ORTNER, Sherry. 1996. Making Gender: The Politics and Erotics of Culture. Boston: Beacon Press. 262 pp.
Cristiane Lasmar
Doutoranda, PPGAS-MN-UFRJ
Making Gender pode ser visto como uma apresentação da trajetória intelectual de um dos nomes mais importantes da antropologia do gênero. Os artigos que integram o livro, quatro inéditos, retratam os movimentos teóricos de Sherry Ortner ao longo de mais de vinte anos de produção acadêmica. Aluna de Geertz nos anos 60, feminista, comprometida, como ela mesma se define, com "uma antropologia humanista, interpretativa, preocupada em elucidar questões de cultura, significado e valor" (:217), Ortner não se furtou, todavia, a explorar outras possibilidades teóricas.
O artigo de abertura, que dá nome ao livro, representa a sua posição mais recente, uma crítica à teoria da prática a partir de uma perspectiva "feminista, minoritária, pós-colonial e subalterna" (:1). Considerando a teoria da prática como uma das mais poderosas para dar conta da complexidade da vida social, por sua ênfase na perspectiva do ator e nos modos de reprodução e transformação das relações de poder, a autora acusa os seus principais defensores, contudo, de jamais terem se esforçado para estabelecer um diálogo com a grande massa de trabalhos produzidos pela "antropologia engajada". O projeto de unir teoria da prática e "perspectiva subalterna" implica pensar a questão do poder e da dominação sem abrir mão da intencionalidade do sujeito. Inspirada em Geertz, Ortner propõe o modelo dos "jogos sérios" que captaria duas dimensões importantes da vida social. Como um jogo, esta é construída e organizada culturalmente em termos de categorias que definem atores, regras e objetivos, e consiste em teias de relações entre posições subjetivas, múltiplas e intercambiáveis; por outro lado, há um espaço de agência, isto é, os atores jogam com habilidade, talento e intenção. Para Ortner, os jogos são "sérios" porque poder e desigualdade estão sempre presentes.
A relação de Ortner com a teoria da prática construiu-se ao longo das duas décadas compreendidas pelos outros artigos da coletânea. No percurso, houve incursões a abordagens teóricas diversas, como em "The Virgin and the State" (1978), em que a valorização da virgindade feminina é explicada através de uma visão materialista e evolucionista. Outro exemplo é o clássico "So, Is Female to Male as Nature Is to Culture?" (1974), que se tornou referência basilar para os estudos de gênero, instituindo a dicotomia natureza/cultura como modelo teórico.
Inspirando-se na teoria de Michelle Rosaldo sobre as implicações da oposição público/privado para o status social da mulher, a autora avança, nesse artigo, a hipótese de que o confinamento na esfera privada e a própria fisiologia feminina levariam a uma representação simbólica universal e estruturante da mulher como mais próxima à natureza. O argumento desenvolve-se a partir de duas referências principais: o estruturalismo de Lévi-Strauss e o existencialismo de Simone de Beauvoir. Ortner sugere que, a despeito da imensa variabilidade de representações particulares, toda cultura reconhece e afirma uma associação metafórica entre mulher e natureza. Ao mesmo tempo, a natureza é concebida como inferior, um mundo a ser "socializado", "dominado". Disso deriva a equação mulher : homem :: natureza : cultura e a concepção (universal) da inferioridade feminina.
Ao mesmo tempo que contribuiu para tornar a dicotomia natureza/cultura um instrumento teórico relevante para os estudos de gênero durante os anos 70, o artigo suscitou debates inflamados. O paradigma de Ortner sofreu duras críticas, tanto do ponto de vista epistemológico quanto etnográfico. A crítica epistemológica tomava a oposição natureza/cultura, tal como formulada por Lévi-Strauss e reelaborada por Ortner, como uma construção ocidental não podendo ser, portanto, universalizada. Do ponto de vista etnográfico, os críticos apoiavam-se em uma série de casos que demonstravam a inadequação do modelo quando aplicado a algumas sociedades não-ocidentais.
Dois dos artigos do livro, "Gender Hegemonies" (1990) e o inédito "So, Is Female to Male as Nature Is to Culture?", tratam de responder a essas críticas e redefinir a posição da autora. Em ambos, Ortner reabre as discussões travadas na antropologia do gênero nas décadas de 70 e 80 - sobre a utilidade heurística da dicotomia natureza/cultura e a universalidade da dominação masculina -, à luz de novos instrumentos teóricos disponíveis. Ortner aceita apenas parcialmente as críticas à sua formulação da dicotomia. Assume o "grande erro substantivo" (:177) de ter proposto uma associação direta e imediata entre a dominação masculina e a equação que associa mulher à natureza e homem à cultura, sem considerar outras ordens de fatores que podem estar relacionadas a essa dominação. Por outro lado, reafirma que a oposição (e a associação da mulher ao primeiro termo) é uma estrutura simbólica de ampla ocorrência. Nesse ponto, Ortner empreende uma ofensiva contra os críticos que apresentaram exemplos etnográficos de conceituações alternativas da relação entre cultura e natureza, acusando-os de terem feito uma leitura equivocada da noção de estrutura que informa sua hipótese de 1974. Mantendo uma relação complexa com as ideologias e categorias culturais nativas, a oposição natureza/cultura não é um objeto passível de ser "encontrado" pelo escrutínio etnográfico, sustenta. Antes, seu caráter estrutural advém do fato de tornar-se realidade como uma questão existencial, que todas as culturas enfrentam: o confronto entre a humanidade e algo "que acontece fora da agência e/ou da intencionalidade humanas" (:179). Desse modo, Ortner insiste na oposição em seus contornos, mas de uma forma purificada, sem atribuir aos termos significados específicos. A imagística do controle e da dominação, apontada pelos críticos como um bias ocidental, desaparece de sua argumentação. Mas a defesa de Ortner torna-se problemática no momento em que ela tenta justificar a inserção dos termos de gênero na equação. Ao persistir na idéia de que as oposições natureza/cultura e mulher/homem podem, facilmente, entrar numa relação de metaforização mútua, a autora recai no erro de induzir a uma substantivação desses mesmos termos. Por fim, ela conclui que, embora a hipótese de 1974 possa ser sustentada teoricamente, o paralelismo estático das categorias lhe parece, atualmente, menos interessante que a análise da construção cultural e política da relação entre os elementos da equação (:180).
Ao tratar da universalidade da dominação masculina, Ortner revê radicalmente sua posição anterior, assentindo que um conceito de cultura menos totalizante e integrado, aberto às contradições e inconsistências da vida cultural, seria mais adequado para dar conta da imensa variabilidade de padrões de relações entre os gêneros. Utilizando a noção de hegemonia, formulada por Gramsci e reelaborada por Raymond Williams, sugere que, embora seja possível detectar, em toda cultura, uma multiplicidade de lógicas, discursos e práticas relacionados ao sistema de gênero, alguns são hegemônicos, outros marginais, subversivos, desafiadores. Para exemplificar, focaliza o caso Andaman e mostra que, a despeito da existência de algumas prerrogativas masculinas, é possível classificar a sociedade andamanesa como (hegemonicamente) igualitária, pois um igualitarismo sexual permeia de forma estrutural vários padrões de relação social.
A autora alega, ainda, que sua visão da universalidade da dominação masculina nos anos 70 era definida, basicamente, com referência a questões de valor e prestígio, o que não excluía a possibilidade da existência de instâncias, até mesmo legítimas, de poder feminino. Isto é verdade, porém, apenas para os trabalhos que publica a partir do início da década seguinte, os quais já refletem uma mudança de perspectiva que se verificava na antropologia do gênero como um todo. Quando Michelle Rosaldo apontou, em 1980, os problemas da utilização das dicotomias natureza/cultura e público/privado, afirmando que conduziam a uma visão essencialista do problema da mulher e pouco esclareciam sobre a vida que as mulheres levam nas sociedades humanas, as grandes questões inauguradas por Simone de Beauvoir já perdiam apelo. Os autores começavam a buscar abordagens mais comprometidas com a realidade político-econômica de sociedades particulares, e com o ponto de vista do ator social. O clássico artigo de Collier e Rosaldo, no qual elas interpretam as representações culturais da mulher nas "sociedades simples" como produtos da micropolítica da vida cotidiana, exerceu forte influência nos desenvolvimentos posteriores do campo e no pensamento de Ortner em particular. Dessa influência resultou "Rank and Gender"(1981).
Este artigo lida com um extenso corpo de dados etnográficos de sociedades polinésias tradicionais, sobre o qual Ortner se debruça para explorar as relações ali encontradas entre o sistema de prestígio e a construção do gênero e da sexualidade. Partindo da questão "o que querem os atores?" e "definindo seus desejos e limitações como essencialmente políticos" (:220), investiga o ponto de vista das várias categorias de atores envolvidos. Esse texto representa ainda seu primeiro passo na direção de uma teoria da prática, num movimento considerado por ela mesma, retrospectivamente, bastante intuitivo (:220). A hipótese é a de que apesar da estratificação social ser concebida como fixa e imutável, os homens fazem uso de sua autoridade doméstica para forjar estratégias de melhoria de status. Ortner demonstra que o alto status da mulher polinésia decorre de sua importância crucial para as considerações de prestígio de seus parentes masculinos.
Nos dois últimos artigos, também inéditos, podemos detectar uma utilização mais consciente e sofisticada da perspectiva inspirada no trabalho de autores como Bourdieu, Giddens e Sahlins. "The Problem of Women as an Analytic Category" é o primeiro trabalho em que Ortner faz uso de sua extensa pesquisa entre os Sherpa para pensar questões de gênero. Focalizando o papel fundamental exercido por um grupo de mulheres na fundação do primeiro convento sherpa, Ortner defende a fertilidade heurística do método centrado no ator. O recurso à distinção homem/mulher mostra-se estéril diante de uma situação etnográfica em que as ações dos atores são determinadas muito mais por sua posição no sistema de prestígio do que pelo gênero a que pertencem.
Tendo em vista ainda o caso sherpa, "Borderland Politics and Erotics" analisa a inserção das mulheres no alpinismo de altas altitudes no Himalaia a partir dos anos 70. Com base na noção de "zona de fronteira" (borderland), a autora investiga a produção de novos significados como fruto da interação de homens e mulheres, ocidentais e sherpa, em uma atividade até então dominada por homens. Enfatizando o ponto de vista da mulher sherpa, demonstra que o alpinismo pode ser visto como um meio de resgatar parte do igualitarismo sexual perdido em conseqüência de mudanças ocorridas com a modernização do Nepal.
Entre os motivos para considerar a trajetória intelectual de Ortner particularmente interessante estão a seriedade com que trata seu objeto de estudo, demonstrada pela autocrítica e experimentação teórica constantes, a habilidade em coadunar envolvimento político e rigor científico e, por fim, seu lugar paradigmático no desenvolvimento dos estudos de gênero. Do ponto de vista teórico, o livro é um exemplo de como idéias e métodos já consolidados podem ser reapropriados de forma criativa e fecunda. Para aqueles que fazem uma antropologia engajada, pode servir de estímulo e inspiração. Para os antropólogos envolvidos com questões de gênero é, ao mesmo tempo, uma fonte de dados e uma retrospectiva do desenvolvimento do campo.
Revista Mana
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