HITCHCOCK POR HITCHCOCK
Ciências Humanas e Sociais

HITCHCOCK POR HITCHCOCK


Sidney Gottlieb

As lições de Hitchcock

12/Dez/98

Inácio Araujo



Em Hitchcock convivem o cineasta comercial e o autor, o técnico e o artista, o mestre do humor e o gênio do suspense, o tímido e o publicitário. Não é de estranhar que, nos últimos 50 anos, seja ele o cineasta sobre quem mais se escreveu no mundo, de ensaios sobre sua obra a biografias detalhadas. Assim, a primeira questão que suscita a publicação de "Hitchcock por Hitchcock" é sobre a pertinência dos textos e entrevistas reunidos no volume por Sidney Gottlieb: não seria a maior parte deles apenas veículos com que polia cuidadosamente sua imagem?


Sim e não. Boa parte dos textos encontrados por Gottlieb parecem ter intenções autopromocionais evidentes (e o próprio Gottlieb admite que uma parte deles não deve ter sido escrita diretamente por Hitchcock, embora todos tenham tido sua aprovação). Mas a personalidade sinuosa do cineasta, à parte ser ela própria reveladora, jamais permite que intenções dessa ordem apareçam de maneira unívoca, ou mesmo que se sobreponham à reflexão sobre cinema, que pratica em cada um desses textos.


Com isso, "Hitchcock por Hitchcock" começa por ser informativo sobre o próprio cinema. Nenhum cineasta clássico tornou público o seu pensamento com tanta desenvoltura e frequência quanto ele. De maneira que os textos publicados neste volume podem ser vistos, para começar, como um precioso complemento ao clássico "Hitchcock/Truffaut" (Brasiliense), com a diferença que, aqui, podem ser encontrados vários textos dos anos 30, escritos num momento em que Hitchcock, embora já famoso, estava longe de ser o autor mundialmente consagrado que viria a se tornar a partir dos anos 50.


Se "Hitchcock/Truffaut" pode ser visto como um manifesto da era do autor -na medida em que o controle da obra pelo diretor constitui o subtexto que atravessa todo o volume-, os escritos agora reunidos remetem a uma questão mais atual e reiteradamente colocada na era pós-autor em que vivemos: quem é o verdadeiro responsável pelo filme? Será o diretor, o produtor, ou o cinema é essencialmente uma arte - por seu próprio modo de produção- produzida socialmente?


Mesmo nos momentos mais febris da "política dos autores", essa sombra pairou sobre o pensamento cinematográfico. Ainda que se possa considerar o cineasta (ou alguns cineastas) como autor de uma obra, isto é, responsável por sua unidade e concepção, ainda assim seria preciso repartir essa autoria com os atores, os técnicos, os produtores, enfim, todas as pessoas que, de um modo ou outro, colaboram para o seu resultado final.


Hitchcock vai um pouco mais longe e sustenta, em alguns de seus textos, que o verdadeiro diretor de um filme é o público. De certa forma, esse é o pensamento corrente na indústria na era clássica, não existe muita novidade nisso. Mas Hitchcock é um dos raros, se não o único cineasta, a ter idéias muito claras sobre a interação dos três elementos constituintes do filme: a câmera (realização), a tela (projeção) e o público (o destinatário). O encontro desses três momentos define o cinema em seu conjunto, na concepção hitchcockiana. Assim, o cineasta dirige seu projeto de maneira pessoal, preservando-o tanto quanto possível da interferência de estúdios e financistas, mas é ao mesmo tempo dirigido pelo público.


Ao cineasta cabe manipular esse público (e Hitchcock é antes de tudo um manipulador consciente de emoções), mas apenas dentro dos limites em que ele deseja ser manipulado. De maneira que o cineasta existe, antes de mais nada, como depositário e executor desse desejo.Daí não ser estranho que rótulos como "cineasta comercial" ou "cineasta de suspense" tenham aderido tão fortemente a sua imagem, de modo a constituir quase uma prisão (contam-se nos dedos os projetos "pessoais" que Hitchcock levou adiante, como "O Homem Errado", um drama soberbo, mas que, por fugir ao sistema do suspense, teve acolhida tímida quando de seu lançamento original, em 1956).


E não deixa de ser estranha, igualmente, a maneira franca como se dispõe, em vários dos seus artigos, a comentar com os espectadores aquilo que se passa "por trás das câmeras", da decupagem técnica ao roteiro, ou mesmo a teorizar sobre produção e construção de estúdios. Não é levado a isso por algum tipo de adesão ao jornalismo de fofoca. Trata-se, para ele, de conversar abertamente com o espectador sobre o que acontece numa filmagem, dos lances inesperados à maneira como se relacionava com os atores. Não há nesses textos intenção mistificadora. Quando escreve sobre as atrizes inglesas, por exemplo, dispensa eufemismos: "Se mergulharmos uma atriz inglesa num banho de água fria, ainda assim ela vai emergir tentando parecer altiva e digna".Essa frase cheia de humor resume boa parte de seu cinema, sem dúvida (para não falar da tensa relação que teve, durante toda sua carreira, com as atrizes, inglesas ou não). É impossível deixar de ver nela, contudo, uma intenção pedagógica, como se suas palavras pudessem levar o público a uma maior intimidade com a própria criação cinematográfica.


A intenção de intervir na relação câmera/tela/público é evidente, o que leva seus artigos -especialmente os dos anos 30- a serem lidos hoje como generosas lições, em que discute os princípios de sua arte, embora não raro de maneira indireta e sem abdicar de sua personalidade sinuosa. Isso não o impede de, em determinados momentos, trocar sua postura distanciada por um tom francamente polêmico, ocasiões em que produz artigos marcantes, casos de "Os 'Indigestos' Filmes Britânicos", onde a comparação entre a vivacidade dos filmes americanos e a ausência de variedade no drama inglês faz lembrar o polemismo de um François Truffaut. Menos polêmico, embora não menos incisivo, em outros textos chama a atenção para algo que ainda hoje preocupa a nós, brasileiros: a necessidade de explorar personagens, cenários e situações que definam o caráter nacional do cinema que se faz e ao mesmo tempo chamem a atenção para o cinema como modo de conhecimento.


Se o tripé câmera/tela/público mantém-se do começo ao fim do livro, vale frisar que isso não acontece de maneira estática: existe uma tensão permanente entre essas três instâncias, e não raro Hitchcock se coloca na pele de um outro ( "Se Eu Estivesse à frente de uma Produtora"), na tentativa de pensar o cinema de diversos ângulos.O conjunto de textos reunidos em "Hitchcock por Hitchcock" termina, assim, por traçar o perfil de um cineasta que reflete permanentemente sobre sua arte, sem dúvida, mas também que, ao fazê-lo, manifesta idéias claras sobre o seu tempo. Não será demais, nesse sentido, dar atenção ao duro ataque contra o crítico teatral Harley Granville-Baker, que não aceitara a adaptação para cinema de "Romeu e Julieta", feita por Hollywood nos anos 30. Se usa mais de sarcasmo do que de ironia ao fazê-lo, não é tanto por causa do pedantismo implícito nas posições do crítico, que procura sacralizar Shakespeare, confinando-o aos palcos. É mais por perceber que esse elitismo termina por obscurecer, a um só tempo, Shakespeare, o cinema e o século 20.


Porque essa é a questão que apaixona Hitchcock, no fim das contas: o cinema, com seus vários compromissos, é uma arte impura, precária, submetida a imperativos não artísticos, mas, por isso mesmo, uma expressão forte do homem e do tumulto modernos.



Inácio Araujo é crítico de cinema.



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