Ciências Humanas e Sociais
Epistemologia das Ciências Humanas _ Tomo 1: Positivismo e Hermenêutica
Guaracy Araújo
Professor do Departamento de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais
Ivan Domingues. Epistemologia das Ciências Humanas _ Tomo 1: Positivismo e Hermenêutica. São Paulo: Loyola, 2004. 671 p.
O livro do filósofo mineiro Ivan Domingues representa, para além de um desdobramento do seu O grau zero do conhecimento, uma espécie de súmula _ ou talvez suma, dada a enorme quantidade de temas que se impõe à reflexão do autor _ de seu percurso intelectual, todo ele marcado pelo interesse acerca das ciências humanas. Talvez o impulso inicial do projeto possa ser creditado à leitura de Foucault e à conhecida desqualificação das ciências humanas em As palavras e as coisas (onde estas são consideradas uma mera extensão, heterônoma e instável, das ciências formais, das tematizações modernas sobre a vida, o trabalho e a linguagem, e das analíticas filosóficas da finitude). Contornar a objeção de Foucault _ cuja arqueologia aborda as ciências humanas de um ponto de vista algo externo ao tema em questão, malgrado o subtítulo de As palavras e as coisas _ uma arqueologia das ciências humanas _ significará dar ao que se poderia chamar uma análise propriamente epistemológica o trabalho pesado que consiste em rastrear a cientificidade das ciências humanas por dentro. Esta é, me parece, uma descrição aceitável da tarefa que o autor se impôs em um projeto intelectual de mais de duas décadas e que revela, em Epistemologia das Ciências Humanas _ Tomo 1: Positivismo e Hermenêutica, toda a sua envergadura.
Uma descrição sucinta poderá dar a medida do empreendimento, antes que nos coloquemos uma difícil questão: dentro dos próprios parâmetros do autor, de qual linhagem ou vertente intelectual ele estaria mais próximo (na medida em que toda a obra resiste a assumir compromissos com qualquer linhagem)?
O projeto geral consiste em ampliar o alcance da análise epistemológica das ciências humanas já ensejada em O grau zero..., açambarcando dessa feita pensadores decisivos para o século XX: Durkheim, Weber, Lévi-Strauss, Marx. Os dois primeiros são o objeto desse Tomo I; os últimos serão estudados em sua seqüência. Porém, antes de se aventurar no estudo desses autores, Domingues estabelecerá os marcos teóricos de suas análises: talvez seja este o momento mais precioso para todo aquele que se interesse pelo estudo filosófico das ciências humanas.
É nesse momento _ a saber, o capítulo 1 da primeira parte _ que se apresentará uma das mais produtivas ferramentas conceituais utilizadas pelo autor. Trata-se do argumento do conhecimento do criador, que teria sido explicitamente introduzido na filosofia por Vico e que enuncia: não podemos conhecer da realidade senão aquilo que criamos. A partir desse argumento, Domingues desenvolverá uma tipologia na qual levará em conta cinco variantes ou modelos de cientificidade _ realismo epistemológico, construtivismo, instrumentalismo, operacionalismo, pragmatismo.
Não será essa a única tipologia apresentada pelo autor. Teremos ainda a distinção entre paradigmas e modelos (os primeiros, atinentes à teoria, os segundos, tomados como instrumentos da investigação científica); a análise das formas de explicação/compreensão e dos esquemas mentais que conformam diversas estratégias das ciências humanas. Enfim, a apresentação da tríade "descrição-explicação-interpretação" _ elementos necessários no decurso da pesquisa científica; e uma classificação das diversas vias através das quais as ciências humanas estabelecem seus pleitos de objetividade, uma vez que pretendam evadir-se do real empírico em busca daquilo que o fundamente.
Esses marcos teóricos serão ajustados em cada caso aos autores estudados, ao modo de uma análise epistemológica na qual Durkheim e Weber serão duramente interrogados pelo autor. No tocante a Durkheim, somos apresentados a um pensador menos "positivista" e mais próximo de Kant do que havíamos suspeitado anteriormente. Aliás, Domingues reabilita o positivismo de suas demonizações e caricaturas, ao admitir sua relevância e seu papel fundador no campo das ciências humanas.
Todavia, a análise epistemológica do pensamento de Durkheim _ concentrada em duas de suas obras máximas (O suicídio e As formas elementares da vida religiosa) _ será dura e sem concessões, indicando as instabilidades, flutuações e limites das posições do sociólogo francês. Destaque-se, a esse respeito, o conflito que oporá os aspectos kantianos (relativos à tese segundo a qual a sociedade é a potência das normas, que funciona como uma espécie de "imperativo categórico social", o que se vincula ao aspecto moralista da sociologia durkheimiana) e positivistas da obra de Durkheim e sua concomitante dificuldade em diferenciar juízos de fato e juízos de valor que conduz, segundo o autor, a uma verdadeira "santificação" e estudo acrítico da sociedade.
Algo diferente será a apreciação de Max Weber, autor que será aproximado ao campo da hermenêutica (devidamente apresentado em sua história e desdobramentos científicos e filosóficos) e cuja análise se desenrola por praticamente metade do livro. Percebe-se nitidamente um tom mais favorável, no qual se celebra a importância do pensador alemão para as ciências humanas e a fecundidade de seus conceitos _ tais como o de racionalização _, instrumentos metodológicos _ tal como o tipo-ideal _ e teses _ em que devemos evocar o tema da "jaula de ferro" na qual estaríamos presos por força do formato atual do capitalismo moderno. Não se trata, todavia, de um exame acrítico: Weber será submetido a um crivo severo no qual serão apontadas as dificuldades de seu pensamento, visto por Domingues como um verdadeiro emaranhado de disciplinas, conceitos e análises nas quais não se percebe uma teoria unificadora e se poderá concluir, tal como Aron, por uma "filosofia da cisão" trágica e aporética.
Mas mesmo essa avaliação será nuançada por Domingues, ao qualificar o esforço permanente de Weber em formular ligações e estabelecer um pensamento que abrigue a multiplicidade do real enfocado pelas ciências humanas. Ao final, uma avaliação das possibilidades abertas pelo modelo hermenêutico-compreensivo de Weber, na qual será indicado um limite (a dificuldade do autor de A ética protestante e o espírito do capitalismo em fornecer bases para a correlação entre o capitalismo e a ética protestante), mas também o movimento que levou a uma reversão das relações entre os termos desta correlação: a emergência de um capitalismo laico e despido dos pressupostos da ética protestante. Enfim, Domingues se debruçará sobre a aparente indiferença dos historiadores frente ao conjunto da reflexão weberiana, sugerindo que o potencial desta ainda não foi totalmente aproveitado pela historiografia.
Esses são apenas alguns elementos de um estudo denso, de enorme fôlego, e cujo conteúdo provém não apenas do epistemólogo das ciências humanas, mas também do pensador da cultura, da história e da religião; do filósofo do tempo e de suas aporias desconcertantes; do ontólogo fascinado pelo problema da diferença. Mas não se poderia esquecer aqui uma interrogação, filosófica por excelência e que perpassa toda a obra do filósofo mineiro: trata-se do tema do conhecimento de si. Tema que não poderia ser deixado de lado nas ciências humanas, em que se trata, no final das contas, de um tipo de conhecimento que os seres humanos estabelecem sobre si mesmos. O tema, diversas vezes indicado no decorrer da obra, retornará ao final e revelará uma das intenções cruciais do autor: avaliar o significado _ e, talvez, o esgotamento _ da busca, por parte das ciências humanas, de realizar um conhecimento do ser humano no qual este é tomado como objeto. Após um exame do "conhece-te a ti mesmo" que remonta a Sócrates e avalia autores como Descartes, Kant, Husserl e Fichte _ e a prevalência, na filosofia moderna, de uma análise do conhecimento de si centrada no sujeito_, Ivan Domingues indicará como saída das contradições que se enredam em ambas as alternativas (o conhecimento de si tanto centrado no sujeito como no objeto) a possibilidade de uma inter-relação a partir da qual se tornará evidente a circularidade do processo de conhecimento, representada pela metáfora, elaborada por Valéry, da serpente que engole a própria cauda.
Seria possível alocar as posições desenvolvidas pelo autor em algum tipo de vertente ou linhagem filosófica? Na verdade a proposta de Ivan Domingues representa sobretudo um olhar bastante pessoal acerca de seu objeto de estudo, o que exclui qualquer filiação definitiva. No entanto, e em que pese a aproximação com a epistemologia francesa de Bachelard e Canguilhem sugerida no início do livro, acreditamos que a hermenêutica é o viés filosófico do qual mais se aproxima o autor. Temos três razões ao menos para indicar tal privilégio. Em primeiro lugar, ao estabelecer seus marcos teóricos, o autor sugere a preponderância do elemento interpretativo frente aos aspectos descritivo, explicativo e prescritivo presentes nas ciências humanas. Em segundo, a crítica feita a Durkheim parece assentar-se em um pressuposto hermenêutico que será explicitado pelo autor no tocante a Max Weber: trata-se do uso de contrafactuais, abundantemente aplicados na indicação dos limites da sociologia durkheimiana. Enfim, a simpatia maior demonstrada no tocante a Weber sugere um filósofo mais próximo de suas posições _ que são por sua vez associadas à hermenêutica _ e interessado acima de tudo no sentido assumido pelas ciências humanas no século XX. Todavia, não se pode esquecer que a proximidade com Weber não significa um alinhamento automático às posições da hermenêutica, em especial devido à indicação feita por Domingues acerca da heterogeneidade que se assenhora deste termo (que se dissemina tanto em correntes científicas quanto nas práticas interpretativas e na filosofia moderna e contemporânea). Além disso, teremos que aguardar o segundo tomo do livro para podermos enfim ajuizar um ponto de vista a esse respeito. Até lá, esperaremos com alguma ansiedade.
Kriterion: Revista de Filosofia
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