Ciências Humanas e Sociais
Sobre o anarquismo em Portugal - artigo de Júlio Henriques na edição portuguesa do Le Monde Diplomatique
Ao contrário da Espanha (ou da Grécia), o pensamento e as práticas anarquistas não parecem ter deixado em Portugal um lastro profundo. Expressões disso mesmo podemos encontrá-las no facto de a sociedade portuguesa continuar a ser na Europa aquela onde existem as maiores discrepâncias sociais ou no facto, até, de a figura do cidadão não se encontrar instituída nas formas de tratamento, mantendo-se hoje, na democracia formal, as que se institucionalizaram durante a ditadura salazarista, no velho «país dos dótores» que José Cardoso Pires satirizou com verve nos anos 60.
Parece de facto estranho que um movimento político e social que se mostrou tão pujante entre finais do século XIX e os finais da década de 1920, e que constituiu sem dúvida a mais importante corrente revolucionária do movimento operário em Portugal, tenha por assim dizer desaparecido após os anos 30, não se tendo transmitido de forma muito expressiva o seu património filosófico e a sua memória política e social às gerações que actuaram durante os longos anos da ditadura. (Sendo aliás a extraordinária capacidade de duração do Estado Novo um outro elemento porventura revelador da não transmissibilidade do anarquismo nas condições portuguesas.)
Em Portugal, o movimento anarquista foi suplantado no terreno da oposição, a partir dos anos 30, pelo Partido Comunista, criado em 1921 como uma cisão que aliás teve origem nas fileiras do operariado libertário. Essa suplantação ficou a dever-se a várias circunstâncias, a mais importante das quais terá sido o enorme entusiasmo que a Revolução Russa de 1917 despertou também em Portugal e a concomitante «superioridade política» com que esse acontecimento surgiu aos olhos de uma parte dos militantes em luta, tendo em conta que a Revolução Russa apareceu como uma revolução proletária vitoriosa e que em Portugal só ao fim de alguns anos se começaram a ter informações sobre a sua realidade política, ou seja, sobre a concentração do poder nas mãos do partido bolchevique (contrariando o lema libertário «todo o poder aos sovietes») ou sobre a implacável perseguição que esse poder passou a mover à autonomia operária em geral e aos anarquistas em particular.
Nas condições de clandestinidade impostas a qualquer actividade de oposição pelo Estado Novo, a organização que veio a encontrar-se em relativamente melhores condições de subsistir e progredir foi o PCP, devido à sua própria estruturação hierarquizada e de tipo conspirativo e ao facto de poder contar com o apoio de uma importante retaguarda, a URSS. Os anarquistas, além de terem sido grandemente dizimados nos afrontamentos finais do período da I República e do advento do fascismo, não dispunham de uma retaguarda de apoio; e, por outro lado, as suas formas organizativas, de carácter horizontal, não se adequavam às condições da clandestinidade.
Em todo o caso, as organizações anarquistas não puderam manter-se em actividade de modo a transmitirem o seu legado, de forma operacional, às gerações seguintes. E ao mesmo tempo o PCP foi adquirindo um grande ascendente ideológico, com base na sedução exercida pela URSS e nas lutas empreendidas na clandestinidade, o que o levou a tornar-se hegemónico na oposição ao regime fascista, resultando dessa hegemonia, do ponto de vista teórico e da influência ideológica por ele exercida, o quase apagamento da história do anarquismo em Portugal e das perspectivas de uma revolução de características anti-autoritárias assente na autogestão, ou seja, num poder exercido directamente pelos trabalhadores através da expropriação dos capitalistas.
Alguns anarquistas continuaram sem dúvida a tentar levar a cabo diversas acções contra o regime fascista, quer em Portugal quer no estrangeiro, onde muitos deles se exilaram. Dos que actuaram no estrangeiro, é de sublinhar o caso de Edgar Rodrigues, sem dúvida ainda hoje o mais activo historiador do anarquismo português, que no Brasil publicou vários livros de denúncia da ditadura salazarista, um dos quais, A Fome em Portugal (este em parceria com Roberto das Neves), teve bastante repercussão nos anos 60.
Depois do 25 de Abril de 1974, os anarquistas portugueses ressurgiram no terreno público, muitos deles regressados do exílio, abriram sedes, participaram nas lutas sociais e políticas suscitadas pelo golpe de Estado popular, publicaram artigos e livros notáveis. O anarco-sindicalista Emídio Santana, conhecido co-autor do atentado contra Salazar em 1937, foi um dos mais activos. Mas muitos dos militantes libertários eram pessoas já bastante idosas; o contacto com eles foi uma experiência fundamental, quer para o conhecimento directo, em primeira mão, de uma parte essencial da história do movimento operário e anarquista, quer como partilha de uma humanidade rara, de pessoas com uma profunda consciência de classe e que mantinham viva a noção de que a transformação revolucionária deve ter por base a auto-emancipação. Outros, muito mais jovens, ex-refugiados ou exilados como desertores e refractários ao exército colonial, tinham descoberto o anarquismo, em melhores condições de informação, no estrangeiro (inclusive o anarquismo português), sobretudo a partir da grande revolta de Maio de 68.
Mas a verdade é que, apesar da relativa proliferação de grupos e publicações anarquistas após o 25 de Abril, nunca se reconstituiu nenhuma federação libertária com capacidade para intervir a longo prazo na sociedade e com resultados substanciais. Pelo menos até um período recente, o diálogo desses vários grupos afins, susceptível de exprimir um confronto estimulante, revelou-se em geral fraco ou mesmo inexistente, apresentando-se amiúde o anátema mútuo como a única relação possível; repetindo com isso, no fundo, o clima de suspeição sistemática e de concorrência que os grupos de extrema-esquerda levaram à exaustão paranóica e à caricatura nos anos 70.
Tais circunstâncias acabam sempre por ter repercussões doentias, levando os indivíduos e os grupos a assumir características de seitas que se digladiam e a criar formulações e uma linguagem que só podem afastá-los uns dos outros e das próprias realidades circundantes.
Nos últimos anos, no entanto, parece começar a emergir um outro clima, fruto também, possivelmente, das próprias condições que o capitalismo vem forjando no sentido de um aprofundamento do desastre que ele constitui.
Por JÚLIO HENRIQUES
Fonte: Le Monde Diplomatique, edição portuguesa
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