A memória de Iberê
09/Mai/98
Paulo Sérgio Duarte
IBERÊ CAMARGO /ARTISTA PLÁSTICO/ GAVETA DOS GUARDADOS
diante de um texto autobiográfico, todo leitor tem, naturalmente, exacerbado seu desejo de participar da privacidade do autor. Sua perversão o move em direções inesperadas. Espera pela intimidade que as palavras iriam abrindo pouco a pouco, até que a fantasia da narrativa verossímil, no tom confessional, construa o objeto: a rede de sentimentos e afetos ligados aos eventos secretos, até então preservados. Na verdade, nenhuma autobiografia realiza plenamente esse desejo. O trabalho do memorialista é outro e sempre ganha em objetividade, deixando aos parvos o trabalho de investigar as incongruências diante dos fatos.
"Gaveta dos Guardados", de Iberê Camargo, não foge à regra, mas se diferencia: na sua memória, a anedota é sempre periférica, nunca o centro. A idéia, aliada ao sentimento trágico da presença do mundo, exigência expressionista, domina, do início ao fim, todo o texto, e realiza, numa formidável síntese, o percurso de sua estética plástica. Não me lembro de jamais ter lido texto de um pintor com tal qualidade literária. "Gaveta dos Guardados" foi organizado pelo poeta Augusto Massi a pedido de Maria Camargo, viúva de Iberê. Massi deu-lhe uma sequência impecável. Como convém a uma autobiografia, o leitor percorre das reminiscências de infância à atividade do artista experiente, passando pelas primeiras experiências sexuais do adolescente, mediante curtos capítulos, cuja escrita, despojada de qualquer gratuidade e sempre condensada, encontra-se em sintonia com as preocupações maiores de sua pintura. Mas a organização em sequência cronológica não é banal. A narrativa de Iberê sobre o evento trágico que interceptou sua vida em 1980, quando matou um homem em legítima defesa, encontra-se logo no início do livro. É o terceiro capítulo da primeira parte.
"Gaveta dos Guardados" está dividido em oito partes e é uma belíssima colcha de retalhos muito bem costurada. Traz, ao todo, 34 capítulos. Na verdade, talvez eu esteja cometendo uma impropriedade: chamar de capítulos indivíduos literários que guardam autonomia entre si e que podem ser lidos de forma independente sem prejuízo de qualidade ou sequência. O estudo de Massi -"Carretéis da Memória"- ,que antecede o livro, reafirma esse aspecto e constitui, em si mesmo, uma peça indispensável da bibliografia sobre nosso grande pintor: a acuidade de sua análise esclarece o contraponto da escrita de Iberê, que, embora escassa diante da obra pictórica, a complementa sem ficar à sombra de seu elevado padrão estético.
Apesar da importância dos textos de Ronaldo Brito para a compreensão da obra de Iberê Camargo, falta, ainda, um estudo de síntese do seu percurso magistral na arte brasileira e que, no capítulo expressionista, só encontra paralelo nas gravuras de Goeldi. Quem o realizar tem, agora, em "Gaveta dos Guardados", um poderoso aliado, capaz de sustentar as evidentes transformações da pintura do mestre diante de sua fidelidade a uma visão da existência que não podia se subtrair ao sentimento do mundo. E com justa razão Massi afirma que o livro "não explica a pintura de Iberê. Mas, sem dúvida, fornece elementos que nos ajudam a compreendê-la e nos permitem armar uma ampla rede de correspondências e analogias".
Mas a vida de Iberê se estendeu além da esfera privada e da produção do ateliê. Iberê foi professor de inúmeros artistas, conviveu com escritores, críticos e poetas, militou, como poucos, pela melhoria da qualidade do material artístico produzido no Brasil. "Gaveta dos Guardados" apresenta toda a amplitude de sua experiência cultural. Depois de terminá-lo fui reler sua experiência na ficção -"No Andar do Tempo"-, um livro de contos preciosos seguido de um esboço autobiográfico, publicado em 1988.
Paulo Sergio Duarte é crítico de arte.
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