Ciências Humanas e Sociais
Os Intelectuais e a Invenção do Peronismo
NEIBURG, Federico. 1997. Os Intelectuais e a Invenção do Peronismo. São Paulo: Edusp. 242 pp.
Regina Abreu
Pesquisadora-visitante, PPGAS-MN-UFRJ
Redigido inicialmente como tese de doutorado para o PPGAS-MN-UFRJ, esse livro parte de um tema amplo, polêmico e crucial para a construção da identidade nacional na Argentina: o peronismo. Neiburg descarta desde o início as leituras apressadas e mais óbvias sobre o tema, explicitando a multiplicidade de significados que essa categoria foi adquirindo ao longo do tempo: movimento político nascido em meados da década de 40 e identificado com a figura de Juan Perón; período da história da Argentina que se inicia em 1945 e termina em 1955; partido político criado por Perón logo após sua vitória nas eleições de 1946, que sobrevive até hoje com outras denominações; referência para a identidade política dos que passaram a invocar a figura de Perón e a recordação de seus governos para legitimar diferentes posições no campo da política.
A pesquisa é, na verdade, o estudo de um período da história social e cultural da Argentina; ao mesmo tempo, o autor revela, com intensidade cada vez maior, o papel ativo dos intelectuais na "invenção" do peronismo, noção que nada tem a ver com um juízo acerca da artificialidade das interpretações abarcadas pelo termo. Pelo contrário, Neiburg busca acentuar uma perspectiva não substancialista, atenta à dimensão produtiva das ações sociais sobre a "realidade" social. Agindo desse modo, ele introduz uma série de surpresas para o leitor pouco familiarizado com a história social e cultural da Argentina. A primeira é a mudança de foco vis-à-vis boa parte da literatura sobre o tema, em que o peronismo aparece como o resultado de ações de grupos populares. Neiburg, ao contrário, parte do pressuposto de que, como todo fenômeno social e cultural, o peronismo resulta das ações de diferentes agentes sociais, situados em distintas áreas do espaço social. Nesse sentido, os intelectuais tiveram desde o início papel central no processo de construção do peronismo, e é justamente este o ponto investigado. No entanto, em vez de expor uma nova interpretação do peronismo - ou julgar o mérito das distintas interpretações que o tomaram como objeto -, o interesse do autor é "compreender a lógica social subjacente à existência dos debates, a gênese das figuras intelectuais que deles participaram e seus efeitos sobre a construção do próprio peronismo como fenômeno social e cultural" (:16).
Essa perspectiva permite uma estimulante reflexão acerca da relação constitutiva entre "representação da realidade" e "realidade". Ao enfatizar o fato de que as interpretações e os intérpretes do peronismo foram produzidos em uma dada sociedade e cultura, Neiburg amplia seu horizonte de pesquisa, a fim de compreender a lógica do funcionamento da sociedade argentina em um dado período histórico. Outra surpresa introduzida pelo autor diz respeito ao período focalizado. Ao contrário do que se poderia supor, Neiburg não está interessado em analisar especificamente o momento histórico da gênese do peronismo, com o golpe de Estado de 1943, quando Perón passou a ser identificado como o "homem forte" do regime militar - ao mesmo tempo que se converteu em alvo de oposição de grande parte dos partidos políticos e das elites sociais e econômicas. Refletindo sobre as representações do peronismo e do antiperonismo, o autor decide focalizar justamente o período que se abriu em 1955, quando um golpe militar pôs fim ao segundo governo Perón. A percepção de que foi a partir da chamada "Revolução Libertadora" que se deu importante reestruturação do espaço social, com a eclosão de inúmeras falas a favor e contra o peronismo, conduz Neiburg a privilegiar os discursos produzidos nesse momento. Trata-se de uma estratégia produtiva: tomar a via do "fim" do peronismo para perceber a lógica subjacente à sua invenção. A destituição de Perón do poder teria provocado uma série de debates com a finalidade de estabelecer uma nova etapa na vida da Argentina, debates que construíram o chamado "fenômeno peronista" como objeto, ao procurar entender a história recente do país. Neiburg debruça-se sobre algumas dessas representações, explicitando os pressupostos mais significativos que permitem compreendê-las em conjunto. Sua intenção não é isolar tais discursos da trama social ou do contexto em que são produzidos, mas enfrentar as relações, os embates, os conflitos e os pontos de contato entre eles. Trata-se de analisar uma "retórica de combate", colocando em evidência algumas das dimensões das lutas de classificação travadas não só em torno de representações do peronismo, como também das diferentes posições que sustentavam os diversos pontos de vista sobre ele.
No primeiro capítulo, no intuito de fornecer um mapa das diferentes posições ("repertórios") acerca de peronização, desperonização e reperonização, Neiburg vê-se diante da difícil tarefa de, dentro da ampla bibliografia existente sobre o assunto, escolher os textos e os porta-vozes mais significativos para compor seu universo de trabalho. O autor decide lançar mão de apenas três textos, justificando sua escolha pelo fato de se tratar de três obras consagradas, escritas por autores que são figuras centrais da Argentina pós-Perón, com potencial suficiente, portanto, para ilustrar as dimensões constitutivas dos sistemas de questões e diferenças construídos pelos participantes dos debates sobre o peronismo após a "Revolução Libertadora". O primeiro é de um autor individual, Mario Amadeo, e foi publicado em 1956 sob o título Ayer, Hoy y Mañana. O segundo, intitulado Las Izquierdas en el Proceso Político, é o produto de uma reportagem organizada em fins de 1958 pelo advogado Carlos Strasser. O terceiro, La Naturaleza del Peronismo, foi lançado em 1967, por Carlos H. Fayt, titular da Cátedra de Direito Político, com o objetivo de "reunir material para entender o quê e o porquê do peronismo" (:37).
O segundo capítulo dá continuidade ao primeiro, procurando mostrar como o sistema de classificações gerado a partir de diferentes aproximações do peronismo é fundado em argumentos de autoridade que variam de acordo com as posições. Neiburg indica como cada indivíduo procura autorizar seu próprio argumento desqualificando o argumento de seu adversário, o que, paradoxalmente, implica o reconhecimento de algum tipo de autoridade no segundo. Vemos, assim, ampliar-se o painel dos protagonistas em torno da questão peronista. A política é concebida como um campo de forças em que os agentes, ao lutarem para impor suas próprias representações acerca do peronismo, estão também constituindo a si próprios e planejando uma nova Argentina. A própria "sociologia científica" é tomada como uma voz dentre tantas outras que compunham o campo das representações sobre o peronismo. Atribuir a si o papel de porta-voz da ciência era um dos seus principais argumentos de autoridade.
O capítulo 3 é dedicado ao exame da relação entre as interpretações do peronismo e os relatos consagrados sobre a nação argentina e sua história. Sob o título "Peronismo e Mitologias Nacionais", o autor recorre à noção clássica de mito formulada por Lévi-Strauss, procurando os nexos entre o peronismo e o "esquema de eficácia permanente" do mito, sua capacidade de manter uma relação simultânea com o passado, o presente e o futuro, sua dupla estrutura histórica e anti-histórica. Por outro lado, retoma temas caros à sociologia weberiana ao procurar os vínculos entre a consagração social de novas profecias e de novos profetas e uma tradição particular. Subjacente a essas preocupações está o anseio de compreender o caráter construído das realidades nacionais e dos mitos que as legitimam, bem como descrever a lógica social que embasa e permite a emergência de novos profetas. O autor procura demonstrar de que modo esses novos profetas, vivendo sob determinadas condições e agindo de acordo com interesses também socialmente construídos, foram consagrados como intérpretes autorizados dos dilemas nacionais - "dilemas" que, por seu turno, foram também socialmente construídos e passaram a legitimar a fala de seus "intérpretes". Acompanhando as representações de cada intérprete fica evidente o quanto explicar o peronismo na Argentina era explicar a própria Argentina e de que forma cada explicação trazia consigo um projeto para o país. Nesse movimento de explicar o país, os intelectuais de 1955 resgataram ou atualizaram em suas análises antigos paradigmas, dentre os quais a tese de ser a Argentina um país permanentemente dividido, marcado pela "contradição entre duas Argentinas, uma visível, urbana, moderna, cosmopolita, voltada para o mercado mundial por intermédio da metrópole de Buenos Aires; outra oculta, rural, tradicional, voltada para o mercado interno, cuja expressão máxima eram as províncias do interior do país" (:88-89).
Na segunda parte do livro, que engloba seus três últimos capítulos, há, de um lado, a preocupação de assinalar os vínculos entre elites intelectuais e sociais na Argentina e, de outro, de reconstituir a história de uma importante instituição político-cultural, resgatando significativa passagem da história da fundação das ciências sociais nesse país. Elegendo casos expressivos para estudo, e trabalhando com trajetórias institucionais ou biográficas, o autor cria as condições para analisar o processo de formação das redes de relações. O primeiro desses "estudos de caso" focaliza o "Colégio Livre de Estudos Superiores", importante centro de reunião de políticos, empresários, financistas e intelectuais de renome, fundado no início de 1930 e atuante até o período da "Revolução Libertadora", responsável em grande parte pela formação de uma camada de dirigentes atuante na "Argentina pós-peronismo". Analisando a composição social da instituição e suas fontes de sustento, Neiburg chega a conclusões importantes para a compreensão das relações entre as elites intelectuais e sociais, como a de que o principal apoio econômico ao "Colégio Livre de Estudos Superiores" provinha da atividade permanente de um grupo de mecenas.
Para a análise da fundação da "sociologia científica", o autor trabalha com a trajetória de Gino Germani, identificado como o "pai fundador" da disciplina na Argentina. A análise da biografia social e intelectual de Germani conduz à compreensão do "processo de fabricação social" e de institucionalização da sociologia no país a partir da segunda metade dos anos 50. Por outro lado, a trajetória de Germani permite um melhor entendimento das "possibilidades abertas no campo intelectual para a constituição de novos pontos de vista sobre a sociedade durante o período da história social e cultural da Argentina em que o peronismo e a desperonização definiram uma agenda de problemas nacionais" (:158). Por fim, o último capítulo concentra-se na palavra de ordem divulgada a partir de 1955 incitando à desperonização. Neiburg procura traçar um painel dos diferentes significados dessa palavra de ordem para os diversos agentes e grupos interessados.
Se cada capítulo contém uma análise instigante e reveladora de aspectos centrais da história social e cultural da Argentina, o livro em conjunto faz uma incursão em expressivas teorias "nativas", percorrendo "explicações do peronismo" que são, também, "explicações da Argentina". O autor leva a bom termo o objetivo indicado no início do livro de "mostrar que todas as interpretações do peronismo foram teorias sobre a Argentina, que nas relações das diferentes figuras intelectuais com o peronismo estava em jogo tanto sua própria existência social, quanto o ideal de uma boa sociedade, uma proposta de futuro" (:158). Acompanhando a longa e bem documentada argumentação, fica evidente como uma sociedade não apenas constrói seus "enigmas", como também as figuras encarregadas de impor formas "corretas" de "decifrá-los".
Revista Mana
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