Os estudos de género (gender studies)
Ciências Humanas e Sociais

Os estudos de género (gender studies)




Os gender studies apareceram nos anos 70 nos Estados Unidos e transformaram profundamente o estudo das relações homens/mulheres. Hoje em dia os estudos sobre o género multiplicaram-se e revisitam o conjunto das ciências sociais e humanas.

O conceito de «Género» apareceu nos Estados Unidos durante os anos 70 em torno de uma reflexão à volta do sexo e da utilização desta variável na pesquisa nas ciências sociais. O movimento feminista, que tinha tido obtido algum impacte após a revolução sexual, procurava fazer ouvir a sua voz nas instituições de pesquisa. Tratava-se de reconhecer um empenhamento que se assumia cada vez mais como uma reflexão renovada sobre o mundo.
Foi o psicólogo Robert Stoller que popularizou em 1968 uma noção já utilizada pelos seus colegas americanos desde os anos de 1950 para compreender a separação em certos pacientes entre corpo e identidade. Daí a ideia que não existe uma real correspondência entre género ( masculino/feminino) e o sexo ( homem/mulher). Foi em 1972 que, apoiando-se na articulação entre a natureza e a cultura desenvolvida pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, a socióloga Anne Oakley reenviou o sexo para o domínio biológico e o género para a dimensão cultural. Os universitários americanos recusam a aproximação frequentemente realizada entre mulheres e natureza (principalmente feita por causa das suas faculdades reprodutivas) enquanto os homens estariam do lado da cultura. Um artigo publicado em 1974 pela antropóloga Sherry Ortner teve um forte impacte ao tornar os termos particularmente explícitos: « A mulher é para o homem o que a natureza é para a cultura». Em antropologia foi Margaret Mead que se dedicou a uma primeira reflexão sobre os papéis sexuais nos anos 1930. O estudo dos papéis desempenhados pelos indivíduos segundo os sexos e os caracteres propriamente femininos e masculinos permite distinguir a aprendizagem daquilo que é dado pela natureza.

Sexo feminino = um «macho menor» !!!

Uma vez operada a distinção entre género e sexo, os investigadores voltaram-se a concentrar nas relações homem/mulher. A historiadora Joan W. Scott incitou a ver mais longe a simples oposição entre os sexos. Esta deverá ser considerada «problemática» e constituir, enquanto tal, um objecto de pesquisa. Se o masculino e feminino se opõem de modo problemático é porque existe entre eles relações de poder em que um domina sobre o outro. Mas se o género é pensado como uma construção social, tal não se verifica com o sexo, encarado como um dado natural e, mais provavelmente, como algo «impensado». Foi o historiador Thomas Laqueur que demonstrou o carácter historicamente construído do sexo e a sua articulação com o género. Na obra « A Fábrica do Sexo» (1992) ele mostra a coexistência ( e a predominância do primeiro sobre o segundo) dois sistemas biológicos. Assim, durante muito tempo, o corpo era visto como unisexo e o sexo feminino era como um «macho menor» , quando no século XIX passamos para um sistema fundado na diferença biológica dos sexos.
Logo que o sexo se tornou cultural tal como o género, a sexualidade torna-se aos olhos dos investigadores o objecto de uma nova reflexão. A influência do filósofo francês Michel Foucault ( especialmente na década de 1980 durante a qual as suas obras foram traduzidas nos Estados Unidos) foi primordial. O género foi articulado com o poder e a sua transformação em discurso foi relacionada com a análise da sexualidade e das suas normas.
O final dos anos de 1980 dá-se um início de institucionalização. Emprestado ao vocabulário psicológico e médico pela sociologia, o termo é utilizado noutras disciplinas como a história. Antes que o género se tenha transformado numa ferramenta de análise, a história das mulheres limitava-se a fazer aflorar as narrativas até então invisíveis. Só depois é que deixa a mostrar as mulheres de uma maneira essencialista, isto é, com características próprias e imutáveis tais como as qualidades emotivas, por exemplo. A análise do género reconduz as especificidades pretensamente femininas à luz de um dado momento e uma determinada sociedade. Foi assim que os estudos de género perimitram reconhecer o carácter socialmente construído dos dados históricos sobre as mulheres como dos homens. Se o género torna visível o sexo feminino, tal implica que o homem deixe de ser neutral e geral para passar a ser visto como um indivíduo sexuado.A partir daqui foi possível desenvolver-se uma história dos homens e das masculinidades, sobretudo graças à revista americana Men and Masculinities dirigida por Michael Kimmel.
As questões à volta do género, da mesma maneira que a sua variação para a sexualidade desde os meados dos anos 80, contribui para dividir as feministas em dois grupos. As mais radicais empenham-se a mostrar o carácter opressivo da hierarquia dos sexos em termos de sexualidade a favor do homem, visto na sua globalidade como um macho dominante.

Gays, lésbicas, queers

Outro grupo, como as americanas Rubin Gayle e Judith Butler, mostram que a relação entre os sexos não implica somente uma hierarquia entre os géneros mais também uma injunção normativa. Em 1984 R. Gayle alarga a reflexão teórica às sexualidades que escapam à norma como o sadomasoquismo e a pornografia. Judith Butler, em 1990, tenta lançar um olhar transversal que inclua tanto as mulheres, os gays, as lésbicas como outras minorias que não se reduzam a nenhuma das duas primeiras categorias. Para J.Butler, se o sexo é tão cultural quanto o género, este último pode ser entendido como um discurso performativo sobre o qual se podia agir a assim introduzir modificações aos habitus impostos pela sociedade. Este esquema analítico alarga-se à pesquisa sobre as minorias tais como os homossexuais, as lésbicas ou os transsexuais. Os estudos de género constituem parte inteira pois que a opressão não diz respeito somente às mulheres, nem a dominação emana unicamente dos homens mas do sistema heterossexual. Os estudos gay e lésbicos, e mais tarde a teoria queer, insistirão na análise da norma imposta ao género ou não. Assim, o caso das lésbicas pode ser analisado sob o ângulo do género, enquanto mulheres, como do da norma, enquanto desviantes. O movimento queer baseia-se na multiplicidade das identidades sexuais estabelecidas segundo as necessidades e as contingências. Da mesma maneira, o trabalho do historiador americano George Chauncey sobre a cultura gay nova-iorquina durante o período entre as guerras mundiais cruza os parâmetros do género e da sexualidade de uma forma frutuosa. Mostra como se passou de um sistema de género em que a relação homossexual assentava nas identidades homem/mulher (só o dos homens que apresentava um comportamento feminino era estigmatizado) para um sistema em que a homossexualidade é avaliada à sombra da heterossexual idade. No segundo caso ( a que corresponde ao actual período) todo o homossexual é estigmatizado sob o olhar da sua sexualidade. O historiador mostrou assim a coexistência dos dois sistemas na actual Nova Iorque em que certas comunidades de latinos continuam a funcionar segundo um binarismo de género.

O contributo francês

O conceito de género encontrou algumas dificuldades para se implantar em França, devido principalmente à desconfiança para com o feminismo americano visto como demasiado comunitarista e radical. Nos anos 1980 a universidade francesa procurou precaver-se contra o político. Pela sua passagem pelo militantismo, os estudos feministas afastaram-se do domínio da pesquisa.
As expressões «relações de sexo» ou « relações sociais de sexo» foram durante muito tempo preferidas à noção de género, encarada por fluida demais. Esse vocabulário explica-se pela abordagem feminista materialista, influenciada pela escola marxista que caracteriza a primeira geração das investigadoras nos anos 1970, por via das sociólogas Christine Delphy, Nicole-Claude Mathieu e Colette Guillaumin.
Elas acabaram por retomar o trabalho de desnaturalização iniciado pelos universitários americanos, principalmente através do questionamento do trabalho enquanto actividade natural da mulher.
C. Delphy centra a sua reflexão na opressão como construção social. Ela opõe-se a uma visão diferencialista e identitária que vê as mulheres como um grupo homogéneo com características especificamente femininas. Inverte mesmo a problemática inicial: a masculinidade e a feminilidade não explicam a hierarquia e a dominação tal como o sexo muito menos explica o género. Os grupos de homens e mulheres não se constituíram senão porque a instituição social da hierarquia ( que se estende à organização social) é o princípio primeiro, do mesmo modo que é o género o que dá sentido à característica física do sexo (que em si não contém algum sentido).
O conceito de género começou realmente a difundir-se em França nos meados dos anos 1990, quando a Comunidade Europeia se virou para as questões de género e da paridade na busca de u ma igualdade efectiva. A partir de 1993 os debates sobre a paridade alargaram os trabalhos sobre o género ao campo político. Desde 1970 que os trabalhos de Janine Mossuz-Lavau sobre a visibilidade das mulheres relativamente ao voto, às eleições e à elegibilidade representaram uma primeira abordagem das relações entre os estudos de género e o campo político. A sociologia do trabalho acabou por concluir da necessidade de se tomar em conta o sexo de modo sistemático. Neste quadro assiste-se ao longo dos anos 90 à criação de módulos específicos de pesquisa como o «Mage» (Marche du travail et genre) à volta da socióloga Margaret Maruani que, depois de se ter interessado pela divisão sexual do trabalho, analisa hoje a divisão sexual do mercado de trabalho.
Quer seja na história, na antropologia ou em qualquer das ciências sociais, o género é objecto de um crescente interesse nos meios universitários, a passo que nos Estados Unidos parece que o conceito parece ter perdido grande parte da sua força provocativa e do seu valor heurístico, não abrindo novas pistas de investigação ou não promovendo novas perspectivas sobre os temas clássicos. Os jovens investigadores franceses estão, por seu turno, mais entusiasmados, tanto mais que se encontram distantes do militantismo que entravava o reconhecimento dos seus predecessores. Nesse sentido, o seu principal desafio é dar ao género um estatuto teórico nas ciências sociais despido de ideologia.

(Tradução para português do artigo de Sandrine Teixido, publicado no hors-série nº 4 ( Septembre-Octobre 2005)da revista francesa Sciences Humaines)

Breve glossário:

Género = de origem anglo-saxónica (gender) o termo começou por ser usado nas ciências médicas, a psicologia e a sociologia, e só depois pela história das mulheres a partir dos anos 1980. Em França preferiu-se durante muito tempo empregar expressões como «sexo social» ou «diferença social dos sexos» para se referir à mesma realidade. O termo hoje já se generalizou e inscreve-se numa perspectiva construtivista e pela qual se analisam as diferenças entre homens e mulheres (desigualdades, hierarquias, dominação masculina, etc) como construções sociais e culturais, e não como resultado de diferenças naturais.


Feminismo diferencialista = ramo do movimento feminista que postula uma diferença da natureza entre o masculino e o feminino, pelo qual existiria uma «essência feminina» que decorreria dos caracteres femininos específicos e inatos ( condutas femininas, escrita feminina,…) e que justificaria as diferenças no tratamento entre os dois sexos. Apelidadas por vezes de «essencialistas» ) sobretudo pelos seus detractores) as feministas diferencialistas reivindicam a igualdade na diferença.

Feminismo Igualitarista = para as feministas igualitaristas, também conhecidas por «universalistas», todos os seres humanos são indivíduos iguais, independentemente das diferenças dos traços físicos como a cor da pele ou o sexo. As diferenças entre homens e mulheres são o resultado de relações de poder e de dominação. A subordinação da mulher é uma produção social e toda a afirmação da especificidade feminina arrisca-se a dar lugar a uma hierarquização. O sexo deve pois estar dissociado dos papéis sociais, políticos e simbólicos na sociedade.

Queer = o termo aparece nos Estados Unidos no período entre as duas grandes guerras para designar pejorativamente os homossexuais com um comportamento ostensivamente efeminado. Hoje, o termo designa uma teoria que coloca em causa toda a norma, quer ela seja de género ou de sexo. Para desmontar as identidades, os queers empenham-se a misturar todas as classificações: sexualidade hetero ou homossexual, gays, lésbicas, transsexuais, masculino-feminino,…a fim de insistir na plasticidade das relações sexo-género. A identidade não é mais uma essência mas antes uma perfomance, algo fluído, bizarro e inclassificável…

Gender studies = conjunto de estudos e pesquisas que analisa as diferenças de tratamento entre homens e mulheres em todos os domínios sociais e que gerou inúmeros estudos nas ciências sociais de carácter transdisciplinar. Posteriormente, tais trabalhos desmultiplicaram-se em outras tantas áreas de estudo como os «men’s sutides ( sobre a construção do masculino e da virilidade), os «gay and lesbian studies» ( sobre a sexualidade), e os «queer studies»


Women’s studies
= desenvolveram-se na década de 1960 nas universidades norte-americanas estreitamente ligados ao movimento feminista da época, e marcado por um acentuado feminismo «radical» que assumia um diferencialismo e que levava à separação entre os sexos.

Alguns nomes:


· Margaret Mead (1901-1978) – figura de proa do culturalismo antropológico norte-americano. Combate a noção do «eterno feminino». A partir dos seus estudos no terreno nas ilhas do Pacífico Margaret Mead defende o carácter cultural e construído das identidades de sexo, mostrando que em certas etnias a passividade e a sensibilidade são características masculinas.
· Simone de Beauvoir – publica em 1949 o livro «O Segundo Sexo» que se vai tornar na obra de referência na reflexão sobre o género. Analisa aí as modalidades sociológicas, psicológicas e económicas da hierarquia entre os sexos e mostra a universalidade da dominação dos homens sobre as mulheres, convidando as mulheres a usar da sua liberdade para escaparem ao papel de serva e mãe.
· Luce Irigaray – é a principal figura da contestação à psicanálise enquanto disciplina patriarcal, denunciando o imperialismo masculino da filosofia ocidental. Procura lançar uma nova ética nas relações sexuais.
· Michel Foucault – o filósofo francês constitui uma referência maior para os defensores da teoria queer ao mostrar o carácter construído da normatividade heterossexual e ao questionar as noções de género e sexo.
· Carol Gilligan – psicóloga diferencialista para a qual homens e mulheres tem funcionamentos psicológicos diferenciados. Interessa-se em especial pelas concepções da moral dos dois sexos: a mulher com uma «ética da solidão» (empatia, protecção e altruísmo) e o homem com uma «ética de justiça» (igualdade das pessoas, respeito do direito).
· Elisabeth Badinter – defende uma concepção igualitarista dos dois sexos. O amor maternal não teria nada de natural e instintivo. Cada sexo tem a sua dose de masculinidade e de feminilidade. As sociedades são cada vez mais andróginas. Ao mesmo tempo que se opôs a qualquer medida discriminatória para as mulheres, erigiu-se igualmente contra as tendências de vitimização de algumas feministas, reafirmando a sua completa rejeição de todo o diferencialismo.
· Joan Scott – Historiadora americana que, no encalço de Foucault e dos desconstrucionistas (conhecida pelo seu French feminism), propôs uma definição rigorosa da noção de género. Apresenta o post-estruturalismo como um instrumento para re-analisar os fenómenos históricos, sociais e culturais à luz dos discursos e das representações sobre a diferenças dos sexos.
· Judith Butler – Professora de literatura comparada em Berkeley, esta autora, juntamente com Eve Kosofsky Sedgwick, é a teorizadora do movimento queer. Opõe-se às feministas que definem as mulheres como um grupo com características comuns, o que reforçaria o modelo heterossexual e binário. Vê o género como uma variável fluida e susceptível de variar segundo o contexto e o momento. J. Butler convida a uma acção subversiva ( o chamado «gender trouble») que leve a uma confusão e à profusão de identidades. Para ela, a identidade de género pode ser reinventada sem cessar pelos próprios actores.
· Françoise Héritier – parte da constatação do carácter universal da dominação masculina, da hierarquia homem(mulher e daquilo que ela chama uma «valência diferencial dos sexos». Preconiza uma mudança para as mulheres a partir do controle destas sobre a sua fecundidade graças à contracepção.
· Pierre Bourdieu – dedicou-se a descrever em todas as obras as relações de dominação nas sociedades e a violência simbólica que daí resulta, mostrando como as mulheres integraram o «habitus» (comportamentos mais ou menos conscientes e modos de pensar) do sexo, ou seja, da sua própria dominação. A dominação masculina torna-se assim uma «construção social naturalizada» que, não obstante o movimento feminista, não se mostra pronto a desaparecer.



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