EDUARDO SUED - CATÁLOGO BILÍNGUE DA MOSTRA DE (23/04 A 05/07/98)
Ciências Humanas e Sociais

EDUARDO SUED - CATÁLOGO BILÍNGUE DA MOSTRA DE (23/04 A 05/07/98)


Vinte anos de Sued
13/Jun/98

FÁBIO MIGUEZ
A mostra de Eduardo Sued no Centro de Arte Hélio Oiticica é uma oportunidade para vermos algumas das obras mais notáveis da arte brasileira contemporânea. Organizada pelo crítico de arte Paulo Sergio Duarte, que também assina um dos textos do catálogo, ela abrange parte da produção dos últimos 20 anos do artista, desde as pinturas coloridas do inicio da década de 80 até os trabalhos prateados feitos recentemente.
A programação exemplar deste Centro vem aliando mostras importantes a catálogos muito bem editados, revelando um cuidado inédito em nossas instituições de arte. O presente catálogo traz ainda um texto de Ronaldo Brito e reproduções de trabalhos que não estão na exposição, oferecendo uma visão abrangente da obra do artista.
O partido tomado por Duarte, tanto na organização da exposição quanto na concepção do catálogo, de abrir mão de uma montagem cronológica para "pontuar momentos diferentes de manifestação do método do artista", mostra como a lógica interna do trabalho de Sued se impõe em seus desdobramentos e ainda como suas questões são constantemente atualizadas.
Concentrando-se na reflexão sobre as telas prateadas recentes, Duarte mostra que elas são a síntese deste método, pois ao efetuar a passagem "da pintura planar à superfície quase esculpida, em relevo", elas literalmente expõem "o encontro conflituoso da idéia o plano, conceito perseguido por toda a pintura moderna com a coisa mesmo pintura e superfície". E consumam "definitivamente a contribuição maior de Sued à pintura moderna no Brasil: a afirmação de sua dimensão pública" e a "ruptura com (sua) tradição intimista".
Nas pinturas "onde diversos valores cromáticos estão em jogo", diz Duarte, "predomina a questão da profundidade sobre a da espessura". O inverso se daria naquelas em que há a presença de "grandes superfícies monocromáticas e o relevo recua para prevalecer a densidade". E nas últimas telas prateadas nenhum destes atributos sobrepõe-se ao outro, pois elas "somam espessura, profundidade e transparência do mundo".
O trabalho de Sued dispensa, a despeito da força de seu método, qualquer parti pris limitador ou ortodoxo, e em sua construção generosa e exuberante contagia artistas de outras origens, mesmo aqueles que supostamente pouco teriam a ver com a marca construtiva de sua poética. Lembro-me do pintor Jorge Guinle (1947-87) descrevendo as telas coloridas da década de 80 como uma impossível mistura de Mondrian e Matisse, em que a unidade do trabalho se daria por milagre. De fato, com toda sua simplicidade, esta descrição dá bem a medida da ambição destes trabalhos.
Sued cria nestas telas, feitas a partir da metade dos anos 80, uma divisão extremamente complexa os conjuntos de cores que nos trabalhos anteriores eram colocados em série são quebrados e os elementos (retângulos e tiras de cores intensas) passam a reagrupar-se de forma mais inesperada. As partes pulsam na superfície da tela criando uma unidade fragmentada que a todo momento é refeita diante de nós. Mesmo nos trabalhos de menores dimensões é impressionante a tensão formada pelo contraponto de cores que vibram inteiras dentro do corte de uma estrutura forte, ainda que aberta.
Nos trabalhos subsequentes, esta estrutura se alarga e ganha uma nova inflexão. A divisão, antes existente, como que se dissolve, formando um cinza cromático e expansivo que só cede espaço a poucas tiras de cor intensa, geralmente nas bordas. Ao lado dos vibrantes trabalhos que os antecederam, estes cinzas calmos, parecem refletir sobre sua própria expansão.
A partir da década de 90, surge, a meu ver, um outro momento fundador na obra de Sued. Os trabalhos deixam de se organizar somente por valores cromáticos (intensidade de tom e sua área) e passam a se organizar sobretudo por diferenças de superfície: áreas recobertas por pinceladas rápidas e ritmadas, áreas brilhantes, áreas opacas ou, ainda, áreas recobertas por outros materiais. Assim, se antes os valores cromáticos pulsavam no interior da tela em relações sempre fortes e abertas, agora este mesmo jogo se dá por intermédio das diferentes superfícies e materiais.
Os elementos se estruturam no interior da tela e esta ganha, muitas vezes, uma feição de natureza-morta. Mas onde deveríamos encontrar garrafas ou flores, encontramos estas tiras de cor que pouco conversam entre si, pois estão situadas numa superfície que lhes é estranha.
A feição de natureza-morta de alguns destes trabalhos os aproximaria de uma poética morandiana e, de fato, algumas pequenas telas nos remetem à pintura de Morandi (1890-1964). Mas, para que este encontro de fato se concretizasse, teríamos que pensar que as garrafinhas de Morandi não conteriam o ar que as circunda ou, por outro lado, que as pinceladas de Sued fizessem organicamente passagens entre as partes. Não fazem. Nestes trabalhos, e antes sem nenhum demérito, estruturas autônomas se apresentam através de uma luminosidade discreta mas vibrante.
É nestas obras que está a origem dos trabalhos prateados mais recentes. Mas, nelas, as superfícies guardavam uma memória da cor ou apresentavam-na em seus diversos estados materiais: mais fosco no preto emborrachado, mais brilhante no preto esmaltado, e assim por diante. Se podemos falar, então, das modulações do preto de Sued, o mesmo não ocorre nestes trabalhos prateados, pois o alumínio não flexiona como cor. Assim, as relações passam a se dar ainda mais na superfície, e não é de estranhar que apareça com mais frequência, então, o procedimento da colagem, ou que o artista "instale" alguns trabalhos, já que as relações internas são enfraquecidas ou deixam mesmo de existir.
Poderíamos pensar que haveria aí um entendimento da pintura como um gênero que caminharia inexoravelmente para o seu fim. E o trabalho refaria, com toda grandeza, é verdade, o caminho já tantas vezes trilhado de uma pintura que abdica de seu espaço. Mas isso não ocorre. Os trabalhos prateados maiores nos mostram, sim, mais um desdobramento de sua pintura. As relações cromáticas moduladas em torno do cinza vibram no interior do material e nós não sabemos se somos expulsos ou absorvidos por seu espaço. O mesmo ocorre com as novas telas pretas, violentas ao primeiro olhar, mas de extrema delicadeza se atentamos para as variações do negro.
E se cabe algum reparo à montagem da exposição, eu diria que estas telas, pretas e prateadas, que convivem tão bem, mereceriam espaço mais amplo, para que pudéssemos caminhar por onde elas atuam com tanta força.
O trabalho de Sued é uma referência para a arte brasileira contemporânea. Ele é, como o situa Ronaldo Brito, "o grande desinibidor das linguagens abstratas de origem construtiva", pois "pode consumar o processo de formalização abstrata empreendido sobretudo por estes dois notáveis (Volpi e Dacosta) pioneiros".
A pintura de Sued é depositária daquilo que melhor foi feito entre nós, em nossa rica tradição construtiva, dos objetos ativos de Willys de Castro (1926-88) à construção de Milton Dacosta (1915-88). E traz de Volpi (1896-1988), quem entre nós melhor entendeu a cor a compreensão daquilo que é sua construção livre. Sempre altivas, estas pinturas fixam, como diz Brito, um "pólo solar, intenso e generoso" e, com sua presença emancipada, nos propõem o desafio de sermos maiores.

Fábio Miguez é artista plástico.


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