A metáfora computacional
MARCOS BARBOSA DE OLIVEIRA
não há maior truísmo hoje em dia do que constatar o enorme impacto do computador na vida prática, em seus múltiplos aspectos. Bem menos evidente é sua influência no domínio da teoria, especialmente do ponto de vista proporcionado pelo ambiente cultural de nosso país. Na região teórica que engloba os fundamentos das várias ciências humanas, bem como uma boa parte das questões centrais da epistemologia e da metafísica, as metodologias, as reflexões sobre a natureza do conhecimento, das emoções e da razão vêm sendo profundamente afetadas pela idéia e realidade dos computadores. No fundo, é a própria concepção de ser humano que está em jogo, ameaçada pela ''metáfora computacional'' _a proposta de que o homem deve ser visto como um computador, vale dizer, como uma máquina.
A instância canalizadora desse impacto é por excelência a ciência cognitiva. Nascida há 35 ou 40 anos, esta nova área do saber apresenta-se hoje como um campo bastante heterogêneo, mal delimitado, marcado por numerosas e profundas tensões internas, porém dotado de um intenso dinamismo que a tem levado a conquistar espaços no mundo acadêmico com uma velocidade espantosa.
Isto vale, entretanto, apenas para seu berço, os Estados Unidos, para o Reino Unido e, em graus variados, para inúmeros outros países ''lá de cima'': Canadá, França, Alemanha etc. No Brasil, para quem vê esse movimento como um avanço, e tomando como parâmetro os Estados Unidos, o atraso é de cerca de 30 anos, já que apenas há uns cinco a nova ciência começou a ter presença institucional entre nós. A ciência cognitiva merece atenção, para ser apoiada ou criticada: na posição que já conquistou, o que não pode é ser ignorada. Isso, aliado a um dos aspectos de nosso atraso, a pobreza da literatura disponível em português, torna bem-vindos estes dois lançamentos, enquanto exemplos da produção francesa na área.
''Matéria e Pensamento'' é um diálogo entre um matemático, Alain Connes, e Jean Pierre Changeux, um dos nomes mais importantes da França nas áreas da biologia molecular e da neurociência (para usar um dos neologismos postos em circulação pela ciência cognitiva), autor do influente ''O Homem Neuronal''. A discussão gira em torno do que se pode chamar de ciência cognitiva do conhecimento matemático, cujos problemas entretanto logo remetem a questões tradicionais da filosofia, sendo a mais central a indagação sobre a natureza das entidades matemáticas. Nesse ponto, observa-se a oposição mais nítida entre o matemático que, não surpreendentemente, adota a perspectiva realista platônica, e o neurocientista, para quem os objetos matemáticos carecem de existência independente, não passando de criações do cérebro humano.
Apesar do que sugere o tipo de ilustração utilizado, não se trata de um livro introdutório, e só poderá ser apreciado por quem possua alguma familiaridade com um número considerável de tópicos, indo dos problemas filosóficos da mecânica quântica ao teorema de Gõdel, da evolução darwiniana às máquinas de Turing. O capítulo final do livro, numa mudança de registro, trata da ética, e aí se manifesta mais claramente o naturalismo que Changeux, especialmente, compartilha com a ciência cognitiva em geral _o ponto de vista que não enxerga outra postura em relação ao conhecimento que não seja a do cientista natural.
O resultado, no campo da ética, é um claríssimo caso do que Moore denominou ''falácia naturalista'', uma vez que a proposta de Changeux é a de construir uma moral fundada ''sobre fatos 'neurocognitivos' com o rigor do método científico''.
O livro de Dupuy trai sua origem já no título, ao utilizar a expressão ''ciência cognitiva'' no plural. Seria interessante, aliás, examinar as razões para tal escolha, investigar até que ponto são análogas às motivações subjacentes à tendência francesa mais geral de preferir ''ciências'' a ''ciência'' em inúmeros contextos _por exemplo, em ''filosofia das ciências''_ em contraste com o uso anglo-saxônico do singular. O Brasil nesse ponto está até agora se inclinando pela segunda alternativa _felizmente, a nosso ver, não apenas por ficar em sintonia com a matriz anglo-saxônica da nova disciplina, mas também porque essa opção permite que se utilize o plural de maneira menos ambígua para designar as várias ciências que confluem para a ciência cognitiva: a inteligência artificial, a neurociência, a psicologia cognitiva, a linguística etc.
O papel principal em ''Nas Origens das Ciências Cognitivas'' cabe à cibernética. O destino desta outra nova ciência é uma história de ascensão e queda. O empreendimento cibernético começou com forte ímpeto em fins da década de 40, atingiu um ápice de popularidade nos anos seguintes, para depois ir decaindo até chegar ao esquecimento quase completo a que se encontra relegada nos dias de hoje, quando o próprio termo ''cibernética'' soa curiosamente fora de moda. Quais as razões desse esquecimento? Esta é a pergunta que Dupuy se coloca. Na resposta que propõe, trata-se de um caso de filha que se envergonha da mãe. A mãe é a cibernética, a filha é a ciência cognitiva, e a motivação da ''démarche'' do autor é bem expressa na seguinte passagem: ''No mundo dos homens, aqueles que se envergonham de seus pais têm poucas possibilidades de se desenvolver harmoniosamente. Não há nenhuma razão para que o mesmo não aconteça no mundo das idéias. A vontade de esquecimento de sua própria história, própria do otimismo cientificista, é o meio mais seguro de se condenar a repeti-la, refazendo os mesmos erros''.
O que Dupuy procura mostrar, em outras palavras, é que a cibernética teve um peso muito maior nas origens da ciência cognitiva que seus adeptos em geral admitem. Trata-se portanto de uma proposta de reabilitação, uma proposta um tanto ambígua, contudo, uma vez que engloba um forte componente crítico em relação a seu objeto. Não há espaço aqui para avaliar os méritos dessa crítica, nem a coerência da posição desconstrucionista defendida pelo autor _a qual seguramente o situa fora da corrente majoritária da ciência cognitiva.
Independente disso, entretanto, o livro tem o mérito de trazer à tona todo um capítulo muito pouco estudado da pré-história da ciência cognitiva, a saber, a série de encontros interdisciplinares que veio a ficar conhecida como ''Conferências Macy'', realizadas em Nova York de 1946 a 1953, e da qual participaram, além de Wiener, McCulloch e von Neumann, um grande número de eminentes pesquisadores das mais diversas áreas. Um dos resultados do estudo de Dupuy é a valorização das idéias de McCulloch, que teria sido vítima de dupla injustiça, uma devida ao esquecimento da cibernética como um todo, outra ao não reconhecimento de sua própria contribuição a ela. O beneficiado no caso teria sido Wiener, visto em geral como o único pai da criança. Entre os vários autores a que Dupuy se refere para estabelecer sua tese, encontra-se Changeux, citado inúmeras vezes ao longo do livro e, no que se refere a McCulloch, criticado por não ter feito menção alguma a ele em ''O Homem Neuronal''.
As traduções são de maneira geral satisfatórias. No livro de Dupuy, entretanto, registra-se um certo número de falhas pontuais que poderiam ter sido eliminadas por uma revisão mais cuidadosa (por exemplo, ''anomal'', em vez de ''anômalo'', na pág. 124).
Marcos Barbosa de Oliveira é professor da Faculdade de Educação da USP.
Folha de São Paulo
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