Deus é matemático?
Ciências Humanas e Sociais

Deus é matemático?


Celebração da descrença

Livro debate o fato de a matemática ser aplicável a quase tudo, inclusive a ciências irmãs. Os números seriam tão presentes no universo que valeria a pergunta: será que o Criador era matemático?

Por: Thiago Camelo

Publicado em 23/02/2011 | Atualizado em 23/02/2011

Celebração da descrença

Euclides, Pitágoras, Platão e outros filósofos dividem o mesmo espaço na imaginação de Rafael, no afresco 'Escola de Atenas'. Em ambiente parecido, acredita-se, a matemática como sinônimo de perfeição começou a ser forjada. (foto: Wikimedia Commons)

O mais recente livro do astrofísico romeno Mario Livio chama-se Deus é matemático?Não é a primeira vez que Livio investiga e responde (ou tenta responder) questão do tipo. Sua bibliografia ? Razão Áurea: a história de Fi, um número surpreendente, A equação que ninguém conseguia resolver, entre outros livros ? conta com obras que perseguem símbolos (números, razões) que aproximariam, de algum modo, o 'mundo real' do universo da matemática. Dessa vez, em seu novo livro, o cientista parece ter bancado a pergunta que sempre tangenciou em seus escritos pregressos.

A matemática seria criação do homem ou da natureza (Deus)?

Afinal, a "efetividade da matemática" (termo do Nobel Eugene Wigner) na vida prática é fruto de uma invenção do homem? Ou não, é mais que isso? Será que a matemática sempre esteve entre nós, com suas regras preestabelecidas, universais por assim dizer, e que nosso papel seria apenas mergulhar fundo em seu mistério (preexistente!) para de lá entender um mundo regido por números?

Em outras palavras: a matemática seria criação do homem ou da natureza (Deus)?

Em Deus é matemático?, Livio aponta: "Não importa se são físicos tentando formular teorias do universo, analistas de bolsa de valores coçando a cabeça para prever a próxima quebra do mercado, neurobiólogos construindo modelos da função cerebral ou estatísticos do serviço secreto militar tentando otimizar a alocação de recursos; todos eles estão usando matemática."

deus é matemático 2

De fato, impressiona bastante o fato de a matemática ser a 'Ciência das ciências'. Segundo Livio, o método científico de René Descartes (1596-1650) foi fundamental para que a matemática servisse como prova da validade da maioria das teorias. Para ser 'verdade', é necessário provar em números.

Assim, o autor brinca com a falsa modéstia dos matemáticos que afirmam que essa ciência não 'serviria para nada' ou, dependendo do estudo, teria pouca (ou nenhuma) aplicabilidade no mundo físico. Livio fala da "efetividade passiva": termo cunhado para apontar abstrações da matemática que, anos (ou séculos) depois, são usadas para algo prático. Cita ateoria dos números do matemático britânico Godfrey Harold Hardy (1877-1947) como exemplo.

Hardy enchia-se de orgulho para dizer que não via aplicabilidade alguma no seu estudo. Estava errado. Décadas depois, houve uma revolução no desenvolvimento de códigos criptografados. A grande maioria valia-se dos estudos do matemático britânico.

Livio cita ainda uma dezena de outros estudiosos que, assim como Hardy, tiveram seus trabalhos usados efetivamente em anos posteriores mesmo sem intenção.

A matemática não seria apenas mais uma expressão da mente humana?

Mas a pergunta persiste: afinal, a coincidência da matemática com 'as coisas do mundo tangível' são meras coincidências ou há uma verdade dos números por trás de tudo?

Em mais da metade das 352 páginas do livro, tudo leva a crer que a resposta de Livio será: "Sim, Deus é matemático". Mas uma bem-vinda reviravolta é apresentada quando o autor introduz opiniões alternativas que dizem que não, que a matemática é apenas "mais uma forma de expressão da mente humana" ? tal qual as artes ou a filosofia.

O autor expõe os argumentos do matemático britânico Michael Atiyah (1929-), vencedor da Medalha Fields (prêmio concedido pela União Internacional de Matemática) em 1966. Atiyah dizia ser bastante sedutor acreditar que a matemática era uma ciência preexistente, pré-humana. Mas não podia compactuar com essa visão.

Sua explicação: ele afirmava que 'o contar', o ato mais básico da matemática, poderia não ser uma noção primordial caso a inteligência não tivesse residido na espécie humana (que tem dois braços, duas pernas, uma cabeça etc.), e sim em uma água-viva isolada nas profundezas do oceano. Para o matemático, se assim fosse, os dados sensoriais básicos não estariam disponíveis para o desenvolvimento da matemática como a conhecemos, afinal não existiria nada para contar.

Portanto, a nossa matemática não passaria de uma questão de cognição, de estar no mundo, de sentir o mundo com os sentidos humanos.

Meio-termo

Mario Livio chega ao fim de sua jornada (involuntária) pela história da matemática sem uma resposta definitiva. No final, apresenta um politicamente correto meio-termo entre as duas visões para responder a sua pergunta-título. A matemática está no humano e na natureza e os dois, de alguma forma, interagem.

Viajamos de Pitágoras aos matemáticos mais modernos

No fundo, a viagem que fazemos durante o texto ? desde Pitágoras até os matemáticos mais modernos ? ressoa muito mais do que a pergunta que dá título ao livro. Afinal, entender o caminho que levou alguns a verem a matemática como "milagre" e outros, como expressão humana, é muito mais instigante do que descobrir a solução de um suposto mistério.

A dúvida persistente, aliás, torna o livro ainda mais bonito. Levar a matemática como profissão de fé e a elevar metaforicamente ao trono de Deus soaria dogmático e ortodoxo (como qualquer religião radical), caso a questão não fosse discutida, relativizada e reavaliada, como em toda 'boa experiência' científica. Parafraseando não o poeta, mas o físico e matemático francês Blaise Pascal (1623-1662): há razões que a própria razão desconhece ? e saber disso, como prova este Deus é matemático?, expande a nossa percepção do mundo.

Deus é matemático?
Mario Livio
Rio de Janeiro, 2010, Editora Record
Ciência Hoje On-line



loading...

- A Fórmula Secreta
Duelos, segredos e matemática Livro conta história de um episódio fundamental para o nascimento da matemática moderna e retrata uma das disputas mais virulentas da ciência renascentista. Marcelo Garcia Duas das mentes mais afiadas do século...

- Um Desafio Sem Igual
PIERRE DE FERMAT 12/Dez/98 Otávio Bueno MATEMÁTICA A história da matemática encontra-se repleta de enigmas. Pierre de Fermat é certamente um deles. Em primeiro lugar, ele nunca foi um matemático profissional, mas passou a vida como magistrado, trabalhando,...

- A Teoria Do Caos E A Geometria Fractal No Piolho Ou Como Se Aprende Matemática No Café (7 De Nov. às 18h. No Café Piolho)
CAOS no Piolho No dia 7 de Novembro às 18h, há aula no Café Piolho. José Matos, professor do Departamento de Matemática do ISEP e investigador do Centro de Matemática da Universidade do Porto, irá mostrar como se aprende Matemática no café....

- Palestra Sobre Matemática Informal (21 De Fev.) Na Fac. De Ciências Da Universidade Do Porto
Matemática informal: uma contradicção? Palestra 21/FEV às 17h00 Edifício das Matemáticas, sala 0.04 Por:Maria Dedò Università degli Studi di Milano Associar a Matemática à palavra «informal» parece uma autêntica contradições. Com este...

- Para Quando Um Exame De Aferição Da Língua Portuguesa à Dren ?
Transcrição da crónica de Manuel António Pina sob o título «Pensamento Único» publicada hoje no Jornal de Notícias O Ministério da Educação tornou-se na vanguarda do regime de pensamento único entre nós. A ministra ainda não chegou ao ponto...



Ciências Humanas e Sociais








.