Ciências Humanas e Sociais
L'Éthique Protestante de Max Weber
DISSELKAMP, Annette. 1994. L'Éthique Protestante de Max Weber. Paris: Presses Universitaires de France. 217 pp.
Emerson Giumbelli
Doutorando, PPGAS-MN-UFRJ
A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, texto de Max Weber publicado originalmente em 1904, foi e continua sendo uma referência fundamental em se tratando de questões que problematizam as relações entre religião e sociedade. Isso se aplica igualmente a situações tão opostas quanto a constituição histórica das cosmologias que definem a "modernidade" ocidental e o significado e impacto dos novos grupos pentecostais no Brasil. A importância de seu assunto e a repercussão de que goza - aliadas ao prestígio de seu autor - conferem-lhe, enfim, um lugar certo entre os "clássicos" das ciências sociais. Esse texto é o tema do livro de Annette Disselkamp, resultado de sua tese de doutorado, apresentada à Sorbonne e orientada por Raymond Boudon. A autora tem uma pretensão crítica, que desenvolve tanto sobre o argumento exposto no texto de Weber e algumas outras partes de sua obra, quanto sobre o modo pelo qual o mesmo texto foi apropriado por outros autores. E, como veremos, a peculiaridade dos resultados a que chega sua análise reside exatamente na exigência do isolamento entre essas duas dimensões.
A reconstrução detalhada do argumento de Weber na Ética Protestante, embora ocupe a segunda das três partes em que se organiza o livro, adquire, de um ponto de vista lógico, precedência sobre todo o resto. Essa reconstrução assume uma forma basicamente descritiva, qualificada, no entanto, pelo esforço em destacar os pontos e as articulações conceituais que constituem uma "tese" a respeito das relações entre protestantismo e capitalismo. Em primeiro lugar, viria a distinção entre capitalismo e "espírito do capitalismo": Weber, na Ética Protestante, não estaria preocupado senão com o segundo, ou seja, com uma mentalidade e um modo de conduta determinados, problematizados em suas características essenciais e em sua gênese e singularidade históricas. A relação desse "espírito" com o capitalismo enquanto sistema econômico e social teria, nesse texto, permanecido indeterminada. Em seguida, Weber aponta as respectivas contribuições do luteranismo e do calvinismo/puritanismo para a constituição e conformação desse "espírito": enquanto o primeiro, através da associação do Beruf religioso (vocação) às ocupações seculares, teria aberto o caminho para a valorização do trabalho e de seus frutos; o segundo, através da noção de predestinação à salvação, teria imprimido ao trabalho (e aos seus ganhos) um sentido de ascese. Se no caso do luteranismo, as conclusões de Weber decorrem da análise de textos doutrinários, já o impacto do calvinismo/ puritanismo é pensado sob a forma de uma motivação psicológica. Assim, dado que a insondabilidade dos desígnios divinos tornava-se insuportável em um tempo no qual a certeza da salvação era indispensável, formulou-se, nos meios puritanos, a idéia de que o sucesso profissional consistia um sinal visível da eleição. Por fim, Disselkamp procura mostrar que Weber postula uma relação necessária entre as disposições produzidas por exigências religiosas e o "espírito do capitalismo", na qual as primeiras ocupam precedência causal sobre o último.
Partindo dessa reconstrução, com seus três pontos fundamentais, é que a autora elaborará uma "tipologia crítica" de várias referências bibliográficas que teceram considerações e avaliações sobre a Ética Protestante. Trata-se da primeira parte do livro, na qual Disselkamp contempla dezenas de trabalhos, organizando-os de modo a constituir uma espécie de jogo dos erros: várias formas de mal-entendidos a respeito do argumento efetivo de Weber. Assim, há diversos autores que pensam estar refutando Weber quando mostram que a relação entre protestantismo e capitalismo não é, de uma perspectiva histórica, constante ou necessária, deixando de perceber a autonomia conferida ao "espírito" na Ética Protestante; há os que o defendem em termos teóricos, afirmando que tal relação é postulada enquanto afinidade, quando Weber procurava apontar uma causalidade; e há os que o atacam pela análise do ensinamento moral protestante explícito, mostrando sua distância da ética capitalista, sem atentar para que Weber estava interessado nos efeitos psicológicos desses ensinamentos. A mesma preocupação em resgatar a especificidade e autenticidade da Ética Protestante manifesta-se quando Disselkamp procura inserir o texto de Weber entre percepções anteriores e contemporâneas sobre a relação entre protestantismo e progresso econômico. Revela-se que esse vínculo já era sustentado por textos do século XVII e tornara-se, no século XIX, um dos dogmas da propaganda burguesa protestante, mas segundo fórmulas distintas daquelas utilizadas por Weber.
A autora, portanto, quando formula os critérios de sua tipologia, desloca o foco da mera postulação da existência de relações entre protestantismo e capitalismo para o plano bem mais complexo dos termos em que se colocam essas relações e da sua lógica. Essa interessante estratégia é, porém, contrabalançada por uma perspectiva estreita, que chega a resultados quase sempre negativos expressos na intenção de revelar os "mal-entendidos" sofridos pela tese weberiana na sua apropriação por outros autores. Daí que a tipologia consiga cobrir apenas os autores que compreenderam mal a Ética Protestante, deixando de fora todos os demais. Outra possibilidade a partir do mesmo material continua sendo a investigação do "Weber" que as apropriações produziram ao longo do tempo, ou, paralelamente, mas partindo dos mesmos princípios, a elaboração de uma leitura de Weber informada por questões atuais. Disselkamp, ao contrário, optou por uma incursão visando restabelecer o Weber de 1904 no que considera ser a especificidade de sua "tese". É a uma crítica dessa "tese", devidamente depurada dos "mal-entendidos", que se dedica a terceira e mais extensa parte do livro de Disselkamp.
Um primeiro tipo de crítica à Ética Protestante incide sobre a lógica do argumento, apontando certas contradições. A principal delas estaria no duplo caráter assumido pela ética puritana, simultaneamente uma perversão do dogma da predestinação e um sinal de distinção expresso no sucesso profissional. Mais detalhadas são as críticas históricas, elaboradas pelo recurso a historiadores do protestantismo e pelo exame dos escritos de Calvino, de pregadores puritanos e de livros populares. Elas procuram mostrar que a idéia de predestinação não gerou os efeitos afirmados por Weber: o desespero em que caíam muitos fiéis convencidos de sua danação significa que, para eles, a predestinação era fielmente aceita; nas pregações puritanas, a exortação às "boas obras" nelas aparecia como antídoto contra o relaxamento ético, enquanto a certeza da salvação viria através da fé. Disselkamp considera que Weber tinha razão ao aproximar as virtudes puritanas da ética burguesa (ambas concordavam no estímulo ao trabalho lucrativo, na condenação da perda de tempo, nas exigências de ordem e disciplina), mas refuta-o em se tratando de Lutero, pois uma análise dos escritos do reformador demonstra que nada há de moderno nos significados atribuídos à categoria Beruf.
Há, por fim, as críticas de viés teórico e metodológico, repetidamente anunciadas no livro: a "tese" da Ética Protestante, em sua própria formulação, peca ao aceitar a possibilidade de explicação de uma mudança nas atitudes econômicas pela sua remissão a uma crença religiosa, independentemente das "circunstâncias sociais e econômicas efetivas" em que isso ocorra. Ou seja, Weber equivoca-se tanto ao distinguir uma mentalidade de suas condições concretas de existência, quanto ao postular sua relação unívoca com a doutrina protestante. As alternativas propostas por Disselkamp assumem duas formas distintas. De um lado, compila autores cujas análises da história do protestantismo, ainda que divergentes, apontam para a necessidade de incorporar o "contexto social". De outro, recorre a um outro texto do próprio Weber (As Seitas Protestantes e o Espírito do Capitalismo), o qual, segundo ela, permite explicar a disseminação do ethos burguês pelos anseios de reconhecimento social dos indivíduos, atendidos pela sua adesão às rigorosas seitas puritanas.
Vista em seu conjunto, a trajetória percorrida por Disselkamp em sua crítica a Weber parece inacabada e, em certos aspectos, equivocada. Depois de determinar qual seria sua "tese", depurando-a dos "mal-entendidos", propõe uma avaliação que refaça o argumento weberiano e, portanto, se inicie por uma análise da história das doutrinas protestantes. O resultado dessa análise é negativo: o ethos burguês não se vincula necessariamente nem com os efeitos da idéia de predestinação, nem à doutrina luterana. Um empreendimento que produzisse uma resposta positiva sobre as relações entre protestantismo e capitalismo é substituído pela mera exigência de que o "contexto social" ou o "reconhecimento social" sejam levados em conta. O problema é que existem muitas formas de se fazer isso e essa questão não é enfrentada por Disselkamp, nem mesmo na forma de uma sistematização, também crítica, das contribuições dos autores que investem nessa linha. A apresentação de um segundo texto de Weber, ao contrário de resolver questões, cria mais um problema: como o mesmo autor pôde formular respostas tão distintas (no entender de Disselkamp) a respeito de um único tema? Finalmente, a distinção entre suas duas críticas torna-se prejudicial às próprias intenções da autora: se Weber se equivocou quanto a sua "tese", não é possível que os que "erraram" sobre ele tenham "acertado" quando se trata das relações entre protestantismo e capitalismo?
Enfim, o livro de Disselkamp constitui um recurso valioso para a compreensão crítica do texto de Weber e para o acompanhamento dos debates que se seguiram, além de trazer aportes interessantes sobre a história inicial do protestantismo. No entanto, nem explora as várias perspectivas aplicáveis ao campo intelectual em que se desenvolveram a formulação e recepção daquele texto, nem responde totalmente às questões que levanta a propósito da validade dos argumentos weberianos.
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