Maio de 68: a questão da exploração dos trabalhadores foi o eixo das reivindicações estudantis ( texto de João Bernardo)
Ciências Humanas e Sociais

Maio de 68: a questão da exploração dos trabalhadores foi o eixo das reivindicações estudantis ( texto de João Bernardo)


Texto retirado de:
www.jornalmudardevida.net/


Uns jovens interessantes, embora um tanto ou quanto estouvados, erguendo barricadas e lançando pedras à polícia em nome de ideias generosas mas completamente impraticáveis − eis como o Maio de 1968 tem sido frequentemente apresentado na avalanche de artigos e conferências que celebram os quarenta anos passados sobre o acontecimento. Muitos comentadores simpatizam com esse movimento na medida em que o consideram utópico e, portanto, inofensivo. Simpatizam mais ainda quando só vêem estudantes envolvidos, cujos protestos e desordens não punham directamente em perigo a base económica do sistema. Mas Maio de 68 não foi um movimento utópico, foi um movimento derrotado, o que é muito diferente; e mesmo durante a fase inicial, restrita ao meio estudantil, a questão da exploração dos trabalhadores foi determinante.

Os estudantes

Maio de 68 teve um único grande tema: a recusa de uma universidade ao serviço do capitalismo. Aquela contestação é hoje geralmente apresentada como uma luta entre gerações, jovens reivindicando a libertação sexual e de costumes e pondo em causa a autoridade dos mais velhos. Mas isto vinha já a suceder na prática e desde há vários anos. Foi outro o eixo das reivindicações estudantis, o lema que inspirou as principais palavras de ordem lançadas durante a greve. Os estudantes recusavam-se a ser técnicos superiores destinados a enquadrar e disciplinar a classe trabalhadora.

O Movimento do 22 de Março, uma das organizações mais expressivas da época, composta por libertários e por maoístas espontaneístas, proclamou num panfleto de 4 de Maio: «Nós batemo-nos […] porque recusamos tornar-nos: - professores ao serviço da selecção no ensino, selecção feita à custa dos filhos da classe operária, - sociólogos fabricantes de slogans para as campanhas eleitorais governamentais, - psicólogos encarregados de fazer “funcionar” as “equipas de trabalhadores” segundo os interesses superiores dos patrões, - cientistas cujo trabalho de pesquisa será utilizado de acordo com os interesses exclusivos de uma economia de lucro. […] Recusamo-nos a melhorar a universidade burguesa. Queremos transformá-la radicalmente para que de agora em diante ela forme intelectuais que lutem ao lado dos trabalhadores e não contra eles […] Queremos que os interesses da classe operária sejam defendidos também na universidade».

Esta declaração tinha um valor geral e as outras correntes políticas partilhavam a mesma opinião, tanto os maoístas da União das Juventudes Comunistas Marxistas-Leninistas (UJCm-l) como os trotskistas da Juventude Comunista Revolucionária (JCR), que seguiam a orientação de Mandel, e os trotskistas da Federação dos Estudantes Revolucionários (FER), que seguiam a orientação de Lambert. Como afirmou o Action nº 1, de 7 de Maio, o jornal da insurreição estudantil: «Aqueles que lutam contra a universidade capitalista encontraram-se lado a lado com aqueles que lutam contra a exploração capitalista».

Se havia unanimidade na rejeição de uma universidade ao serviço do capital, a divisão entre as várias correntes políticas contestatárias fez-se relativamente à questão da aliança entre estudantes e trabalhadores − e bastaria isto para confirmar que os problemas da classe trabalhadora foram determinantes no movimento. A FER considerava que a aliança dos estudantes com os trabalhadores se devia realizar mediante negociações entre a direcção da União Nacional dos Estudantes de França (UNEF), uma espécie de sindicato estudantil, e as direcções das várias centrais sindicais operárias. Para a FER tratava-se mais de estabelecer acordos entre burocracias sindicais do que de forjar uma comunidade de interesses nas lutas práticas. Para as outras correntes contestatárias as lutas práticas eram determinantes, mas enquanto a UJCm-l defendia que os estudantes se deviam colocar sob a condução política da classe trabalhadora, a JCR e o Movimento do 22 de Março defendiam que a convergência entre as lutas estudantis e as lutas operárias se devia fazer na rua, nos confrontos contra a polícia, e que deste modo o próprio movimento faria surgir uma vanguarda comum. Para estas duas organizações não se tratava de subordinar os estudantes aos trabalhadores mas de construir uma unidade de base.

A aliança com os trabalhadores foi anunciada desde o começo da greve estudantil. As palavras de ordem da manifestação de 6 de Maio foram tanto «Liberdade para os nossos camaradas» e «A Sorbonne para os estudantes» como «Estudantes solidários com os trabalhadores», e na grande manifestação de 7 de Maio, avaliada em 50.000 pessoas, a faixa que encabeçava o desfile proclamava «Os estudantes com os trabalhadores». Entretanto, as ocupações das Faculdades eram apresentadas pelos estudantes radicais como a reprodução de uma forma de luta caracteristicamente operária.

Num panfleto emitido a 6 de Maio, o Movimento do 22 de Março afirmou que «os estudantes utilizam de agora em diante os métodos de luta dos sectores mais combativos da classe operária». Mais tarde, a mesma organização escreveu num apelo destinado a estimular a formação de Comités de Acção Revolucionária: «Seguindo o caminho traçado pelos operários de Caen, de Mulhouse, de Le Mans, de Redon, da Rhodia [um grupo industrial centrado em Besançon], de Paris, os alunos das universidades e dos liceus e os trabalhadores que se manifestaram contra a repressão do Estado policial na noite de sexta-feira, 10 de Maio de 1968, lutaram na rua durante várias horas contra 10.000 polícias. […] A 13 de Maio, estudantes e operários encontraram-se de novo na rua, iniciaram uma discussão política conjunta e, para prossegui-la, ocuparam permanentemente as faculdades da Universidade de Paris. A partir de então multiplicaram-se as greves com ocupação das fábricas. Para que triunfem as reivindicações de todos os trabalhadores, para atingirmos realmente os nossos objectivos, para prepararmos na acção quotidiana a tomada do poder pelo proletariado, trabalhadores e estudantes, organizemo-nos nos locais de trabalho em comités de acção revolucionária».

A data evocada neste panfleto, 13 de Maio, marcou uma ampliação decisiva do movimento, porque começou nesse dia a maior greve geral da história da França, que chegou a mobilizar entre 9 e 10 milhões de grevistas.

A greve geral

Estava convocada para 13 de Maio uma manifestação que reuniu cerca de um milhão de pessoas, a maior realizada até então em Paris, onde se operou a junção entre estudantes e trabalhadores. À frente ia uma faixa proclamando «Estudantes, professores, trabalhadores solidários», e o facto mais significativo é que esta faixa só pôde encabeçar o cortejo depois de várias escaramuças entre os estudantes e os dirigentes da Confederação Geral do Trabalho (CGT), a maior central sindical, hegemonizada pelo Partido Comunista, que era francamente oposto à luta estudantil e a qualquer tentativa de aproximação entre estudantes e trabalhadores.

Durante esta manifestação a CGT tentou enquadrar os trabalhadores e impedi-los de contactarem com os estudantes, mas não o conseguiu e os estudantes inseriram-se no cortejo operário. Estava anunciado o tema das semanas seguintes, porque enquanto durou a greve geral os estudantes tentaram repetidamente ligar-se aos trabalhadores na acção prática e os dirigentes da CGT fizeram tudo o que podiam para impedir essa convergência. Aliás, convém deixar claro que esta atitude caracterizou unicamente a CGT, porque a Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), uma central sindical de origem cristã, apoiou a aliança entre trabalhadores e estudantes e no dia 20 de Maio realizou uma conferência de imprensa em conjunto com a UNEF, sublinhando que a luta dos estudantes e a dos trabalhadores era uma só.

A 16 de Maio cerca de mil estudantes dirigiram-se às grandes fábricas Renault de Billancourt, que se haviam juntado à greve, e a CGT opôs-se ao contacto dos estudantes com os operários com o curioso argumento de que «recusamos qualquer ingerência externa». A solidariedade era apelidada de «ingerência». No dia seguinte numerosos estudantes regressaram à Renault-Billancourt, e de novo a CGT os impediu de conviver com os grevistas.

Esta obstrução não fez desistir os estudantes mais radicais, que continuaram a procurar a ligação com as empresas em luta. A Moção Política Geral aprovada na Assembleia Geral realizada na Sorbonne a 20 de Maio considerou «que o objectivo político é o derrube do regime pelos trabalhadores e que a ocupação [das Faculdades] deve ser realizada nesse quadro político; que, com efeito, o ensino só corresponderá às necessidades da população quando esta tiver realmente derrubado o poder capitalista; que não podendo a remodelação da universidade ser concebida fora deste quadro, ela não deve, por conseguinte, ser prosseguida somente pelas pessoas que aí trabalham hoje, mas pelo conjunto dos trabalhadores» e concluiu recordando que «a tarefa essencial dos estudantes é ligarem-se ao combate da classe operária contra o regime».

Nesta perspectiva, a 31 de Maio um comunicado da Coordenação dos Comités de Acção, um organismo estudantil de base, insistiu: «A nossa força reside nas ocupações de fábrica». E a 1 de Junho um comunicado da UNEF incitou os estudantes a dirigirem-se às fábricas em greve da Renault e da Citroën.

Em 6 de Junho 4000 polícias fortemente armados ocuparam as fábricas Renault em Flins e expulsaram os piquetes de greve. No dia seguinte numerosos estudantes mobilizados pela UJCm-l e pelo Movimento do 22 de Março foram apoiar os piquetes estacionados nas ruas e estradas de acesso às fábricas. A CGT denunciou então os bandos «organizados militarmente» que «intervieram» em Flins, referindo-se não aos polícias mas aos estudantes, o que não impediu que naquele mesmo dia 7 de Junho, num comício em Elisabethville, junto às fábricas Renault de Flins, se consumasse a ligação dos estudantes aos trabalhadores.

Graças à exigência dos operários, e apesar da oposição dos burocratas da CGT, dois representantes da contestação estudantil tomaram a palavra no comício, ao lado dos oradores operários. Durante quatro dias, foi junto com os estudantes que os operários resistiram às cargas da polícia, até que em 11 de Junho as autoridades se viram obrigadas a fechar as fábricas Renault de Flins.

A comuna de Nantes

Os artigos e conferências dedicados ao Maio de 68 concentram-se geralmente no sucedido em Paris e nos subúrbios desta cidade, mas foi noutro lugar que o movimento atingiu o auge.

O número de 5 de Junho da Tribune du 22 mars, o jornal do Movimento do 22 de Março, descreveu o sucedido em Nantes, uma cidade do oeste da França.

«Enquanto em Paris, e sem demasiadas esperanças, incitamos à constituição do duplo poder, quer dizer, do poder das massas, da base auto-organizando-se frente ao poder estabelecido, enquanto exigimos a autogestão, eis que esta, ou pelo menos um esboço auspicioso, existe já à escala de uma cidade, em Nantes. […] Um comité intersindical estabelecido na Câmara Municipal dirige praticamente a cidade. Ele assegura não só a distribuição da água, do gás e da electricidade mas também o abastecimento de todos os grossistas, em colaboração com as organizações camponesas e com algumas aldeias vizinhas. Além disso, durante vários dias este comité intersindical distribuiu, devidamente certificados, vales de gasolina e vales de alimentação. Mais ainda, o comité controla os preços na cidade, os seus delegados inspeccionam os mercados e as lojas a retalho, obrigando os comerciantes a manter os seus preços. É isto o duplo poder. Também foram criados comités de bairro que, em colaboração com aldeias vizinhas, se ocupam do abastecimento das famílias dos grevistas, no que diz respeito aos bens essenciais. Os caponeses, sobretudo da CDJA [organização de jovens agricultores], vendem ao preço de custo, o que significa que assistimos concretamente, ainda que em escala reduzida, à supressão dos intermediários! Mas a originalidade de Nantes não se limita ao duplo poder. Há algo de surpreendente, e por isso de reconfortante. Trata-se da aliança real e concreta entre os trabalhadores, os camponeses e os estudantes, quer dizer, entre as classes revolucionárias e os estudantes revolucionários. Esta aliança ocorre sobretudo na base, os estudantes e os operários vão ajudar os camponeses nos seus trabalhos, os estudantes apoiam os piquetes de greve operários, todos agindo, na prática, de mãos dadas. Mas esta aliança ocorre igualmente ao nível das organizações. No comité intersindical estão representadas a CGT, a CFDT, a CGT-FO [central sindical de direita], a FEN [federação de sindicatos de professores], a UNEF (dirigida por anarquistas), a CDJA e a FDSEA [organização de agricultores].»

E depois?

Apesar dos esforços da CGT e do Partido Comunista para fraccionar a greve geral numa multiplicidade de greves particulares, desmobilizar os grevistas e convencê-los a regressar ao trabalho, a 14 de Junho havia ainda cerca de um milhão de grevistas. Nos dias 13 e 15 de Junho o governo proibiu todas as manifestações e 11 organizações de extrema-esquerda foram dissolvidas, as suas publicações proibidas e os seus militantes presos ou perseguidos. Estabeleceu-se assim o Estado de Direito tal como vigora hoje, baseado na generalização e na institucionalização das medidas de excepção.

Maio de 68 teve duas outras consequências a longo prazo. Por um lado, chamou a atenção dos trabalhadores franceses, e mesmo dos trabalhadores de outros países, para as greves com ocupação das empresas. As lutas autogestionárias foram fortemente impulsionadas por este exemplo e têm voltado a surgir sempre que existem condições concretas para levá-las a cabo. Aliás, as ocupações de empresas em Portugal em 1974 e 1975 podem ser analisadas nesta perspectiva.

Além disso, Maio de 68 ditou o declínio e a irrelevância do Partido Comunista Francês, que se opusera frontalmente à contestação, e embora a CGT seja ainda a principal central sindical francesa, ela detém esta posição num país onde hoje só estão sindicalizados cerca de 8% da força de trabalho. É certo que houve militantes comunistas a participar activamente no movimento e que muitos filiados na CGT defenderam o prosseguimento da greve e pronunciaram-se a favor dos estudantes, mas não foi esta a atitude dos dirigentes nacionais de ambas as organizações. A oposição dos dirigentes comunistas franceses ao Maio de 68 condenou-os perante a esquerda anticapitalista, sem que a direita ordeira lhes agradecesse o serviço prestado.



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