Um desafio sem igual
Ciências Humanas e Sociais

Um desafio sem igual


PIERRE DE FERMAT
12/Dez/98
Otávio Bueno
MATEMÁTICA
A história da matemática encontra-se repleta de enigmas. Pierre de Fermat é certamente um deles. Em primeiro lugar, ele nunca foi um matemático profissional, mas passou a vida como magistrado, trabalhando, desde 1631, no setor de petições em Toulouse (na França). Suas obrigações incluíam desde o envio de amenas petições ao rei até decisões judiciárias, como, por exemplo, condenar à fogueira um padre que abusara de suas funções. Era apenas nas horas vagas que Fermat podia dedicar-se à sua verdadeira paixão: a matemática.Isolado em Toulouse, com muito pouco contato com os matemáticos de Paris, Fermat deleitava-se em resolver problemas de teoria dos números, probabilidade e cálculo. Juntamente com Pascal, ele foi um dos criadores da teoria da probabilidade, motivado por dificuldades trazidas por pessoas envolvidas com jogos de azar. Além disso, foi com base no método criado por Fermat para representar tangentes que Newton mais tarde elaboraria o cálculo. Com certeza, essas duas contribuições já seriam suficientes para assegurar-lhe um lugar na história, mas é a idiossincrasia de Fermat que talvez tenha deixado sua marca mais notável.Ele adorava lançar desafios. Com frequência, enviava cartas a seus correspondentes afirmando ter demonstrado certo teorema e, sem lhes fornecer quaisquer indícios de como construir a prova, desafiava-os a estabelecer o resultado. Invariavelmente, admitindo o fracasso, os matemáticos da época solicitavam a Fermat que lhes mostrasse a prova -o que ele sistematicamente se negava a fazer.Aquele que mais tarde seria conhecido como "o último teorema de Fermat" teve sua origem de forma igualmente peculiar. Um dos livros que Fermat mais apreciava era "Aritmética", de Diofanto, um monumental tratado sobre teoria dos números que incluía alguns dos mais belos resultados produzidos na Grécia antiga. Fermat costumava redigir, na margem de seu exemplar, idéias que lhe surgiam à medida que estudava o livro; elas incluíam desde meras curiosidades matemáticas até significativas generalizações dos resultados apresentados. Entre tais observações, destaca-se uma feita a propósito da questão 8 do Livro 2º. Segundo Fermat, não existem três números inteiros que satisfazem a equação "xn + yn = zn", em que "n" representa 3, 4, 5... E acrescenta, em seu estilo característico: "Tenho uma demonstração verdadeiramente maravilhosa desta proposição, mas esta margem é estreita demais para contê-la". Nessas poucas linhas, estava lançado um desafio destinado a permanecer por mais de 350 anos.Com a morte de Fermat, em 1665, coube a seu filho mais velho, Clément-Samuel, a nobre tarefa de divulgar ao mundo as descobertas de seu pai. E foi graças ao trabalho de Clément que os impressionantes resultados do "mestre dos amadores" (nas palavras de E.T. Bell) seriam apreciados. Clément publicou as observações de Fermat numa edição especial da "Aritmética" de Diofanto, contendo o texto original grego, a tradução latina e os comentários que Fermat redigiu. O que ficou imediatamente claro à comunidade matemática é a existência de pérolas muito raras nos escritos de Fermat. E ainda que as provas que ele apresentou se restringissem a indicar os pontos mais importantes das demonstrações, não restava a menor dúvida de que se tratava de um matemático de primeiro nível. Com o passar dos anos, cada uma das impressionantes observações de Fermat à margem da "Aritmética" foi provada de forma rigorosa e completa; exceto uma que, não obstante as tentativas de matemáticos do calibre de Euler, Cauchy, Kummer e muitos outros, estava destinada a se transformar no recalcitrante último teorema de Fermat. Nenhuma geração de matemáticos jamais conseguira provar (nem refutar) esse resultado.O belíssimo livro de Simon Singh conta-nos a história de como, após mais de três séculos de angústias, fracassos e frustrações, o último teorema finalmente foi provado. Como quase tudo associado a Fermat, na história dessa demonstração há uma inacreditável sequência de peculiaridades. O autor da proeza é um matemático inglês, Andrew Wiles, atualmente professor em Princeton. Ainda criança, Wiles descobriu o problema deixado por Fermat ao ler, em uma biblioteca pública de sua cidade natal, Cambridge, o livro de Bell sobre o assunto. Naquele instante, Wiles sabia que ele jamais conseguiria deixar o problema de lado. Era impressionante que algo com um enunciado tão simples resistisse às mais hábeis tentativas de prova. E não foi por acaso que ele decidiu então se dedicar à matemática e colher todas as ferramentas necessárias para um dia tentar resolver o problema.Em certa medida, a principal dificuldade enfrentada por Wiles foi a mesma que levou ao fracasso as diversas tentativas anteriores: não era claro qual seria o melhor modo de abordar o problema. Mas nesse ponto a fortuna parecia jogar ao lado dele. Evidentemente, Wiles não iniciou sua carreira tentando provar o último teorema de Fermat, o que seria muito pouco razoável. Ele se especializou numa área da teoria dos números que estuda as chamadas "curvas elípticas". E era exatamente o estudo desse tipo de "curvas" que se revelaria crucial para a demonstração do teorema.Em 1955, dois matemáticos japoneses, Y. Taniyama e G. Shimura, formularam uma conjectura assombrosa que, se fosse verdadeira, permitiria vincular duas partes até então inteiramente distintas da matemática: justamente o estudo das curvas elípticas com as chamadas "formas modulares". A importância dessa conjectura é que, unindo o "mundo elíptico" ao "modular", uma quantidade impressionante de resultados pode ser obtida. O problema é que, tal como o teorema de Fermat, ninguém fazia a menor idéia de como provar tal conjectura. Ora, em 1984, o matemático G. Frey indicou que, se a conjectura de Taniyama-Shimura fosse verdadeira, então também o seria o último teorema de Fermat. Em outras palavras, se alguém conseguisse provar a primeira, automaticamente o problema de Fermat estaria resolvido. Esse era o elo que faltava a Wiles para que ele pudesse finalmente atacar o problema que o cativara desde a infância. Seu objetivo era provar a conjectura de Taniyama-Shimura.Usando toda informação disponível acerca de curvas elípticas e formas modulares, Wiles passou sete anos recluso em Princeton, desenvolvendo novas técnicas, generalizando resultados e criando sozinho (tal como Fermat!) uma matemática própria para estabelecer a conjectura. Para desviar a atenção dos colegas acerca de sua pesquisa, Wiles publicava, a cada seis meses, extratos de um longo trabalho sobre curvas elípticas que estava pronto há alguns anos. Finalmente, em junho de 1993, no Instituto Isaac Newton, em Cambridge, ele apresentou a prova da conjectura de Taniyama-Shimura e, consequentemente, do último teorema de Fermat.O que Wiles não sabia -e tampouco nenhum dos presentes- é que havia uma falha crucial no argumento ali apresentado, que o levaria a viver um ano miserável, tentando contornar a dificuldade apontada por um dos árbitros de seu artigo submetido à publicação. Contudo, empregando mais uma vez seus conhecimentos acerca das curvas elípticas, ele finalmente conseguiu superar o problema e resolver por fim o enigma deixado por Fermat há 358 anos.Esses e tantos outros detalhes são discutidos, de forma leve e envolvente, no livro de Singh, que constitui uma pequena obra-prima de divulgação científica. Ele não apenas apresenta a história da solução de um dos mais célebres problemas da matemática, de modo inteiramente acessível ao não especialista (há muitos exemplos para ilustrar os conceitos discutidos), mas também examina um pouco do mundo, das preocupações e peculiaridades da comunidade dos matemáticos. Trata-se de um universo que poucas pessoas (fora da área) conhecem e que vale muito a pena descobrir. É a esse mundo que pessoas como Fermat e Wiles verdadeiramente pertencem, apresentado por Singh de forma tão cativante e honesta.

Otávio Bueno é autor de "O Empirismo Construtivo: Uma Reformulação e Defesa" (Ed. da Unicamp) e doutorando no departamento de filosofia da Universidade de Leeds (Inglaterra). Folha de São Paulo



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