Ciências Humanas e Sociais
O ESTABELECIMENTO DOS PORTUGUESES NO BRASIL
ABADE RAYNAL
O abade ilustrado e o Brasil
10/Out/98
Maria Das Graças S. Nascimento
Imenso sucesso de venda desde a sua primeira edição, em 1770, a "História Filosófica e Política das Possessões e do Comércio dos Europeus nas Duas Índias", do Abade Raynal, tinha sido pensada, de início, como um balanço da colonização européia, encomendada aliás por Choiseul, ministro do exterior, que pensava em reparar faltas cometidas na colônia, tentando, por exemplo, desenvolver a Guiana. Contudo seu destino foi inteiramente diferente. Entre o início da redação e a publicação, Choiseul tinha sido demitido, a política oficial havia mudado e a própria obra tomara um perspectiva hostil ao governo francês e às outras monarquias colonizadoras, de tal modo que Raynal resolveu publicar anonimamente as duas primeiras edições. Quando apareceu a terceira edição, o Parlamento de Paris condenou a "História" a ser queimada, e seu autor à prisão (prudentemente, Raynal já estava no estrangeiro). O documento da condenação afirma que a obra é "ímpia, blasfematória, sediciosa, tendendo a sublevar os povos contra a autoridade soberana e a derrubar os princípios fundamentais da ordem civil".
Para dar corpo ao imenso plano (que no fim resultará em vários volumes), Raynal recorre a documentos fornecidos por amigos, aos relatos de viagens que são numerosos na época e sobretudo à colaboração de alguns escritores que poderiam, na sua opinião, dar "um tom filosófico" ao texto, o que ele considerava uma fórmula infalível de sucesso. Assim se explica a participação de Diderot, que fornece várias passagens e mesmo capítulos inteiros para o livro, desde a primeira edição. Feita a várias mãos, a obra tem visões diversificadas e às vezes contraditórias. Nela associam-se mais ou menos arbitrariamente relatos sobre a situação das colônias e dos países da Europa, interrompidos constantemente para dar lugar a polêmicas em torno dos grandes temas do pensamento da época das luzes, o que transforma o conjunto num lugar de debate onde se defrontam as principais tendências do pensamento político e filosófico da segunda metade do século.
Como pano de fundo do texto, temos o relato das conquistas coloniais, seguido de um balanço comercial e político desta colonização, acompanhado de recomendações e propostas de melhorias. Ao mesmo tempo, são feitas descrições geográficas e observações sobre a vegetação e a fauna das regiões. Num segundo plano, aparecem reflexões filosóficas, morais e políticas, que fazem apelo à razão e manifestam uma posição humanitária em relação aos povos colonizados. Por último, de modo às vezes inusitado, surgem discursos políticos dirigidos a estes mesmos povos, que frequentemente terminam com apelos à rebelião.
No capítulo 12 do livro terceiro, por exemplo, após comentar a renovação dos privilégios concedidos à Companhia Inglesa das Índias, assinalando o caráter opressor do monopólio, o autor exclama: "Povos, cujos rugidos tantas vezes fizeram os senhores tremerem, o que estais esperando? Para quando estais reservando vossas tochas, e as pedras que calçam as ruas?". Num tom semelhante, no capítulo 29 do livro 12º, sobre a história da Dinamarca, o escritor parece perder a paciência com o conformismo dos povos explorados e, dirigindo-se a eles, diz: "Povos covardes! Povos estúpidos! Já que a continuidade da opressão não vos devolve a energia... então, obedecei, sem nos importunar com vossas queixas...". Passagens deste teor, muito comuns nos diversos volumes da "História", é que levaram a censura a condenar a obra e explicam a presença da obra de Raynal entre os livros apreendidos pelos poderes coloniais nas bibliotecas de participantes de rebeliões no Brasil, como mostram os estudos sobre a presença das idéias francesas nos movimentos libertários do Brasil colônia.
O livro nono da "História" de Raynal, que relata as conquistas portuguesas no Brasil, segue o esquema geral adotado por Raynal: relato da descoberta, descrição da população local, da fauna e da flora, das atividades de produção, tudo isto entremeado de reflexões morais e políticas. De vez em quando, críticas aos colonizadores, que, quando ultrapassam o Equador, "conservam, de seus princípios, apenas aquilo que puder justificar sua conduta". O europeu que chega às colônias torna-se "rastejante, quando fraco; violento quando forte; apressado em adquirir, apressado em desfrutar; e capaz de todos os crimes que o conduzam mais rapidamente a seus fins".
Por oposição a este retrato do colonizador violento, desenha-se o perfil idealizado dos povos nativos do Brasil, um pouco à moda da noção do "bom selvagem": amantes da dança e do canto, pacíficos, generosos e sobretudo livres, diz o autor, seu espírito era em tudo contrário à dominação que os europeus queriam lhes impor. Mas o que podiam povos serenos e tranquilos contra as armas da Europa? Entretanto o texto não chega a esconder um preconceito comum na época, a respeito da "indolência natural" dos índios, que nem mesmo a miscigenação com os europeus teria conseguido superar. Além disto, não deixa de ser espantoso que, após mais de dois séculos de colonização portuguesa, Raynal tenha dedicado tão pouco espaço à questão da escravidão negra e que as poucas passagens nas quais é questão o trabalho escravo sejam marcadas por uma ingenuidade suspeita: segundo o autor, os escravos no Brasil podiam facilmente comprar a sua liberdade, que podia ser até exigida do senhor quando havia maus tratos, o que explicaria o fato de que "quase não há negros fugitivos neste vasto país".
Ingenuidades ou preconceitos à parte, o texto de Raynal manifesta de qualquer modo a ideologia humanitária e anticolonialista que já estava presente em outros pensadores das luzes, tais como Montesquieu e Voltaire, que também protestaram contra as práticas dos colonizadores. Contudo sua crítica não chega a contestar o direito de colonização. As razões são compreensíveis: de um lado, comerciantes e armadores falavam mais alto que filósofos e escritores inspirados em sentimentos humanitários. De outro, a própria ideologia das luzes, que valorizava o progresso da razão, das ciências e das técnicas, contribuía para que se pensasse que a Europa poderia levar aos nativos da América um bem, a civilização. O problema é que, ao invés de homens imbuídos destes valores, ela enviou, como diz Raynal, sobretudo no caso de Portugal, "alguns proscritos sem costumes". Por isso, nas palavras do autor, "o Brasil, esta grande colônia, (...) não foi jamais o que deveria ser. Os nobres que, nessa época, lá obtiveram províncias, fizeram delas um teatro de massacres e destruições". O ideal teria sido "nada de armas, nada de soldados; muitas jovens para os homens, muitos jovens para as mulheres", mas os portugueses entregaram-se exatamente às inclinações contrárias. O mal, portanto, não foi a colonização enquanto tal, mas o colonizador rapace e violento.
Estas limitações da "História" (que na verdade só são limitações aos nossos olhos de hoje) não impediram contudo que Diderot, que havia participado ativamente de sua elaboração, a considerasse uma obra capaz de fazer com que os tiranos dos povos se tornassem pelo menos mais detestados e que, assim, os povos, por sua vez, se tornassem menos pacientes em relação à sua própria submissão aos poderes despóticos.
Maria das Graças Nascimento é professora no departamento de filosofia da USP.
Folha de São Paulo
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