LEON HIRSZMAN - O NAVEGADOR DAS ESTRELAS
Ciências Humanas e Sociais

LEON HIRSZMAN - O NAVEGADOR DAS ESTRELAS



Tramas complementares
ROBERTO SANTOS - A HORA E A VEZ DE UM CINEASTA

JOSETTE MONZANI
A respeito de Leon Hirszman, Carlos Diegues disse: "Foi ele quem articulou o Cinema Novo e (...) não deixou o Cinema Novo acabar mais cedo. O Leon foi o maior articulador que o cinema brasileiro já fez". Já Nélson Pereira dos Santos fala de Leon como um perfeccionista na montagem, um perseguidor da precisão. E salienta sua vocação política: "Estava sempre procurando uma produção ligada a um movimento político (...), tinha uma paixão política fantástica (...). Cheio de Marx, ele delirava, voava, falava horas, bonito".
Hirszman, Roberto Santos e todo o Cinema Novo sofreram com a censura. A luta por um cinema que mostrasse o homem simples, em luta pela sobrevivência foi a meta comum destes cineastas, perseguida de diferentes modos. Inimá Simões conta, neste sentido, um episódio interessante sobre Roberto Santos: "Sem suportar mais a reclusão (devido à repressão política), ele começou a circular discretamente pela cidade com o amigo Norberto Nath, evitando os pontos de encontro tradicionais (...). Ouvia-se falar em prisões, gente sendo vigiada, mas como conferir? Restava o programa insuspeito de assistir a filmes nipônicos no bairro da Liberdade, nas mormacentas sessões vespertinas, porque ninguém imaginaria encontrá-lo ali. Quando 'Matraga' estreou, em março de 1966, alguns críticos perceberam claras influências do cinema japonês em algumas passagens do filme".
Roberto Santos, para sobreviver, fez de tudo: publicidade, documentários para Primo Carbonari, TV etc. E deu aulas de cinema, formando técnicos e diretores. Marcou várias gerações de profissionais paulistas -algo que ainda não foi estudado. Ao retraçar tal trajetória, Simões acaba destacando outras figuras representativas do cinema paulista, hoje pouco lembradas: César Mêmolo Jr., Cyro Del Nero, Chuck Fowle, Luís Sérgio Person, Olney São Paulo.
Como bem situa o autor, Roberto Santos "era um representante do Cinema Novo no ambiente cinematográfico paulista". Analogamente, Helena Salem salienta o trabalho de Hirzman em São Paulo. Sem dúvida, estas duas biografias são complementares; juntas, reconstituem o diálogo entre os grupos de cineastas do Rio e de São Paulo. E revelam, ambas, o papel importantíssimo de mediação exercido por Nélson Pereira dos Santos.
Importante observar que estes dois livros se distinguem da proliferação atual de biografias. Estudos biográficos bem-feitos, como estes, servem à apreensão dos processos de criação, segundo a crítica genética, valorizando a pesquisa séria no campo biográfico. Eis dois exemplos:
Segundo Inimá Simões, Roberto Santos, por correr sempre em raia própria, entre o cinema de estúdios e a Embrafilme, "viu-se marginalizado inúmeras vezes. A falta de atenção o deixava magoado, alimentando um certo ressentimento, inclusive pelo fato de não ser considerado um intelectual do cinema. Perdeu tempo com isso, porque, se não tinha o brilhantismo na explicitação formal das idéias, era incomparável no 'set' de filmagem. Gostava de dizer 'eu não sei nada, sou um ignorante'. No entanto, tinha um conhecimento teórico imenso".
Também cabe salientar o depoimento de Leon Hirszman a Alex Viany: "Em 'Pedreira de São Diogo', eu tirava da realidade imagens que estavam em mim, na minha cabeça, no meu coração, em minha forma de sentir. Em 'Maioria Absoluta', deixei que a realidade viesse a mim. A não ser uma visão política minha sobre questões sociais, não tenho nenhuma atitude a priori sobre questões estéticas. Esse foi um filme de caráter direto, com som direto, feito para que outros tivessem voz. (...) No processo de realização descobri a poesia que havia no falar do pobre, do analfabeto, especialmente na gente do nordeste".
D. Voldman, em seu ensaio "Definições e Usos" (1), afirma que o pesquisador (de história oral) não deve, ao realizar entrevistas, "negligenciar elementos de psicologia, psicossociologia e psicanálise. (Para este) não se trata de propor interpretações da mensagem que lhe é comunicada, mas de saber que o não dito, a hesitação, o silêncio, a repetição desnecessária, o lapso, a divagação e a associação são elementos integrantes e até estruturantes do discurso e do relato".
Deste modo, os depoentes, como atores que personificam um só personagem (o biografado), criam uma "trama" em torno deste. Uma existência vai assim se delineando. É uma intimidade que se vai constituindo. O subjetivo, aliado ao objetivo, não recria a vida, não torna a trama real, mas quase consegue.
Sobre Hirszman depõe Luiz Carlos Melo, entre outros: "A introspeção psicológica do Leon era uma coisa extraordinária, ele percebia, ele mergulhava mesmo. Porque essas pessoas (os internados no Centro Psiquiátrico, da dra. Nise da Silveira, sobre os quais Hirzman realizou um filme) mergulham profundamente na dimensão do inconsciente, e o Leon tinha total capacidade de fazer essa viagem junto. Ele mergulhou, ele não fez simplesmente filmar. Ele vivenciou esse processo internamente. Foi muito bonito. Uma experiência de vida que foi, acho, para ele e para todos nós, riquíssima". Acerca deste filme, diz Leon Hirzman: "Ele me fez mais real, deu espaço ao meu inconsciente, eu apareci; e isso é doloroso, laborioso".
Apesar dos vários relatos incluídos em "A Hora e a Vez de um Cineasta", Simões não se detém muito em detalhes íntimos. Pouco se sabe da vida familiar de Roberto Santos. Nisto Helena Salem é mais generosa. Entretanto uma das histórias interessantes, envolvendo Roberto Santos e relatada por várias pessoas, segundo Simões, é sobre Guimarães Rosa: toda a equipe -e especialmente o cineasta- estava tensa com a presença de Rosa na projeção de "Matraga", todos querendo saber sua opinião. "A projeção chega ao fim, a respiração pára ... até que... o escritor solta um grito surpreendente: 'Estamos vingados!' (isto porque a adaptação cinematográfica de 'Grande Sertão: Veredas', feita por um outro diretor, havia fracassado)".
Chegamos assim a uma questão decisiva: os leitores de biografias querem, antes de ver a razão alçar vôo, emocionar-se. Já que, ao abrir as páginas, suplicam de modo parecido ao do narrador da novela "A Invenção de Morel", de Bioy Casares: você, escritor, que é solidário conosco, em nosso prazer da leitura biográfica, invente uma máquina que nos faça penetrar na consciência do biografado, não no sentido de fazer parte desta consciência, como queria partilhar o narrador de Casares da consciência de Faustine, mas no de tornar possível compartir, com ele, dos seus desejos.
Nota:
1. In Marieta de M. Ferreira e Janaína Amado (org.), "Usos e Abusos da História Oral", Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996.
Josette Monzani é professora de teoria e história do cinema na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR).

Folha de São Paulo



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