DOCUMENTA 10 - Mostra intransigente
Ciências Humanas e Sociais

DOCUMENTA 10 - Mostra intransigente



Nelson Aguilar
ARTES PLÁSTICAS - EXPOSIÇÃO


Em memória de Maxime A. Castelnau
Os catálogos da Documenta 10 colocam a exposição em outro patamar. Sem eles, a mostra se converteria num navio fantasma, na ponta do iceberg. Os dois livros propiciam a dimensão integral do evento. Sobra ambição aos organizadores: articular arte e política dentro de parâmetros contemporâneos. O emblema de capa exibe o "E" vermelho superposto ao "LI" das letras negras da palavra "Politics" (política), resultando em "Poetics" (poética), artifício provindo de obra de Marcel Broodthaers, constituído por um mapa do mundo político cuja legenda está corrigida à tinta, tornando-se "Mapa do Mundo Poético" (1968), confirmando a declaração do co-editor, "ele (Broodthaers) é o artista de referência para essa Documenta" (pág. 387).
Grande parte dos equívocos nascidos em torno da celebração alemã advém do desconhecimento das premissas conceituais da curadora Catherine David. A mídia espantou-se com a escassa presença de pintura na mostra. De fato, fora o pintor Gerhard Richter -que, no entanto, apresentou seu trabalho "Atlas" (1962-1996), composto de 5.000 fotos, que estão na origem de seus quadros-, havia apenas dois pintores presentes: o norte-americano Lari Pittman, cuja ornamentação barroca dos painéis e o desejo de romper com o espaço privado prolongam a luta pela afirmação de sua identidade sexual, e o também norte-americano Kerry James Marshall, que reflete o imaginário da comunidade negra.
Ambos usam os meios picturais para romper a ambiência da subjetividade fechada dos objetos de arte acabados e autoritários. Para escapar à torre de marfim dos ateliês, a curadora busca operar com mídias intersubjetivas, como vídeos, fotografias, Internet, além de convocar arquitetos e urbanistas para tornar visível a interseção de arte e política, atrair cineastas, no afã de render justiça à arte do século 20 mais dirigida à coletividade.
A interdisciplinaridade atinge um nível invejável: filósofos, especialistas de literatura comparada, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, historiadores de arquitetura, economistas, geógrafos, críticos de cinema, de teatro, historiadores com interesse em colonialismo e pós-colonialismo enriquecem o catálogo, estabelecendo uma ágora onde se discutem questões contemporâneas essenciais. A crítica de arte age como um intruso nessa assembléia, mas não a ponto de entregar o fio condutor: esse é o papel da entrevista que os organizadores entabulam com o crítico de arte alemão Benjamin Buchloh.
A escolha dos artistas brasileiros para a Documenta 10 tem a ver com esse estado de coisas e os que denunciaram o limite das instituições e assumiram "atitudes de intransigência utópica ou crítica" foram preferidos. Uma das queixas dos visitantes da mostra incide na pobreza com que as obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark foram exibidas. A intenção curatorial não almeja a espetacularização do evento (Guy Debord). David distingue entre restituição e reconstituição das obras de arte, optando pela primeira e desconsiderando a última. Como refazer os trajetos e motricidade que animam os objetos de participação de Oiticica ao público europeu sem cair na cilada mitologizante?
São apresentados em Kassel como fim de feira, parangolés no cabide, foto do morro de Mangueira ao fundo. Reviver as obras seria dar boa consciência ao público, esquecer que o poema caixa 4, "Mergulho do Corpo", apega-se à tortura policial de afogar a cabeça da vítima na caixa de água para extrair confissão ou enviá-la à morte. Reabitar Oiticica não ocorre sem riscos. Lembro-me de curador que considera as "Cosmococas", 1973 (realizadas em colaboração com Neville de Almeida), projeção de slides com imagens de Marilyn Monroe e Jimi Hendrix maquiados por trilhas de cocaína ao som de "War Heroes", do guitarrista, ou de árias interpretadas por Yma Sumac num recinto repleto de redes, apologia do consumo de drogas, esquecendo-se das premissas contraculturais que inflectiam os anos 60 e 70, sob a luz das quais o slogan "seja marginal, seja herói" adquire sentido pleno.
O público europeu encontra o mesmo rigor na sala de Lygia Clark, onde um vídeo em versão original põe em relevo a artista, explicando o uso de seus objetos, ou o assistente Lula Wanderley, narrando sua experiência com a terapia clarkiana. David evita a disneylandização das peças, a transformação dos objetos relacionais num workshop tipo Summerhill desmemoriado. Tanto Oiticica quanto Clark tiveram carreiras agônicas, pois a fusão entre arte e vida passava ao largo do circuito artístico de museus e galerias.
O catálogo grande resolve de maneira brilhante essas aporias. Não cedeu à tentação de explicar as obras. Publica textos que oferecem homologia impecável à iconografia, como se poderia esperar de estruturalistas -o livro contém entrevistas e ensaios de Balibar, Clastres, Deleuze, Foucault, Lévi-Strauss, Rancière, para citar os de primeira leva. Assim, a fotografia de "Parangolé P22", de Oiticica, 1968 (realizado em colaboração com Antonio Manuel), vestido pelo compositor Torquato Neto, recria uma indumentária dançante cujas matrizes pertencem às culturas hindu e árabe.
O escrito correspondente a essa imagem gira em torno de Gayatri Chakravorty Spivak, que reelabora a noção de cidadania na Índia, desconstruindo o discurso pós-colonial. O estudo de Masao Miyoshi, "Um Mundo sem Fronteiras? Do Colonialismo ao Transnacionalismo ao Longo do Declínio do Estado-Nação", coexiste com fotos da performance "Cabeça Coletiva", de Lygia Clark, realizada no Rio em 1976. A paginação comprova a imaginação sócio-artística dos editores. Miyoshi afere, a partir de análise do funcionamento das empresas transnacionais, que não estamos "na era do pós-colonialismo, mas do colonialismo intensificado, embora oculto sob novo disfarce" (pág. 201). As transnacionais definem-se como companhias gigantes que não estão ligadas ao país de origem, nômades, prontas para atracarem em nações que ofereçam impostos baixos, mão-de-obra farta e altos lucros.
Nesse ponto, pode-se pensar o parentesco de "Cabeça Coletiva" com a obra de Tunga, "Ponta Cabeça" (1994/97). "Cabeça Coletiva" corporifica o fluxo de memórias de uma comunidade utópica, uma variante de falanstério, onde cada membro enriquece uma grande bandeja repleta de panos, serpentinas, papéis escritos, alimentos, até se assemelhar a uma trouxa multicolorida. O ritual pede que os despojos sejam consumidos e a plataforma restante torne-se ambulante que é encarapuçada por um dos oficiantes que desfila em séquito pelas ruas. Contrasta com "Ponta Cabeça", performance órfica, que resenha outro sentido, capturando metaforicamente o perfil da empresa transnacional: um só chapéu para muitas cabeças rodeado por contrabandistas de ossos humanos.
O projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o Museu Brasileiro da Escultura (1988/91), comparece no catálogo grande ao lado dos de Toyo Ito, Álvaro Siza, James Stirling, entre outros, e fotos de Gordon Matta-Clark. A escolha não poderia ter sido mais afinada com os propósitos gerais da mostra. Paulo Mendes, em sua obra, sempre lidou com a porosidade entre o exterior e o interior -basta atentarmos para a residência Millan (1971), onde a rua está para a moradia como o palco para a platéia, num espetáculo do Living Theater. A própria planta contesta os cubos fechados dos aposentos, propiciando o convívio aberto entre os moradores, a "favela racionalizada" (Flávio Motta). O interior deixa de existir detrás da barricada, de ser a cifra da alma do cliente. A casa reatualiza o momento em que o privado se articula com o público em busca de um contato real com todos.
O sentido das perfurações de Matta-Clark nos imóveis urbanos, que marcou muito a última Lina Bo Bardi, acompanha esse fazer transgressivo. Já o projeto do Mube tem a ver com a fita de Moebius, pela proposição de um espaço contínuo entre o subterrâneo e o aéreo, cujo percurso na arte brasileira começa pela recepção de "Unidade Tripartida" (1949/51), de Max Bill, prolonga-se em "Caminhando" (1964), de Lygia Clark, e esgalha-se no espaço promissor de Paulo Mendes.
A medida do alcance poético e político da empresa de Catherine David desponta ainda com mais nitidez, se comparada ao ideário conservador das duas últimas bienais de Veneza, capitaneadas pelos funcionários do Grupo dos 7, Jean Clair e Germano Celant.
Nelson Aguilar é professor de história da arte na Universidade de Campinas (Unicamp); foi curador-geral das 22ª e 23ª Bienais Internacionais de São Paulo.

Folha de São Paulo



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