“Não tem ninguém ajudando o Haiti. É o Haiti que está ajudando todo mundo”, disse ao Jornal da Unicamp o haitiano Franck Seguy, que acaba de defender sua tese de doutorado “A catástrofe de janeiro de 2010, a ‘Internacional Comunitária’ e a recolonização do Haiti”, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação do professor Ricardo Antunes.“A ajuda internacional ao Haiti é a grande mentira que a mídia conta”, disse o pesquisador. Em sua tese, ele sustenta que o catastrófico terremoto de janeiro de 2010, que deixou cerca de 300 mil mortos e 2,3 milhões de desabrigados, deu ao que ele chama de “Internacional Comunitária” – o conjunto de países hegemônicos e organizações a eles vinculadas, comumente chamados de comunidade internacional – a oportunidade de impor a recolonização do país. “Literalmente, o Haiti está se tornando uma colônia”, disse ele. “Não uma colônia como antigamente, a colônia de uma metrópole, mas é uma colônia do capital transnacional”.
O projeto de recolonização, afirma Seguy, já ficava claro no texto do “Plano de Ação para a Recuperação e o Desenvolvimento o Haiti” (PARDN), apresentado pelo governo haitiano dois meses depois do terremoto. “O governo haitiano escreveu um plano de reconstrução que ele apresenta aos seus parceiros da mal chamada comunidade internacional – não à sociedade civil haitiana. Só que quando analisei o plano para minha tese, descobri que é na verdade apenas uma atualização de um estudo realizado por um economista da Universidade de Oxford que se chama Paul Collier, que foi enviado ao Haiti pelo Secretário Geral da ONU, e que publicou o relatório dele em janeiro de 2009”, explicou o pesquisador. “Quer dizer: o que está sendo implementado hoje no Haiti, como ‘reconstrução’, na verdade é um plano de antes do terremoto”.
“O terremoto atingiu o Haiti na região onde fica a capital. O Haiti é dividido em departamentos. O departamento onde fica a capital, Porto Príncipe, se chama o Departamento Oeste. E esta região foi a que foi atingida, o Departamento Oeste e um pouco do Sudeste. Porém, tudo o que está acontecendo em torno da reconstrução do Haiti está acontecendo no Nordeste”, relatou o pesquisador. “Do outro lado da ilha. O plano não está atendendo às necessidades criadas pelo terremoto. O plano está implementando as conclusões do estudo anterior ao terremoto, que é o Relatório Collier”. Levantamento da agência de notícias Reuters dá conta de que, no início deste ano, ainda havia mais de 150 mil pessoas morando em tendas e abrigos improvisados em Porto Príncipe, e que não têm nem água limpa e nem sequer pias para lavar as mãos.
Uma das propostas de Collier é de que o Haiti se aproveite de uma série de leis dos Estados Unidos, que permitem que produtos manufaturados haitianos entrem no país sem pagar tarifas, para estabelecer uma série de zonas francas para a produção têxtil. Diz texto de Collier, citado na tese:
“No setor de vestuário, o custo principal é o da mão de obra. O Haiti sendo relativamente pouco regulamentado, o custo da mão de obra aguenta perfeitamente a concorrência com a China, que constitui a referência padrão. A mão de obra haitiana não somente é barata, também é de qualidade. Com efeito, dado que a indústria do vestuário já foi anteriormente muito mais desenvolvida do que o é atualmente ali, o Haiti dispõe neste setor de uma importante reserva de mão de obra experiente”.
O foco do investimento supostamente enviado para a reconstrução do país, explica Seguy, vem sendo a zona franca de Caracol, no nordeste haitiano, onde está sendo implantado um parque industrial têxtil exportador. A tese afirma que o parque ocupa “250 hectares de terras cultivadas por famílias campesinas, que o governo expropriou”. “No dia 11 de janeiro de 2011, ou seja, um dia antes do primeiro aniversário do terremoto, o governo haitiano havia assinado um acordo com a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, junto a representantes do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a companhia de têxtil coreana, Sae-A Trading, em virtude do qual os 366 lares de agricultores que trabalhavam 250 hectares de terras das mais férteis do município precisavam ser expropriados para deixarem o lugar à construção de uma zona dita industrial”, diz a tese. As famílias que tiveram suas terras desapropriadas ainda aguardam indenização.
Franck não acredita que a instalação de zonas industriais exportadoras como a Caracol possa levar ao desenvolvimento econômico do país. “O Haiti é visto como espaço para produzir, não como espaço para consumir. O trabalhador haitiano na zona franca, que produz as camisas, jeans ou tênis nunca vai consumir esses produtos. Por quê? Porque o salário dele, o salário do haitiano hoje, é de 200 gurdes (cerca de US$ 5) ao dia. Quer dizer, está se utilizando do Haiti para produzir, mas não se enxerga o Haiti, o trabalhador haitiano, como um consumidor”.
Além disso, lembra ele, a industrialização está se dando por meio de produção têxtil, sem transferência de tecnologia e sem investimento firme do empresário, que em geral é estrangeiro. “A construção do espaço não é investimento do capitalista. O investimento para construir a fábrica é o dinheiro que vai para o Haiti em nome da ajuda ao povo haitiano. Se em alguma região do mundo a mão de obra for mais barata que a haitiana, a empresa não tem dificuldade em se mudar. O capitalista que está explorando a mão de obra haitiana não tem compromisso nenhum com o Haiti. Porque ele não tem nada a preservar ali”.
O pesquisador não é otimista quanto à possibilidade de uma melhor inserção do Haiti na economia global: “A divisão internacional do trabalho já decidiu qual o papel do Haiti: fornecer mão de obra barata”. Mais de 80% dos haitianos com curso superior deixam o país, disse ele. “Há dois fluxos migratórios: o que é chamado de cérebros, principalmente para o Canadá, e o outro, de trabalhadores manuais, para as ilhas da circunvizinhança do Haiti, e agora cada vez mais para o Brasil”. Franck afirma que parte do fluxo de trabalhadores haitianos pouco qualificados em direção ao Brasil parece clandestino, mas que na verdade as rotas são bem organizadas, e conhecidas das autoridades. “Se não estivesse atendendo a interesses no Brasil, elas poderiam ser facilmente fechadas”, declarou.
Tropas brasileiras O Exército brasileiro chegou ao Haiti após o levante de 2004, que culminou com o exílio do então presidente Jean-Bertrand Aristide. O Brasil assumiu o comando militar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah) em junho daquele ano. Franck é cético quanto à necessidade da presença de forças internacionais em seu país.
“Tiveram que vender a ideia de que o país estava em guerra e precisava ser pacificado. E desde que cheguei ao Brasil essa é a pergunta que me fazem: sobre a guerra do Haiti ou missão de paz no Haiti. Não, o Haiti nunca precisou de missão de paz, nunca teve guerra”, disse. Além disso, o pesquisador lembra que o próprio nome da missão é de “Estabilização”, não de paz. Ele compara a situação de desordem que levou à intervenção internacional no Haiti aos conflitos dentro das favelas do Rio de Janeiro. “Esses conflitos existem, e justificam muitas coisas, mas não dá para dizer que o Brasil esteja em guerra e precise ser pacificado”, comparou.
Assim como o capital internacional se serve das zonas francas, o Brasil se serve do Haiti para ganhar projeção no cenário internacional, tentar comprovar sua capacidade a ocupar uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU e para treinar suas tropas, disse o pesquisador. “O Haiti serve para isso. É um campo de treinamento. Praticamente todos os soldados brasileiros que já foram para o Haiti estão, agora, sendo utilizados para controlar o Rio de Janeiro, porque a situação é muito parecida”. O papel do Brasil no Haiti, disse ele, é de repressor dos movimentos sociais de contestação. “Em 2008 houve movimentos contra o encarecimento da cesta básica e, em 2009, muitos movimentos operários pelo reajuste do salário mínimo. Qual o papel do Exército brasileiro em tais ocasiões? Repressão. O papel do Brasil é o papel policial, de reprimir qualquer movimento contra esta ordem que se está caracterizando no Haiti”.
Futuro O Haiti é hoje um país sem soberania, afirma Franck, onde o governo nacional tem menos poder que um governador de Estado. “Se o Haiti fosse anexado aos EUA, seu governador teria mais autonomia que os dirigentes haitianos têm agora”, disse ele. O pesquisador não vê uma saída para o país que passe pela “internacional comunitária”, pelo governo nacional e as classes dominantes que colaboram com ela.
“A saída seria pelo outro lado, pelo lado dos movimentos sociais, das lutas sociais, só que este lado também está comprometido: porque hoje, o que existe de movimentos sociais no Haiti vive de financiamento estrangeiro, por meio das ONGs que se dizem ONGs de esquerda”.
Franck desconfia das ONGs, mesmo das que se declaram de esquerda. O texto de sua tese traz uma crítica à “solidariedade de espetáculo” das organizações internacionais. Referindo-se ao apoio prestado pelas ONGs aos camponeses haitianos, ele escreve: “tanto as ONGs da sociedade civil quanto os movimentos sociais, até as organizações de bairros urbanos e o próprio movimento camponês contemporâneo, quando se organizam, o fazem com o intuito de se metamorfosear em instituições de gestão de projeto de desenvolvimento, em vez de colocar a questão agrária – questão fundamental – na agenda político-ideológica”.
“A ONG pode até se dizer de esquerda, mas a ONG, de esquerda ou de direita, funciona à base de financiamento. E tem de prestar contas, periodicamente, ao financiador. O funcionário da ONG pode acreditar que é um militante, mas não pode ser um militante contra o capital. Porque ele é um funcionário que tem de prestar contas”.
PublicaçãoTese: “A catástrofe de janeiro de 2010, a ‘Internacional Comunitária’ e a recolonização do Haiti”
Autor: Franck SeguyOrientador: Ricardo AntunesUnidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)