individuais e coletivas, e ao mesmo tempo estruturas religiosas podem se adaptar a qualquer movimento que se fundamenta em valores tomados como sagrados. Por se tornarem sagradas, algumas determinações sequer podem ser questionadas. Isso porque o ser humano tem o desejo de dar ordenamento ao caos universal. É neste contexto que se cria o conceito de hierarquia, que significa ordem sagrada. Assim essa concepção se aplica a um mundo invisível, mas que dá ordem e sentido às coisas.

A representação do sagrado tornou mais próximos os laços entre o céu e a terra. Desta maneira, os humanos poderiam entrar em comunhão com o sobrenatural, com as divindades. É neste contexto que os mitos ganham importância. Eles criam condições explicativas que podem ser partilhadas por todos os membros de um mesmo grupo

É neste contexto que o sociólogo Pierre Bourdieu nos transmite a ideia de que as autoridades religiosas codificam a realidade de modo que ela não fique tão compreensível para os leigos, mas apenas para os iniciados, os manipuladores do sagrado, pois somente os especialistas podem compreender, interpretar e transmitir as revelações sagradas que ao organizar o universo demonstram aos seres humanos como eles devem viver a sua vida. Para Bourdieu, os princípios religiosos nasceram da experiência humana e foram criados para manter a estabilidade social. Uma ordem estabelecida define regras que seus membros devem seguir para obter a coesão social, como concebeu Durkheim. Em uma sociedade com normas e regras, cujo cumprimento das determinações é ato sagrado, a transgressão implica em penalidades e pode significar a exclusão e até mesmo a morte social.

O SAGRADO E OS BENS DE SALVAÇÃO
As religiões e o processo de sacralização de espaços, objetos, pessoas, mitos ou heróis sempre foram objetos de estudo dos sociólogos. Desde a formação desta ciência, os fenômenos religiosos despertaram interesse. Max Weber dedicou estudos sobre a religião, incluindo-se neste campo seu livro "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo".

Na sociedade, a dimensão do sagrado se organizou em torno de instituições religiosas. Regras e dogmas servem para orientar condutas individuais e coletivas, e ao mesmo tempo estruturas religiosas podem se adaptar a qualquer movimento que se fundamenta em valores tomados como sagrados. Por se tornarem sagradas, algumas determinações sequer podem ser questionadas. Isso porque o ser humano tem o desejo de dar ordenamento ao caos universal

Pode-se dizer que, no centro do trabalhos de Weber, está a sociedade moderna e seu processo de racionalização, que levou a rejeitar o sagrado religioso, tornando o mundo um lugar desencantado. Em suas análises, Weber considera que a religião desempenhou importante papel social no ocidente. Já Bourdieu trata a religião como um sistema simbólico de comunicação e de pensamento. Vale ressaltar que Durkheim afirma que as religiões são constituídas por um sistema solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas. Bourdieu cita que "enquanto sistema de símbolos a religião é estruturada na medida em que seus elementos internos relacionam-se entre si formando uma totalidade coerente" (Oliveira, 2003, p.179), ou seja, a vida cotidiana e a religião possuem completude e uma lógica coerente.

Há uma relação direta entre as análises de Weber sobre as estruturas sociais modernas e as estruturas simbólicas pensadas por Bourdieu. De acordo com Weber, o sistema de crenças e práticas religiosas é a expressão da estratégia de diferentes grupos em competição pela gestão dos bens de salvação e de diferentes classes interessadas por seus serviços. Pode-se, portanto, entender que a definição do que é sagrado ou profano é definido também na disputa pelo domínio religioso. Desta forma, observa-se que o grupo de especialistas capazes de manipular o sagrado contribui para a conservação da ordem social. Para Bourdieu, existe uma correspondência entre as estruturas sociais e as estruturas mentais, correspondência que se estabelece por intermédio das estruturas dos sistemas simbólicos. Nesse contexto, a religião contribui para a imposição dos princípios de estruturação da percepção e do pensamento do mundo. As verdades absolutas e os dogmas apresentados pelas instituições religiosas legitimam a Teologia, e ao mesmo tempo um statos quo. Bourdieu observa que os interesses dos sacerdotes encontraram na organização centralizada e hierarquizada uma solução capaz de preservar seus direitos, bem como seus privilégios. Há então a monopolização da gestão dos bens de salvação por um grupo de especialistas capazes de manipular o sagrado. Ressalta-se que a formação de especialistas é algo típico do processo de racionalização do Ocidente que promove a formação de pessoas.

Weber destaca que a perpetuação do capital religioso por uma dada religião só pode ser assegurada por meio de um aparelho burocrático capaz de exercer continuamente a ação necessária para assegurar a própria reprodução dos bens de salvação.

No que tange ao monopólio dos bens de salvação, Bourdieu considera que a oposição entre religião e magia, sagrado e profano, dissimula a oposição entre diferenças de competência religiosa que está ligada à estrutura de distribuição do capital cultural. Assim, toda a prática ou crença dominada está fadada a ser considerada profana na medida em que constitui uma contestação objetiva do monopólio da gestão do sagrado. Weber, assim como Bourdieu, percebe que o conflito pela autoridade no mercado religioso gera uma contestação da hierarquia, que toma a forma de uma heresia. Weber aponta que os sacerdotes são na verdade os especialistas destinados a guardar e manipular as verdades e assim os leigos são expropriados do poder sobre o sagrado. As concepções de Weber e Bourdieu nos levam ao entendimento que a formação de um grupo de especialistas capazes de manipular o sagrado gera um grupo de detentores do poder religioso.

Mas, apesar do jogo de poder que insere na relação entre sacerdotes e leigos, há entre estes dois agentes interação e relações recíprocas, como percebe Weber. Estes interesses, que permeiam os jogos no campo religioso, definem as interações simbólicas que se instauram, como concebido por Bourdieu. Esse sociólogo aponta, ainda, que existe no campo religioso uma disputa pelo domínio das forças simbólicas, que tendem a considerar como magia ou seita uma religião com menor aparato burocrático. E, desta forma, o grupo dominado e suas concepções são vistas como profanas.

Se a religião visa a manutenção de um corpo social beneficiado pela sua posição econômica, política e social, Bourdieu define como concorrência a busca pelo monopólio da gestão dos bens de salvação. Segundo esse sociólogo, o capital de atividades religiosas depende da força material e simbólica dos grupos ou classes que ela pode mobilizar, oferecendo bens e serviços capazes de satisfazer seus interesses religiosos. Neste sentido, a lógica do funcionamento das religiões parte do pressuposto que elas reivindicam o monopólio do exercício legítimo do poder religioso.

A oposição entre detentores do monopólio do sagrado e os leigos constitui a base do princípio de oposição entre o sagrado e o profano. Assim, a concepção religiosa dominante tem por efeito relegar antigos mitos ao estado de magia e feitiçaria. Weber analisa que a supressão de um culto, sob influência de um poder político ou eclesiástico em prol de uma religião, foi o que deu origem a oposição entre religião e magia. Assim, pode-se deduzir que as observações de Weber e de Bourdieu são semelhantes no tocante à questão da disputa de poder no campo religioso.

A religião acaba por reforçar e assegurar a legitimação dos grupos sociais. E o faz através das sanções, ou seja, o grupo que manipula o capital religioso faz por meio do trabalho religioso uma espécie de codificação que este mesmo grupo interpreta como forma de garantir o domínio sobre o sagrado. Tal atitude é bastante relevante para a compreensão da proposta de Bourdieu, pois permite a manutenção do status quo das autoridades religiosas e ao mesmo tempo fornece uma justificativa para seu poder e domínio, letigimando suas funções. A ordem social é desta maneira reafirmada e reproduzida, pois as verdades codificadas e o mundo vivido são tidos como o mundo natural.

IGREJA CATÓLICA
Durkheim aponta que um colégio de sacerdotes não é por si só uma igreja. A partir desta análise pode-se inferir que estas instituições não são apenas um grupo que manipula e domina o capital religioso e o sagrado. Para Durkheim, uma igreja é uma comunidade moral formada por todos os crentes de uma fé, tanto fiéis quanto sacerdotes. Faça-se um necessário apontamento: a própria denominação "católica" é uma derivação do grego "Katholikos", que posteriormente foi latinizada para o termo "Catholicus", cujo significado é "universal" [universalidade].

A oposição entre detentores do monopólio do sagrado e os leigos constitui a base do princípio de oposição entre o sagrado e o profano. Assim, a concepção religiosa dominante tem por efeito relegar antigos mitos ao estado de magia e feitiçaria. Weber analisa que a supressão de um culto, sob influência de um poder político ou eclesiástico em prol de uma religião, foi que deu origem a oposição entre religião e magia

O Concílio Vaticano II fez com que a Igreja Católica abrisse sua hierarquia para que se transformasse em uma comunidade que, em sua totalidade, constituía o que foi denominado de "Corpo Místico de Cristo". Embora, para boa parte dos teólogos, as decisões do Concílio II ainda não esteja plenamente postas em prática, observou-se uma maior participação dos leigos na dinâmica eclesial. Na década seguinte, a Igreja viu florescer a Teologia da Libertação, movimento surgido na América Latina e com forte atuação no Brasil, que apontava para a opção preferencial pelos pobres. A partir da década de 1980, os movimentos sociais, que surgiram, também impulsionados pela redemocratização do país, tiveram forte aparo da Igreja Católica. Alguns, inclusive, foram gestados entre os leigos em suas comunidades.

Inspirados por personagens revolucionários, dentre eles Karl Marx e o próprio Jesus Cristo, lideranças de movimentos sociais assim como de pastorais e movimentos católicos comungavam de um ideal comum: a opção pelos excluídos. Nesta perspectiva, esse grupo, vinculado à Igreja institucionalizada, adotava um modelo diferente daquele que visa à manutenção da ordem social e econômica vigentes. Tal perspectiva se dá pela proposta contrária ao modelo político e econômico que favorece a concentração de riquezas, propondo alternativas ao modelo capitalista de produção e políticas de inclusão social.

O sociólogo Alain Touraine considera que os movimentos sociais são fruto da ação conflitante dos agentes das classes sociais, ou seja, a essência da luta de classe. Marxistas contemporâneos consideram que as igrejas, ao adotarem uma postura crítica em relação ao modelo produtivista/consumista, projetam uma luta em favor dos excluídos e, portanto, não se apresentam como "ópio do povo", mas como "o suspiro da criatura oprimida", como também afirmou Marx. Tais ações vão em sentido contrário às análises Bourdieu e Weber quando estes pensadores clássicos tratam as instituições religiosas como um aparato conservador que contribui para a manutenção da ordem social.

A realidade, assim como as sociedades, constitui-se a partir de processos dialéticos como nos propôs Hegel e mais tarde Marx. No interior dessa Igreja plural, nasce uma nova forma de expressão de religiosidade: um catolicismo que não se abdica da razão e da luta política e social, mas que também aceita a primazia do Papa, um dos pilares da unidade Católica. É uma via que está se constituindo.

REFERÊNCIAS
TOURAINE, Alain. Os movimentos sociais: o conflito central. In: Poderemos viver juntos?: Iguais e diferentes. Tradução de Jaime A. Clasen e Ephraim F. Alves. Petrópolis: Vozes, 1999.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. Gênese e Estrutura do Campo Religioso. São Paulo: Editora Perspectiva, 2007.
DURKHEIM, Emile. As Formas Elementares da Vida Religiosa - O sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes. 1996.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradução: Rogério Fernandes. São Paulo, SP: Editora Martins Fontes. 1992.
HERVIEU-LÉGER, Danièle; WILLAIME, Jean-Paul. Sociologia e Religião -Abordagens Clássicas. Tradução: Ivo Storniolo. Idéias Aparecida. SP: Ideias & Letras 2009.
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel: MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. In: Sobre a Religião. Lisboa. 1975
MAUSS, Marcel. A Prece. In: Oliveira, Roberto Cardoso de (org). São Paulo. Ática. 1979.
RIBEIRO. Pedro de Assis. A Teoria do Trabalho Religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA, Faustino. Sociologia da Religião. Petrópoles, RJ. Editora Vozes, 2003.
TEIXEIRA, Faustino (org.). Sociologia da Religião. Petrópoles, RJ. Editora Vozes. 2003.
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Livraria Editora Pioneira. 1983




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