ENGENHEIRO AARÃO REIS: O PROGRESSO COMO MISSÃO
Ciências Humanas e Sociais

ENGENHEIRO AARÃO REIS: O PROGRESSO COMO MISSÃO


Racionalização do sonho

Tereza A. P. De Queiroz
HELIANA ANGOTTI SALGUEIRO

Heliana Salgueiro trabalha com a construção material de idéias, com a racionalização do sonho, com a passagem da abstração à matéria. Em vários de seus estudos, examina os sentidos da transferência e da transformação de modelos europeus no Brasil, sobretudo das representações urbanas e arquiteturais francesas nas cidades brasileiras.
Em "Engenheiro Aarão Reis", para detectar o processo imaginário que se traduz concretamente na criação da cidade de Belo Horizonte, a autora vale-se de uma reflexão histórica centrada na biografia intelectual. Mediante a análise pormenorizada das idéias e práticas de Reis, responsável pelo projeto urbanístico da capital mineira, envereda por domínios da história sociocultural. Associa normas e valores coletivos à singularidade de uma formação profissional específica e de suas estratégias na consolidação de um plano, que se revela inteiramente ancorado na historicidade. Logo, reconhece a ação individual, mas sempre em sua interação com o coletivo.

Dentro dos moldes da micro-história italiana e da história sociocultural dos "Annales", H. Salgueiro delineia igualmente o campo de ação mental e prático próprio aos engenheiros politécnicos do século 19; os modelos de racionalização territorial e urbana, o discurso baseado nas necessidades do moderno, do sanitário, da centralização administrativa, de novas redes de comunicação e de embelezamento dos espaços públicos; a preocupação com os "desafios nacionais".
Como ferramenta básica de aprofundamento nas representações, no ideário, na captação da visão da técnica e do progresso no século 19, francês e brasileiro, encontra-se uma ampla documentação escrita e um considerável acervo de imagens. Essas fontes, sobretudo os escritos de Aarão Reis, surgem minuciosamente exploradas no corpo do trabalho. Com muita argúcia, Heliana Salgueiro reconstitui uma epistemologia cultural da profissão de engenheiro.
A questão das transferências culturais é analisada em profundidade, no paradoxo entre o colonialismo cultural -a preponderância das idéias francesas- e o nacionalismo implícito/explícito, por vezes romanticamente exacerbado, dos textos de Reis. Segundo H. Salgueiro, não se trata mais de falar de "influências", "reflexo" ou "derivação" no discurso e na práxis do oitocentismo brasileiro: "A dimensão histórica e as condições locais de leituras e práticas permitem-nos colocar a questão sob o ângulo dinâmico da apropriação, que supõe, na comparação, as diferentes experiências de cada "case study', em termos das competências dos atores sociais e das condições de possibilidade dos contextos em que atuam".
Os interesses de base do engenheiro Reis desvelam o tratamento particularizado de temas gerais característicos do século 19: a instrução pública e profissional, o estudo da eletricidade, das estradas de ferro, do abastecimento de água, da matemática, da geometria, do direito administrativo e da economia política.
No substrato dos textos de Reis situa-se a defesa da civilização industrial, do progresso das cidades, a filosofia de Augusto Comte. Uma opção pessoal por uma luta em prol de uma "missão civilizadora" no Brasil, "do estudo das belas artes sobre as crenças religiosas, a moralidade e as idéias políticas, um ensino profissional (voltado) para as artes mecânicas, o comércio, a indústria e sobretudo para as ciências do engenheiro, o ramo mais importante do ensino". Mas também a busca da brasilidade na ciência, na literatura e na arte, além do mimetismo francês; "a noção de um patriotismo ligado à natureza ou aos elementos da paisagem natural do País"; e igualmente uma inquietação com problemas sociais de distribuição de renda no Brasil.
À maneira dos positivistas, no entanto, Reis vê a política com reservas; acredita que o poder deveria ser exercido pelos sábios, pela moralidade: "Que as preocupações sinceras pelo bem público e pelos reais interesses nacionais sobrepujem as lutas estéreis de paixões ruins (...); é mister, primeiro, que reconstruamos os alicerces do edifício nacional sobre as sólidas bases da ordem material e da disciplina mental". Seu discurso, típico do século 19, ainda pode ser ouvido na boca daqueles que, hoje em dia, se proclamam "modernos" e bradam em prol da "neutralidade" tecnocrática e apolítica. No mesmo registro destes, Reis vê na parceria do Estado com a iniciativa privada uma saída para acelerar o andamento de obras públicas.
O texto de H. Salgueiro, sempre claro e articulado, nos permite uma reflexão sobre os caminhos utópicos do imaginário das elites brasileiras. E suas relações ou distanciamentos com o cotidiano, com as tramas das resistências daqueles que ignoram os sistemas teóricos das racionalidades impostas de cima para baixo. Sobretudo permite vislumbrar o Brasil como sujeito permanente das apropriações possíveis de culturas exóticas, sempre ditas como modernas ou civilizadas. No século 19, da cultura européia, francesa. No século 20, da cultura da globalização.
Tereza Aline Pereira de Queiroz é professora de história da USP.

Folha de São Paulo



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