Preciosas Coisas Vãs Fundamentais
Ciências Humanas e Sociais

Preciosas Coisas Vãs Fundamentais



Garimpo da palavra
Poemas e textos do escultor Sergio Camargo são reunidos pela primeira vez em Preciosas Coisas Vãs Fundamentais


Marco Giannotti

Para os que escrevem
A palavra é uma
Matéria possível
Sergio Camargo


Após 20 anos de sua morte em 1990 surge uma antologia dos poemas e escritos de um dos nossos maiores artistas e escultores, Sergio Camargo. A compilação foi realizada pacientemente por Maria Camargo e Iole de Freitas. Preciosas Coisas Vãs Fundamentais é uma edição cuidadosamente feita pela editora Bei em que se destaca o desenho gráfico apurado. Devemos celebrar o fato de que alguns escritos de artista finalmente fazem parte do nosso repertório editorial, onde se destaca a Gaveta dos Guardados, de Iberê Camargo, e Escritos e Reflexões sobre a Arte, de Matisse. Outro texto vital, Aspiro ao Grande Labirinto, de Hélio Oiticica, infelizmente espera uma segunda edição há anos.

Mediante estes escritos podemos adentrar no fulcro da produção poética destes artistas. Ou seja, uma reflexão que ocorre concomitante à produção plástica, como poiésis, algo muito diferente da reflexão do que ocorre após a obra ter sido feita: trata-se da "aventura práxis" como define o artista. A escrita aqui adquire uma dimensão projetiva, fruto da inspiração e do convívio cotidiano com os dilemas da criação. Sergio Camargo nos diz que graças a Brancusi, seu grande mestre, aprendeu que os artistas trabalham como respiram. Escrever se torna uma forma de produzir arte em outro meio, onde a palavra tem de ser lapidada de forma distinta da pedra.

O embate entre o artista e a pedra é algo que já aparece no Renascimento, quando Michelangelo procura libertar seus escravos do bloco de mármore. Esta angustia neoplatônica aparece também em seu escritos: "Non ha l?ottimo artista alcun concetto ch'un marmo solo in sé non circoscriva" (Não tem o ótimo artista algum conceito/ que um só mármore em si não circunscreve). Como afirma Luciano Miggliaccio, professor da FAU-USP, "todos os poemas têm em comum a comparação entre o processo criativo da forma na escultura e o contraste entre a imperfeição do amante e a perfeição do objeto do desejo amoroso?. O conjunto das imagens de Michelangelo gira ao redor do tema da imperfeição, isto é, do inacabado. Todavia, a imperfeição da obra aparece em relação à perfeição do modelo, que é o conceito, a imagem mental da figura. A figura, por sua vez, apresenta-se como linhas que limitam o cheio do mármore ou o vazio da forma".

O amor pelo mármore de Carrara é comum a estes artistas; aliás, Sergio Camargo chegou a trabalhar na mesma gruta que Michelangelo, me informa sua marchand, Raquel Arnaud. Ambos buscam forma eterna mediante o desenho. A linha para Sergio Camargo é "abstrata, ferramenta para conceitos quando projeta no plano as plantas e máquinas, quando usada na escultura, do desenho das palavras e na arte do desenho". Aparecem nesta bela edição muitas ilustrações que brincam com a ambiguidade primordial entre desenho, grafia e palavra, a palavra amor é escrita e desenhada de várias formas, de modo a adquirir significados distintos, por vezes assumindo uma qualidade concreta, noutras vezes a qualidade lírica de uma linha sinuosa e fugaz.

O texto revela uma preocupação constante com o tempo, seja nas memórias da infância, como também na consciência inexorável da morte : "ao morrer morrerei", " viver também morrer" afirma o artista logo no início de seus poemas. Mas um dos aspectos mais fascinantes deste livro está na herança que Sergio Camargo deixa na forma de poema para os artistas mais jovens. Torna-se muito interessante ver em que medida o que está no texto de Sergio aparecerá posteriormente na obra dos seus interlocutores: ao utilizar o termo "vertebrar planos" podemos antever o aspecto vital e a forma orgânica dos bichos de Lygia Clark; para Mira Schendel o artista recorre à "poesia ilimitada"; "lumiar" diz respeito à obra de Iole de Freitas, em que a linha se concretiza no espaço real, o apreço pela concretude da pedra; "o canto da pedra na pedra" está na obra de José Resende; e a dimensão poética e lúdica da linha surge em Waltercio Caldas, em que a "palavra ... escoa única, constrói e serve lavra". Há algo de premonitório nestas homenagens, pois estes escritos nos levam ao fundo da experiência poética desses artistas. Premonitório também é o juízo que o artista faz da arte contemporânea, que consiste em um "processo contínuo de desmaterialização da obra de arte... o objeto que quase desaparece, se dilui num campo psíquico, espaço lírico, palpitação, espécie de auréola que para si mesmo cria a obra". Um obra que se faz cada vez mais na tomada de consciência do observador mediante uma experiência fenomenológica com a obra, de modo a produzir uma "confluência de conceitos variados sobre um único objeto". Neste sentido, Sergio Camargo invoca o aparecer, o "aparecer parecer" da obra, o embate corporal, algo que o distancia da experiência platônica.

Talvez a "poesia avolume" de fato neste livro, as imagens suscitadas pelas palavras adquirem força gravitacional. A presença da palavra-luz ilumina o poema, a luz física por sua vez anima os relevos de Sergio Camargo, explicitando sua volumetria. O livro de fato torna precioso nosso embate diante de uma obra que está sempre por se fazer na medida em que transformamos nossas experiências de coisas vãs em algo fundamental.

MARCO GIANNOTTI É PINTOR E PROFESSOR DA ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES DA USP.

Jornal O Estado de S. Paulo



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