Ciências Humanas e Sociais
BRANCOS E NEGROS EM SÃO PAULO (1888-1988)
G.R. Andrews
Relações raciais no Brasil
14/Nov/98
Fernanda Peixoto
Estudos realizados por estrangeiros têm enriquecido o rol de títulos sobre o tema das relações raciais no Brasil. A escravidão africana, a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre, a comparação entre os sistemas escravistas brasileiro e norte-americano e, mais recentemente, o movimento negro foram (e são) pontos fundamentais na pauta de pesquisa de vários brasilianistas. O trabalho de G.R. Andrews, publicado originalmente em 1991, filia-se a esta linhagem de estudos de um modo particular: nele se cruzam as tradições nacional e estrangeira, com as quais dialoga de modo sistemático. Cruzam-se, ainda, a perspectiva histórica e a indagação sociológica diante de seu objetivo primeiro: o rastreamento das alterações nos padrões de desigualdade entre negros e brancos no país, da abolição da escravatura ao seu centenário.
Tendo se iniciado no tema das relações raciais na América do Sul com uma pesquisa sobre a história dos negros na Argentina no século 19, Andrews volta-se para a cena brasileira da perspectiva do grupo social subordinado. Isto é, procura resgatar o papel dos "dominados", de suas ações e decisões, na "determinação do curso da transformação histórica". Ao repassar a história do ponto de vista dos excluídos, o livro assume de saída uma opção teórica e política que irá informar a análise realizada. O autor visa introduzir a dimensão política na história social, recuperando o negro como ator e enfatizando as interações, ou as "barganhas", como ele prefere dizer, entre Estado e sociedade no Brasil.
Desta forma, a história das desigualdades raciais no país é traçada a partir do impacto de políticas públicas sobre as relações entre negros e brancos, como também do ponto de vista das repercussões das ações de organizações negras nos rumos tomados pela história nacional. No que diz respeito ao eixo temporal escolhido, a análise tem início com o fim da escravatura e com a competição entre negros recém-libertos e imigrantes estrangeiros no mercado de trabalho; passa pela discussão das dificuldades de ascensão social do negro, a partir do exame da formação das classes médias, inventariando as pressões exercidas pelas organizações políticas negras; e, no período recente, interroga os rumos do movimento negro contemporâneo e o futuro das relações raciais no país.
A recuperação da dimensão política da história das desigualdades raciais no Brasil, mediante a compreensão das relações entre Estado e sociedade, mostra-se profícua quando o autor se detém sobre os mecanismos concretos de produção dessa desigualdade, a partir de material de pesquisa. Por exemplo, nos capítulos 3 e 4, ele se debruça sobre as competições entre negros e imigrantes europeus no mundo do trabalho pós-Abolição, mostrando como os contornos do mercado de trabalho em São Paulo, de 1890 a 1930, foram definidos pela intervenção do Estado. Conteúdos raciais, mostra ele, estiveram inscritos nas ações intervencionistas estatais, em consonância com o racismo científico e com a ideologia da vadiagem do negro que tingiam o ideário da época. Os investimentos realizados na mão-de-obra estrangeira traduziam as preferências raciais e étnicas do Estado e dos empregadores, deixando como resultado a exclusão dos negros da vida produtiva.
Conflitos raciais pautaram as relações entre empregadores e empregados, como também as relações no interior da classe trabalhadora. Dissensões raciais marcariam o movimento operário paulista do início do século, e os patrões exploraram-nas como puderam, indica a imprensa do período consultada. Não apenas os líderes operários imigrantes manifestavam atitudes discriminadoras, como os trabalhadores negros acabaram por constituir uma reserva de desempregados facilmente recrutada nos períodos de greve. Neste contexto, as razões para a explicação da exclusão negra do mercado de trabalho paulista, no primeiro estágio da industrialização, devem ser procuradas não no "meio social anômico" em que estavam mergulhados os negros em função da escravidão, ou numa suposta superioridade do trabalhador europeu em termos de qualificação, como indicam certas passagens de Florestan Fernandes, mas nas políticas do Estado que descartaram os negros por intermédio de medidas de proteção e incentivo à mão-de-obra imigrante.
Se nos capítulos resumidos acima o autor realiza uma análise detida e interessante das relações entre negros e brancos no mercado de trabalho, bem como da ação estatal como peça fundamental na regulagem dessas relações, nos demais a dimensão política da história, reivindicada desde a "Introdução", escorrega para uma politização excessiva que compromete as potencialidades da análise e o exame do material apresentado.
Nesta história politizada, e politicamente correta, a paixão leva a exageros interpretativos, como por exemplo à leitura da Abolição de 1888 como uma "revolução", ou como um momento em que os negros impuseram "sua vontade à política nacional" e os fazendeiros aceitaram a Lei Áurea, "imposta sobre eles pela sociedade em geral". Resvala também em interpretações no mínimo apressadas do pensamento social brasileiro. Se a obra de Gilberto Freyre alimentou uma imagem positiva da nossa sociedade colonial, por meio do mito da "democracia racial", ocultando a exploração e os conflitos engendrados pela lógica escravista, isso não significa que Freyre tenha considerado a escravidão "positiva para o desenvolvimento social e cultural brasileiro", nem que a noção de democracia racial seja sinônima de igualdade de oportunidades entre brancos e negros, ou de ausência de conflitos e tensões raciais.
O que Freyre recupera positivamente é a contribuição negra para a formação do país, enfatizando a importância da mestiçagem e do hibridismo na conformação do amálgama tenso, mas equilibrado, que configura a sociedade nacional. Sabemos também, ajudados pelo trabalho de Ricardo Benzaquem de Araújo ("Guerra e Paz", Editora 34), que os elogios da proximidade sexual e cultural entre casa-grande e senzala, da plasticidade do português e da confraternização entre negros e brancos no Brasil colônia convivem no texto de Freyre com o reconhecimento da violência inerente ao sistema colonial (fato que o próprio Andrews reconhece em nota).
A obra de Florestan Fernandes, por sua vez, é recuperada positivamente em função da crítica que dirige ao "mito da democracia racial", mas não escapa dos atropelos de uma leitura por demais interessada. Os trabalhos de Florestan sobre o negro e as relações raciais são tomados como bloco unívoco, o que leva a confusões entre as teses apresentadas em "Negros e Brancos em São Paulo", do início dos anos 50, com os pontos de vista defendidos em "A Integração do Negro na Sociedade de Classes", de 1965. Nesta obra, Florestan assume uma atitude cética em relação à integração do negro e enfatiza mais claramente a constituição problemática da cidadania em função da exclusão social e da marginalidade do negro na sociedade brasileira.
Parece impossível não simpatizar com uma visão crítica da sociedade brasileira, que sublinha nossas desigualdades raciais e sociais; difícil não elogiar uma postura política que auxilia a tornar visíveis o racismo e a discriminação racial entre nós. As concordâncias políticas, entretanto, não impedem a localização das fragilidades da obra.
A dificuldade maior, perceptível não apenas neste trabalho de Andrews, mas em vários outros, é conseguir enfrentar a peculiaridade das relações raciais no Brasil ou, como vem insistindo Peter Fry em textos recentes, pensar por que o Brasil é diferente. Nem melhor, nem pior, apenas diverso. O desafio que se coloca para o analista, portanto, é encarar as particularidades de nossa situação, pensando-a em seus próprios termos e não a partir do modelo norte-americano, como costuma acontecer. E é isso que não consegue fazer o trabalho de Georges Andrews.
Fernanda Peixoto é professora de antropologia da Universidade Estadual Paulista (Araraquara)
Folha de São Paulo
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