Ciências Humanas e Sociais
TIPOS DE MENTES
O seu tataravô era um robô
11/Jul/98
Michael Wrigley
DANIEL C. DENNETT
Nas últimas duas décadas, em grande medida em função do impacto da ciência cognitiva, a filosofia da mente tornou-se uma das áreas mais ativas e frutíferas da filosofia analítica. E não pode haver um guia melhor nessa área do que Daniel Dennett, um de seus pesquisadores mais originais e influentes. Como praticamente todos os pesquisadores de filosofia da mente, Dennett adota uma perspectiva plenamente materialista.
Para ele, qualquer tipo de dualismo deve ser "relegado ao monte de lixo da história". O que torna sua versão do materialismo particularmente interessante é a tentativa de desenvolver uma teoria da mente à luz da teoria darwiniana da evolução, bem como apresentar hipóteses detalhadas sobre o surgimento gradativo de mentes de animais e seres humanos.
Qualquer teoria materialista da mente enfrenta dois problemas fundamentais: o de fornecer uma explicação para a intencionalidade da mente e para a consciência. Um grande mérito deste livro é justamente a apresentação de respostas claras e detalhadas para essas duas grandes questões. O problema da intencionalidade consiste em explicar como estados mentais podem "representar" entidades que lhes são externas. O que faz com que o meu pensamento de Nova York, que é, para o materialista, um mero evento físico no meu cérebro, represente aquela cidade? Dennett aborda tal questão analisando como os animais mais primitivos, e até sistemas não vivos, conseguiriam representar aspectos do ambiente.
Ele argumenta que não só organismos mais primitivos, mas até as moléculas auto-replicantes, que são a base da vida, têm uma forma de intencionalidade. Formas mais complexas de intencionalidade surgiram conforme evoluíram sistemas mais complexos de moléculas auto-replicantes. Nas palavras de Dennett, "somos constituídos por robôs (...), somos, cada um de nós, uma coleção de trilhões de máquinas macromoleculares. E todas essas são, em última análise, descendentes das macromoléculas auto-replicantes originais".
Contra filósofos como John Searle, que argumentam que há dois tipos de intencionalidade -uma intrínseca aos estados mentais e outra derivada (de palavras e outros símbolos)-, Dennett sustenta que (como a nossa intencionalidade é o resultado desses milhares de subsistemas, os robôs biológicos dos quais nós somos compostos, cada um dotado de intencionalidade primitiva) não há uma distinção fundamental entre a intencionalidade de nossos estados mentais e qualquer outro tipo de intencionalidade.
Uma consequência notável dessa perspectiva é que é plenamente possível a existência de robôs com intencionalidade, e nesse sentido não haveria uma diferença fundamental entre um robô suficientemente complexo e a mente humana. Outra consequência notável, além de radical e inaceitável para muitos, na qual se torna clara a influência de Quine e sua tese da indeterminação da tradução, é a rejeição do ideal de "precisão proposicional" e o consequente não-realismo com respeito ao conteúdo das atitudes proposicionais.
Quanto ao segundo problema, o da explicação materialista da consciência, qual é a resposta de Dennett? Na sua teoria, a linguagem tem um papel fundamental. O que torna uma mente consciente é o que ela pode fazer, e mentes dotadas de linguagem podem fazer incomensuravelmente mais do que mentes sem essa capacidade. Não faltam consequências polêmicas dessa idéia, que não vão agradar nada a quem gosta de animais.
No seu famoso artigo "O Que é Ser Como um Morcego?", Thomas Nagel propõe essa questão, à qual Dennett responde dizendo que, para morcegos e para a grande maioria de outras espécies animais, essa pergunta não tem resposta, pois não existe um fato "o que é ser como" um morcego, uma rã, uma formiga etc. Nesse sentido, a maioria dos animais não tem consciência. Talvez mais polêmica ainda seja a sugestão de Dennett de que todos os animais não-humanos (talvez com a exceção dos cães!), embora possam sentir dor, não podem sofrer da mesma maneira como os seres humanos.
Embora bastante polêmica, essa tentativa de Dennett de propor uma teoria da consciência é, a meu ver, muito preferível às respostas de filósofos como Nagel e Colin Mcginn, para quem a consciência é um mistério que talvez esteja além de nossas capacidades intelectuais, um problema em princípio insolúvel. Ao analisá-la, mesmo que a rejeitemos, não podemos, na medida mesmo em que a rejeitamos, deixar de entender melhor esse fenômeno tão central ao conceito de mente.
Esta tradução de uma das mais recentes obras de Dennett é, sem dúvida, muito bem-vinda. Para quem quiser saber o que está acontecendo nas fronteiras da pesquisa de filosofia da mente, não há caminho melhor do que começar com este livro, e depois ler os textos indicados na excelente bibliografia suplementar. A tradução, em geral, é boa, embora alguns erros graves às vezes tornem o argumento ininteligível. É o caso, por exemplo, quando se traduz "How Do I Know You Have a Mind" (pág.15) por "Como Sabemos Que Possuímos uma Mente", em que o uso da primeira e da terceira pessoas é fundamental; ou "Making Things to Think with" (págs.5 e 121) por "Fazendo Coisas sobre as Quais Pensar", quando o correto seria "Fazendo Coisas para Pensar".
Michael B. Wrigley é professor de filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor visitante no programa de pós-graduação em filosofia da mente e ciência cognitiva na Universidade Estadual Paulista (Unesp).
Folha de São Paulo
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