Ciências Humanas e Sociais
Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história
Maria da Glória Porto Kok
Pós-Graduanda em História Social, DH -FFLCH/USP
GUINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad, de Frederico Carotti. São Paulo: Cia. das Letras 1989, p. 281.
"Os problemas não se resolvem passando-os para os
outros"
A. Warburg
As obras do historiador italiano Carlos Guinzburg sempre nos trazem boas surpresas. Em seu último livro Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história, uma coletânea de sete ensaios escritos na Itália entre 1961 e 1984, verificamos um transbordamento do campo da história, realizado com rara ousadia e luminosidade. Arquitetados de maneira clara e concisa, esses ensaios são frutos de problemas e reflexões que germinaram em seus trabalhos anteriores e persistem centrais até hoje na realização das suas pesquisas sobre o sabá.
Na trajetória intelectual de Guinzburg notamos dois momentos diferentes. Um deles surge com a reconstituição da vida do moleiro Domenico Scandella, o Menocchio, perseguido e condenado pela Inquisição. Trata-se aí de colocar em relevância fenômenos aparentemente negligenciáveis em pesquisas históricas, tal como aparece em O queijo e os vermes (1976).
O outro provém do trabalho Os andarilhos do bem (I benandanti, 1966). Ao estudar minuciosamente as crenças agrárias da região do Friul, norte da Itália, entre o final do século XVI e meados do século XVII, Ginzburg detecta uma desconcertante semelhança entre essas crenças e os ritos dos xamãs siberianos, apesar da distância espacial e temporal que os separa.
A necessidade de explicar essas homologias que ocorrem nas raízes subterrâneas da história levou Guinzburg a explorar a morfologia: "Eu usava a morfologia como uma sonda, para perscrutar uma camada inacessível aos instrumentos usuais do conhecimento histórico" (p.13).
A conexão da morfologia com a história, que permeia todos esses ensaios, possibilita tanto a análise de contextos culturais específicos como a apreensão de suas dimensões formais. É um arcabouço que permite a Ginzburg aventurar-se em outras áreas do conhecimento, especialmente a história da arte e a psicanálise, O autor acentua dessa forma a premência de conferir interdisciplinariedade à história.
Como exemplificação, o ensaio "Freud, o homem dos lobos e os lobisomens" é uma releitura de um célebre caso clínico de Freud. A partir de um sonho deste paciente, Ginzburg realiza uma extraordinária análise, ressaltando os elementos folclóricos que o compõem e procurando delinear o contexto cultural onde este homem estava mergulhado. Prossegue afirmando que "não podemos ignorar que no sonho do homem dos lobos irrompe um conteúdo mítico mais antigo, reencontrável também nos sonhos (êxtases, desfalecimentos, visões) dos andarilhos do bem, dos táltos, dos lobisomens, das feiticeiras" (p.216 e 217).
Descortina-se aqui uma vasta rede de crenças homólogas na medida em que todas se diziam capazes de visitar o mundo dos mortos (em espírito ou em forma animal) e afirmavam ter nascido com características especiais que lhes conferiam poderes extraordinários: nascidos com dentes (táltos), com a coifa (andarilhos do bem, keisniki, lobisomens), ou nos doze dias entre o Natal e a Epifania (lobisomens). O casamento da morfologia com a história promove um amplo enfoque comparativo, capaz de melhor desvendar a natureza das crenças.
Além das pesquisas dos núcleos míticos, Ginzburg aborda em alguns ensaios as análises iconológicas e iconográficas no âmbito do conhecimento histórico. Em "De A. Warburg a E. H. Gombrich", por exemplo, examina o tratamento dado à história pelo estudioso de arte A. Warburg e seus discípulos. Ou então, no caso do ensaio "Ticiano, Ovídio e os códigos da figuração erótica no século XVI", Ginzburg percorre, à luz da noção de circularidade formulada por Mikhail Bakhtin, a circulação da imagem erótica, especialmente na pintura de Ticiano na Itália do "Cinquecento".
Estamos, portanto, diante de ensaios que exploram novos campos, ricos em idéias e possibilidades de pesquisa. Mas, de todos eles, o mais significativo e instigante é o ensaio "Sinais: Raízes de um paradigma indiciário", por se tratar de uma reflexão sobre o conhecimento histórico.
Ginzburg propõe-se a demonstrar a emergência de um paradigma (Modelo epistemológico) que não surge no âmbito das ciências humanas no final do século XIX e procura analisá-lo a fim de escapar da esgarçada contraposição entre "racionalismo" e "irracionalismo". Enfoca, então, a analogia entre o crítico de arte Giovanni Morelli, o personagem de Conan Doyle, Sherlock Holmes, e Freud. Os três desenvolveram seus métodos nos detalhes negligenciados, nos indícios diminutos, nos dados marginais.
A explicação para esta analogia consiste no fato dos autores terem tido formação médica e, como consequência, terem impresso em seus métodos o modelo da semiótica médica. Desse modo, começou a se esboçar um paradigma indiciário nas ciências humanas baseado na semiótica. Mas esse paradigma tinha raízes muito antigas.
Ginzburg encontra as raízes desse paradigma no mundo dos caçadores, entre as pegadas na lama, os ramos despedaçados, as bolinhas de esterco, os pêlos e as penas. O homem, durante gerações e gerações, aprendeu a decifrar os sinais deixados pelos animais e é a capacidade de sair de dados experimentais aparentemente descuidados para uma realidade complexa não experimentável diretamente que caracteriza este saber venatório. A partir daí, Guinzburg percorre o destino desse paradigma ao longo da história, suas apropriações e expropriações, deixando claro que o paradigma indiciário foi formado por diversas camadas culturais.
Ao finalizar o ensaio, Guinzburg fornece um sinal que nos remete a muitos outros sinais. Salienta o valor da intuição que, irradiando-se na experiência coditiana, "une estreitamente o animal homem às outras espécies animais" (p. 179).
Revelando uma vasta e viva erudição, Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história é um livro genial. Suas páginas, além de não se esquivarem dos problemas metodológicos e teóricos que surgem no decurso do trabalho, promovem saborosos abalos acadêmicos.
Revista de História - USP
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