Os dilemas da atualidade
Agnaldo Farias
A pouca familiaridade do brasileiro com as artes plásticas é um fato. Mesmo a literatura, arte mais intimista, interessou-nos já na infância com o ritmo ditongado do "café com pão" do Bandeira e, mais tarde, sob a forma proverbial de indagação desalentada, incorporamos o "E Agora José?", do Drummond. No entanto, aquele que ora me lê pode ter chegado até aqui sem a mais vaga lembrança das esculturas de fundo surrealista de Maria Martins ou da concisão com que Amilcar de Castro enfrenta o aço. Isto para não lembrar que, se os museus vêm arrastando multidões para ver o Monet, o Rodin e a Claudel, o simples tropeço na palavra "instalação", filha primogênita da escultura, ainda provoca terror, repulsa e urticária em muito cidadão pretensamente acolchoado na alta cultura.
Seguindo a voga das megaexposições e, com vistas a recuperar o tempo perdido, os anos 90 têm sido pródigos em oferecer visões panorâmicas da arte brasileira. Sejam elas coletivas -"Bienal Brasil Século 20", "Brasil dos Viajantes", "Coleção Gilberto Chateaubriand"- ou monográficas -Mira Schendel, Ernesto de Fiori, Tarsila do Amaral-, todas vêem acompanhadas de catálogos, não raro parrudos como uma boa lista telefônica.
Com o lançamento do catálogo "Tridimensionalidade", o Instituto Cultural Itaú (ICI) passa a integrar o rol das instituições preocupadas em oferecer publicações casadas com exposições referenciais. E, considerando a ausência de publicações sobre o tema e a penetração que os produtos do ICI vêm tendo em escolas, universidades, museus e centro culturais de todo o país, a publicação de um catálogo desta qualidade será inestimável. Contribuirá para amenizar essa triste ignorância sobre aquela que, neste final de século, é indiscutivelmente a fração mais inventiva da nossa produção artística.
O apuro do projeto gráfico do catálogo de "Tridimensionalidade", de autoria de Ricardo Ribenboim, deixa vazar já na capa sua amplitude temporal e conceitual (os termos são, como se verá, interligados). Associar uma escultura de Brecheret ao conceito de tridimensionalidade significa abrir um arco dentro da produção brasileira que tem seu início com a construção do conceito moderno de escultura e vai até o ponto em que esse conceito entra em crise. Porque, se é verdade que reconhecemos como escultura a "Tocadora de Guitarra", de Brecheret (pág. 44) -um volume de mármore a derramar sombra no espaço, a dividi-lo com sua massa densa e opaca-, o que dizer, por exemplo, da obra de Waleska Soares (pág. 263), uma sucessão de bancos de igreja com a superfície feita de cera de abelha e marcada por joelhos?
Mesmo aos olhos leigos, que reconhecem como escultura um elenco reduzido de materiais, técnicas e resultados formais, o catálogo dará a ver que esse conceito passou a não dar conta do universo tratado, ao menos a partir dos últimos 30 anos. A obra assegurará ao leitor um repertório que o fará compreender os dados do problema, inclusive a troca do conceito de escultura pelo de tridimensionalidade. E, caso este termo soe demasiado genérico, o compassivo leitor deverá creditá-lo à prudência do pensamento crítico, de ordinário afoito quanto às classificações, em abordar um território tão vasto.
Para montar esse panorama que abrange da escultura moderna até os dilemas da atualidade, fez-se uma divisão em quatro segmentos. Para tratar de cada um deles convidou-se uma autoridade no assunto. Duas delas, Annateresa Fabris e Tadeu Chiarelli, igualmente responsáveis pela supervisão da pesquisa que alimentou o banco de dados, a exposição e o catálogo. Em relação a este último, Fabris ocupa-se da escultura modernista, com destaque para a obra de Victor Brecheret. Fernando Cochiaralle, por sua vez, trata das correntes abstratas -entre elas, o concretismo e o neoconcretismo-, que floresceram ao final dos anos 40 até o início dos 60, enquanto Celso Favaretto justifica porque os anos 60/70 -onde prevalecem a nova figuração e a arte conceitual- merecem ser encarados como revolucionários. Por último, coube a Chiarelli tratar das tensões e rumos da produção atual.
Analisados isoladamente os textos são claros e elucidativos, fazendo jus à reputação de seus autores. Sua leitura fica ainda mais enriquecida pela consulta à seleção de obras reproduzidas e de excertos críticos que vêm em sequência a eles. Entretanto, sob o ângulo da orientação editorial, pesam alguns aspectos tópicos e de ordem mais geral que, resolvidos, dariam um melhor acabamento a um trabalho, desde já, indispensável.
Indo do particular ao geral, começo por lembrar que não é razoável que a copiosa e necessária citação de artistas que serviram de referência ao nosso meio artístico -Rodin, Brancusi, Picasso, Tatlin, Gabo etc.- não venha acompanhada de nenhuma ilustração de suas obras. Mais não fosse, "Tridimensionalidade" tem como objetivo atingir o maior público possível, público carente de informações e que frequentemente não terá uma bibliografia de apoio para consultar. Em artes plásticas a informação visual é tudo, e sem ela o leitor é deixado na árida e apavorante companhia de um monte de nomes e descrições abstratas. Ademais, a opção pela ausência de legendas das esculturas reproduzidas também concorre para o truncamento da leitura do catálogo, sobretudo porque não consta no índice a presença das suas fichas técnicas.
As considerações de ordem geral decorrem, como já disse, da orientação editorial e referem-se ao desajuste que os textos apresentam entre si. A concepção editorial defende a multiplicidade de visões sobre um mesmo assunto, o que certamente é interessante mas que não me parece justo aplicar neste caso. Não há dissensão conceitual evidente entre os autores ou uma metodologia de abordagem diferenciada. Se, com relativo pânico, costuma-se adotar a divisão cronológica dentro da história da arte, é ainda mais temerário juntar a isso a obrigação de cada período ser tratado dentro de um mesmo número de páginas. Considerando-se o objetivo da obra, de efetuar um mapeamento da questão, não há, por exemplo, por que tratar o modernismo com o mesmo destaque que os anos 60 e 70. Enquanto Brecheret, que não está a merecer tanto, tem sua obra lida em profundidade, a revolucionária produção dos anos 60 e 70 ganha uma análise que deixa a desejar. Pois, no limitado espaço disponível, não obstante a leitura competente de Favaretto, esta produção superior não logra ser senão objeto de considerações gerais, exteriores às obras.
Um outro nó problemático é a obrigação que cada autor se impõe de fazer o repasse de alguns conceitos básicos sobre a questão. Por exemplo, no que concerne à definição de escultura moderna. Um texto isolado, que tratasse exclusivamente desse ponto, deixaria os autores livres para um desenvolvimento maior de seus tópicos. Mas não é o que acontece. E ainda que Fabris e Cochiaralle concordem com o que seja modernidade em escultura, fazendo uso dos mesmos conceitos e autores, exemplicam-no com artistas diferentes, o que só confunde o leitor.
Agnaldo Farias é professor de arquitetura e urbanismo na Escola de Engenharia de São Carlos.
Folha de São Paulo
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