Slavoj Zizek – algumas ideias do seu pensamento político e filosófico
Ciências Humanas e Sociais

Slavoj Zizek – algumas ideias do seu pensamento político e filosófico



Slavoj Zizek – breve resumo do seu pensamento

Slavoj Zizek é hoje em dia uma vedeta do pensamento crítico contemporâneo. De Buenos Aires a Paris, passando por New York, New Delhi ou Ljubljana (a cidade onde nas céu), as multidões correm a assistir às suas conferências. Esta atracção deve-se em parte ao estilo do filósofo esloveno. Que mistura referências absconsas de Schelling ou Lacan a exemplos retirados da cultura popular – cinema de Hollywood, romance negro ou ficção científica, blagues – tudo isso recheado com citações semi-provocadoras de Stalin e Mão. Esta estratégia intelectual visa a escurecer as fronteiras entre a cultura «legítima» e a cultura «popular». Zizek é o objecto ou protagonista de vários documentários, um dos quais é o notável Pervert’s Guide to Cinema (2006), no qual ele apresenta as suas análises parodiando cenas clássicas da história do cinema. Uma discoteca de Buenos Aires já tem o seu nome.


S. Zizek é um filósofo muito cosmopolita. Realizou uma parte dos seus estudos em França na Universidade de Paris-VIII, sob a direcção de Jacques-Alain Miller (o genro e o legatário intelectual de Lacan), com o qual também fez psicanálise. Escreve e publica em inglês. E é dos poucos pensadores actuais que veio da Europa do Leste.


Um aspecto determinante do pensamento de Zizek é a sua defesa do cogito cartesiano. The Ticklish Subject é uma das suas mais importantes obras, subintitulada «O centro ausente da ontologia política» começa com a seguinte declaração: « Um espectro paira sobre a universidade ocidental… o espectro do sujeito cartesiano.» O filósofo assimila a questão do «sujeito» ao espectro do comunismo que abre o Manifesto Comunista de Marx e Engels. Isto significa que se trata de um ponto importante …


Sabe-se que Descartes formulou um célebre enunciado filosófico ao dizer « Cogito, ergo sum » (Penso, logo existo). A ideia de um sujeito soberano, transparente a si próprio e racional é um dos fundamentos da modernidade. Ela encontra-se não somente no coração do projecto da Luzes, mas está subentendida igualmente num grande número de movimentos emancipatórios do séc. XIX, entre os quais o liberalismo, o marxismo e o anarquismo. Nunca faltaram críticos a esta concepção do sujeito, quer viessem do interior da tradição filosófica (Nietzsche por ex.) quer correntes como o feminismo que denunciou desde muito cedo o carácter de género do cogito.


O Iluminismo e a teoria do sujeito que o acompanha foram novamente questionadas depois da II Guerra Mundial. As atrocidades cometidas então serviram para a modernidade reflectir-se nela própria. Os representantes da Escola de Francfort – Adorno et Horkheimer – consideraram as câmaras de gás como a expressão última da racionalidade instrumental moderna. Depois de ter servido para a emancipação, a razão ter-se-á voltado contra ela própria, e tornou-se ela própria em cúmplice dos piores crimes contra a humanidade. O estruturalismo e pós-estruturalismo, ainda que não tematizam, ou pouco, a barbárie moderna, desenvolvem ainda assim uma crítica do humanismo. O anti-humanismo teórico de Althusser ou a « morte do homem » profetizada por Foucault ai estão para o demonstrar. A perspectiva pós-estruturalista que domina a «universidade ocidental», para retomar a expressão de Zizek, considera o sujeito como uma entidade descentrada. Segundo esta visão existe uma multiplicidade irredutível de posições subjectivas, mas nenhum centro unificador.O cogito ter-se-á literalmente desintegrado. A descoberta do inconsciente por Freud e a importância conferida à linguagem na filosofia na segunda metade do séc. XX consolidaram esta tendência. Para retomar uma fórmula de Jacques Derrida o sujeito passou a ser entendido como uma «função da linguagem».

S. Zizek opõe-se à desintegração do sujeito. Isto não o leva a preconizar um regresso puro e simples ao humanismo moderno, sob a forma cartesiana ou outra .S. Zizek prefere dar um tratamento lacaniano ao cogito . Aliás, todas as coisas são interpretadas à luz das categorias propostas por Lacan. Para S. Zizek, o sujeito não é uma substância , nem sequer pensante como dizia Descartes . Não é uma entidade real, mas antes um «vazio», feito de pura «negatividade». O sujeito aparece na interface do «Real» e do «Simbólico». Estes dois conceitos de Zizek, emprestados de Lacan, são cruciais à sua abordagem. O real é incognoscível para nós: ele designa o mundo antes de toda a categorização ou classificação, isto é, é pré-linguagem. O Simbólico é, para ele, a instância do ordenamento do Real. Quando se fala vulgarmente da «realidade» é do Simbólico que falamos, uma vez que o Real não nos é acessível. O Simbólico representa a «morte da coisa» diz Lacan, no sentido em que aboliu a coisa enquanto coisa tornando-se inteligível( deixando assim de ser uma coisa saída do Real). O Real nunca se deixa simbolizar completamente, há sempre qualquer coisa que resiste.


O que a psicanálise chama de «traumatismo» designa os casos de intrusão ou do ressurgimento brutal do real na ordem do Simbólico. Uma tal intrusão é sempre possível e é susceptível de perturbar o Simbólico. O Simbólico, deste ponto de vista, não é forçosamente aberto. Persiste no tempo, mas sob a condição do ressurgimento de um Real conflitual.


O sujeito forma-se segundo Zizek na distância que separa o Real do Simbólico. Esta distância supõe que o Simbólico difere do Real, o que permite o aparecimento da subjectividade . Se o Real e o Simbólico fossem idênticos, ou se o Simbólico estivesse fechado sobre si mesmo, nenhuma posição subjectiva seria concebível. Segundo Zizek,o sujeiro é um «mediador evanescente» (vanishing mediator). Este conceito foi repescado pelo filósofo a Fredric Jameson. Neste último, ele designa todo o fenómeno que permite o aparecimento de um outro fenómeno, e que desaparece depois de ter realizado aquela tarefa. Jameson usa este conceito na sua interpretação da tese de Max Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo. Para Weber (relido por Jameson), o protestantismo constitui a condições da emergência do capitalismo. Todavia, uma vez nascido, este acelera o desaparecimento do protestantismo, já que o capitalismo favorece o processo de secularização. O protestantismo seria pois um «mediador evanescente» para o capitalismo.


Para S. Zizek, o sujeito tem uma estrutura análoga. Na medida em que é incognoscível, o Real é experimentado como «perda» pelo sujeito. Face a este nada, e a fim de não cair na loucura, o sujeito constrói o Simbólico. Por isso, ele exterioriza-se numa linguagem, sendo a «palavra» a instância pela qual a simbolização é desencadeada:

« […] Ao pronunciar uma palavra, o sujeito empurra o seu ser para fora de si; ele coagula o nó do seu ser (the core of his being) num signo exterior. Através de um signo(verbal) eu encontro-me fora de mim mesmo, eu coloco a minha unidade fora de mim mesmo, num significante que me representa.» Ao exteriorizar-se o sujeito cria o objecto (o Simbólico) mas acaba por isso mesmo de se encontra frente a ele próprio, uma vez que se exteriorizou-se. A separação entre sujeito e objecto é pois abolida, e as duas instâncias são inextrincavelmente misturadas. Isto implica, entre outras coisas, que o lugar do sujeito permanece vazio. Por esse facto, ele poderá sucessiva ou simultaneamente ser ocupado ou reivindicado pelos mais diversos sujeitos. Tal como J. Rancière, S. Zizek considera que o sujeito não é um colectivo concreto, realmente existente. Ele é antes a condição para que individualidades ou colectivos concretos se possam formar. Mas, para isso, o seu lugar deve ficar formalmente vazio.


Um corolário da teoria do sujeito de Zizek é a sua concepção de ideologia. Classicamente, a ideologia designa a separação existente entre uma realidade e a maneira como os indivíduos a representam, de forma errónea ou «ideológica». Esta deformação pode ser explicada pela posição de classe do indivíduo ou por uma razão, mas que leva, de qualquer modo, a significar uma perspectiva entre outras. A crítica filosófica e política dirige-se a essa distância que separa as duas instâncias. A sua função é de chamar a atenção para as vítimas de uma ideologia sobre o facto das suas representações da realidade serem erróneas. Segundo o filósofo alemão Peter Sloterdijk, que serve aqui de ponto de partida para Zizek, este modelo clássico de ideologia deixou de funcionar nas sociedades pós-modernas. A explicação reside em que, hoje, os indivíduos sabem perfeitamente que o discurso que lhes é servido pelos media e pela classe política é falacioso. Eles não são idiotas, o que significa para Sloterdijk que a nossa época é a de um cinismo generalizado, que sucedeu à era das ideologias. Esse cinismo levanta o problema da eficácia da crítica hoje em dia. Se todo o mundo sabe que a representação dominante da realidade não é «verdadeira» realidade, então será que a crítica ainda tem uma razão de ser?


Segundo Zizek a teoria de ideologia de Sloterdijk é errada, o mesmo se passando como o seu diagnóstico sobre a época em que vivemos. Esta está longe de ser pós-ideológica. É verdade que o cinismo está largamente espalhado. No entanto, é errado pensar que um tal cinismo, apesar de generalizado, bastará para justificar a existência de uma época pós-ideológica. E a explicação é que a ideologia não é uma questão de representação, mas antes de actos e acções.


O conhecido argumento de Pascal permitirá clarificar este ponto. Segundo esse argumento, baseado num cálculo de utilidade, no sentido da economia neoclássica, é sempre vantajoso para o indivíduo acreditar em Deus, porque se Deus existir, o benefício da crença é imenso (paraíso), comparado com o imenso custo da falta de crença (inferno). Por outro lado, pouco importa que se acredite ou não em Deus se ele não existe. Todo o ser razoável deve por consequência acreditar em Deus. O problema é que, bem entendido, a crença não se encomenda. Não se acredita na vontade, o que realmente é necessário é possuir uma verdadeira fé. A resposta de Pascal ao problema é conhecida: «Orai e obedecei, a fé virá de seguida.»


Este argumento é frequentemente interpretado como demonstrativo da influência dos comportamentos de um indivíduo sobre os seus estados mentais. A oração interioriza o seu próprio conteúdo, que se transforma progressivamente, graças à repetição, em crença autêntica. Mas uma outra interpretação é possível segundo Zizek. Para este, o que mostra o argumento de Pascal não é que os nossos comportamentos são susceptíveis de produzir representações no nosso espírito. O que ele realmente mostra é que possuímos frequentemente representações antes mesmo de saber que nós as possuímos. Contrariamente, ao que pensa o indivíduo que se ajoelha para rezar, este já antes de se ajoelhar já acredita em Deus. Quando ele pensa que começa a acreditar, ele mais não faz na realidade do que reconhecer uma crença que já estava presente nele. Pois o que conta não é o estado mental, mas o acto. É por isso que a nossa época continua saturada de ideologias. Ainda que o cinismo reine, os indivíduos continua a comportarem-se como se as ideologias continuassem em vigor.


A teoria dos Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) de Althusser pode ser interpretada à luz deste argumento. Althusser distingue as AIE (Escola, Igreja, Media, Família) dos Aparelhos Repressivos do Estado (policia, exército, prisões). Os AIE têm por função garantir a adesão à ordem existente pela via ideológica «naturalizando» esta ordem aos olhos dos que a sofrem. Ora, para Zizek, os AIE produzem uma adesão ao sistema antes mesmo que o indivíduo se aperceba deles. Trata-se de uma crença anterior. O sintoma que revela a existência desta pré-crença é a actividade do indivíduo, a qual testemunha a sua adesão à ordem existente, que está tão incrustada nele quanto o cinismo nele presente.

S. Zizek reclama-se do marxismo, o que é relativamente raro num intelectual dos países do leste europeu, apesar de ter sido um dissidente no seu país durante a era soviética. Uma consequência deste seu posicionamento é que ele defende a tese da determinação «em última instância» pela economia, que se encontra presente, sob diversas formas, no seu pensamento. Mais precisamente, ele sustenta que a forma de opressão no domínio económico, ou seja, a exploração, tem primazia sobre as outras formas de dominação


Para além da sua vontade de reabilitar o sujeito cartesiano, esta sua tese leva Zizek a opor-se à doxa em vigor na «universidade ocidental». Note-se que a tese da determinação da superestrutura pela infraestrutura dominou o pensamento crítico durante muito tempo, enquanto o marxismo manteve a hegemonia naquele pensamento. Mas a partir dos anos 1970 a ideia da dominação tornou-se plural, ao ponto de se ter tornado a nova doxa. Vários factores contribuíram para esta evolução. Com efeito, desde então, assistiu-se a uma proliferação das «frentes secundárias» que enfraqueceu a centralidade conferida até então ao confronto entre o capital e o trabalho. Mais a mais, as transformações sociotécnicas profundas, tais como a emergência dos media de massas, colocaram a cultura no coração da vida (pós)moderna. A sociologia de Pierre Bourdieu é típica desta evolução. Bourdieu defende que o mundo social é composto de diferentes «campos » sociais que gozam cada qual de uma «autonomia relativa» em relação uns aos ouros. Isto supõe que existem capitais particulares em cada um deles, e que nenhum deles é determinante que os outros.

Segundo S. Zizek, os pensamentos críticos foram demasiado longe na pluralização das formas de dominação, a tal ponto que se tornaram incapazes de compreender a especificidade do capitalismo enquanto sistema. A dominação é plural. Mas oque confere a particularidade ao capitalismo é que todas as formas de dominação subentendidas por um fenómeno, que lhes dá inclusive uma «coloração», a saber: a acumulação do capital.


Os pensadores críticos contemporâneos reconhecem certamente a existência da exploração económica. Mas eles consideram que se trata de um tipo de opressão entre outras, ao mesmo título que a dominação masculina ou o racismo. Para Zizek esta tese está errada. A exploração não é um tipo de opressão entre outras, mas a lógica de conjunto que subentende todas as outras. É por essa razão que o filósofo se mostra muito crítico para com o «multiculturalismo» envolvente, como testemunha o seu livro Plaidoyer en faveur de l’intolérance

S. Zizek retoma, por seu turno, o argumento marxista da «reificação», desenvolvidos nomeadamente por Lukacs no livro Histoire et conscience de classe (1923). Lukacs escreve : « […] a actividade do homem – numa economia mercantil consumada – objectiva-se em relação a ele,tornando-se numa mercadoria que está submetida à objectividade, estranha aos homens, às leis naturais, e realiza o seu movimento independentemente dos homens, qualquer que seja o bem destinado à satisfação das necessidades, convertidas em coisa mercantil». No capitalismo a actividade humana adquire o estatuto «coisa qualquer», isto é, o estatuto de uma mercadoria. O fetichismo da mercadoria contamina o conjunto das esferas de actividade e das acções humanas. Segundo S. Zizek, a consequência deste facto é liminar: « Luto, em suma, por um regresso ao primado da economia, não em detrimento das questões colocadas pelas formas pós-modernas de politização, mas precisamente a fim de criar as condições de uma mais efectiva realização das exigências feministas, ecologistas, e assim sucessivamente.»


Não se trata de minimizar a importância das lutas feministas, ecologistas ou outras. A tese da determinação «em última instância» é apresentada, por vezes, pelos seus adversários como uma maneira de inferiorizar as outras formas de luta, o que para Zizek é falso. Simplesmente, na medida em que estas formas de opressão se revestem de uma conotação capitalistas, elas não podem estar dissociadas da luta geral contra a reificação. Esta luta constitui o pano de fundo sobre o qual se desenvolvem as outras lutas, razão pela qual é necessário considerá-la como central.

Zizek desenvolve uma crítica feroz das teorias do antipoder que proliferaram nos anos 1990 e 2000. Estas teorias defendem que a tomada de poder do Estado é não somente vã, até porque o poder está disseminado no conjunto do corpo social e não concentrado num ponto, mas ainda porque esse objectivo é portador de catástrofes. Elas retoma à sua maneira a argumentação antitotalitária dos «novos filósofos» que defendem que o estalinismo, longe de ser uma degenerescência, estava já presente nas origens da revolução russa, e até mesmo na revolução francesa.

Para Zizek os teóricos do antipoder teorizam a derrota da luta social por antecipação. Eles interiorizam-na e naturalizam-na a tal ponto que se tornam incapazes de imaginar outra coisa senão «zonas de autonomia temporária» situadas nas margens do do sistema. Daí que Zizek se volte contra a crítica ao centrismo estatal, cuja raiz remonta a Foucault, apelidando-a de «nova esquerda» e convida-a a reexaminar a sua concepção descentrada de poder à luz da concepção do poder e do Estado do marxismo clássico, principalmente, a de Lenine, tanto mais que Marx é reabilitado hoje em dia, depois de ter sido denegrido duarnte os anos de 1980 e 1990.


Para Zizek é para a figura de Lenine que a esquerda radical deve agora voltar-se. Ele escreve: « O que um verdadeiro leninista e um conservador têm em comum é o facto de ambos rejeitarem a irresponsabilidade da esquerda liberal, a qual defende grandes projectos de solidariedade de solidariedde e de liberdade, mas que logo se eclipsa quando se trata de pagar todas essas coisas no momento das decisões políticas concretas, por vezes cruéis.»


E a verdade é que na revolução russa, Lenine teve a coragem de assumir a direcção efectiva do Estado, e longe de se limitar a uma celebração romântica do acontecimento-revolução de Outubro, ele procurou transpor e concretizar as suas convicções numa ordem social e política duradoura. É o que o aproxima da figura de São Paulo que procurou perseverar o acontecimento-Cristo ao longo do tempo através da fundação da Igreja. A esta transposição do acontecimento para uma ordem duradoura, Zizek designa o fenómeno com uma fórmula provocadora - «o bom terror». Aos seus olhos, qualquer acontecimento autêntico tem algo de característico que é o seu custo.



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