Condomínio do Diabo
Ciências Humanas e Sociais

Condomínio do Diabo



O limiar da violência
Lygia Sigaud

Condomínio do Diabo
Alba Zaluar
Revan, 277 págs.
Em ?Condomínio do Diabo?, Alba Zaluar reuniu um conjunto de artigos a respeito da violência nas áreas a respeito da violência nas áreas pobres do Rio de Janeiro, sobretudo no conjunto habitacional Cidade de Deus, onde realizou pesquisa na década de 80. Os textos, escritos entre 1981 e 1993, e publicados previamente em jornais de circulação nacional, revistas científicas e revistas de divulgação, abordam o tema da violência sob diversos ângulos, como as implicações políticas da violência, a participação das mulheres em atividades tidas como ?criminosas?, as relações entre violência e religiosidade etc.
Os textos agora reeditados não são precedidos por uma introdução que situe o leitor em relação ao contexto em que foram produzidos e aos debates nos quais se inserem. É possível no entanto resgatar dois tipos de preocupação que parecem ser recorrentes ao longo do livro. Há, por um lado, um interesse de Alba Zaluar em intervir nos debates acerca da ?violência urbana?, valendo-se para tanto da autoridade que a pesquisa científica lhe confere. Assim, a autora utiliza o material coletado durante a pesquisa e sua interpretação dos fatos para fundar suas tomadas de posição: ela defende a descriminalização da droga, crítica a visão ?esquerdista? de que os agentes da ?violência? sejam bandidos sociais, denuncia a ?corrupção? da polícia, alerta para as distorções do código penal, chama a atenção para as omissões do Estado brasileiro em relação às populações das áreas pobres etc.
Por outro lado, os artigos denotam a preocupação de fornecer explicações para a ?criminalidade? em Cidade de Deus. A tese da autora é a de que a ?criminalidade? não é um efeito direto da pobreza dos habitantes destas áreas mais desfavorecidas da cidade. Para entendê-la torna-se necessário levar em conta um conjunto de outros fatores, como o fim das relações personalizadas entre pobres e ricos; o afastamento dos filhos em relação aos pais; as dificuldades dos jovens em obter uma formação adequada e, portanto, um emprego; as práticas discriminatórias da polícia em relação aos jovens das áreas pobres (como as prisões arbitrárias); e ainda a emergência de uma sub-cultura que desqualifica o trabalho como meio de obtenção de recursos e atribui prestígio às manifestações de força mediante emprego de armas de fogo e à posse de bens tidos como privativos dos ricos, sobretudo as vestimentas inacessíveis aos pobres.
O trabalho que vem sendo desenvolvido por Alba Zaluar no estudo da violência é, sem sombra de dúvida, pioneiro e da maior relevância. Foi ela uma das primeiras a se dispor a examinar um tema polêmico e a fazê-lo com seriedade. Ao invés de servir de correia de transmissão das indignações, fantasmas e preconceitos de sua própria classe, Alba procurou entender a complexidade dos mecanismos sociais que culminam nas manifestações de violência. Para tanto, não hesitou em frequentar uma área da cidade tida como de alto risco e foi ouvir, valendo-se das técnicas da antropologia, o que ?bandidos? e seus vizinhos trabalhadores tinham a contar acerca de suas vidas. Graças à sua ousadia e a de outros que seguiram os seus passos, dispõe-se hoje de valiosas informações a respeito do universo social das áreas pobres do Rio de Janeiro.
?Condomínio do Diabo? atesta o empenho de Alba Zaluar em revelar um mundo que o senso comum das elites tende a perceber apenas através de suas expressões mais mediatizadas -as explosões de violência-, como se naquele universo só existissem fuzis e metralhadoras, homens maus e drogas perigosas. Os textos agora reunidos permitem restituir a racionalidade daquele mundo e torná-lo inteligível.
Os leitores encontrarão ao longo do livro inúmeros elementos que ajudam a perceber a ordem moral e política que prevalece em Cidade de Deus. Poderão também os leitores se dar conta do modo como os que vivem naquela área elaboram simbolicamente o que se rotula, de forma simplificadora, como o crime. Alba Zaluar transcreve diversos extratos de entrevistas, realizadas tanto com os que estão dentro quanto fora do ?crime?, que expressam a visão dos moradores daquele conjunto habitacional acerca dos ?bandidos?, das razões que os teriam levado a aderirem à ?vida do crime? de suas relações com a polícia etc... Encontrarão também os leitores informações preciosas a respeito da diversidade de posições ocupadas por aqueles que ingressam na ?vida do crime? e das relações de dominação e dependência que vinculam os ?criminosos? entre si. A autora mostra -e este é um dos pontos altos do livro- as diferenças existentes entre os ?criminosos? individuais e os que integram uma ?quadrilha?, as diferenças entre estes e os ?pivetes? (menores que agem por conta própria) e a hierarquia de mando encabeçada pelo ?bandido?, ao qual se submetem os ?olheiros?, os ?aviões? ou ?vapores?. Caberia ainda destacar a contribuição do livro no sentido de apresentar as relações de interdependência que vinculam trabalhadores, ?bandidos? e polícia.
A leitura do ?Condomínio do Diabo? suscita no entanto algumas questões para as quais o livro não fornece elementos de resposta. Uma primeira delas refere-se à adesão dos jovens à ?vida do crime?. Embora os quadros para o exercício das atividades tidas como ?criminosas? sejam recrutados entre os jovens de 16 a 25 anos, nem todos aqueles que se encontram nesta faixa etária participam destas atividades: há os que se inserem no mercado de trabalho, seja ele formal ou informal. Como dar conta desta diferença?
As justificativas nativas (o ?vício? de uns e a ?moral? de outros) apresentadas no livro expressam o ponto de vista dos nativos: elas necessitaram ser compreendidas e não constituem por virtude própria uma explicação dos fatos. A análise do espaço social em Cidade de Deus (morfologia, posições sociais ocupadas pelos habitantes, rede de relações sociais e conflitos nos quais estão implicados) e o estudo comparado das trajetórias dos que seguem um ou outro caminho (a partir de estudos de caso) poderiam fornecer elementos para se compreender as condições sociais que explicam a escolha entre as vias tidas como legais e ilegais de assegurar a reprodução social.
Uma segunda questão diz respeito ao destino dos ?bandidos?. A opção pela ?vida do crime? é, segundo Alba Zaluar, um caminho sem volta. Ao longo do livro aparecem no entanto personagens que são ex-"aviões? e ?bandidos regenerados?. Ainda que se ignore a dimensão numérica dos que abandonam a ?delinquência? -e este é certamente um dado difícil de se apurar-, o fato é revelador: ele sugere a existência de condições de possibilidade de reinserção dos cultuadores do ?dinheiro fácil? (os ?criminosos?) no mundo dos ?otários? (os trabalhadores). Que condições são essas e quais suas implicações? Tudo leva a crer que o estudo do modo como se produz esta passagem poderia conduzir a uma melhor compreensão da dinâmica das relações entre ?bandidos? e trabalhadores. Para isto no entanto é necessário reintroduzir o tempo na análise e verificar o que ocorre com os sobreviventes da ?vida do crime?.
A terceira indagação concerne o recurso à violência. O uso da violência como meio para constituir e preservar patrimônio é uma prática recente nas áreas pobres da cidade. Quem foram os agentes desta transformação e que condições sociais favoreceram o seu trabalho? Por outro lado, os dados apresentados em ?Condomínio do Diabo? são ricos em indicações relativas ao emprego da violência- não necessariamente armada- para a regulação de relações sociais: obtenção de mulheres, reparação de injustiças e desonras etc. Qual a relação entre os dois tipos de violência? Uma seria anterior à outra? Haveria outras formas de regulação dos conflitos sociais? Quais?
A formulação deste conjunto de questões seria impensável sem a leitura do trabalho aqui em exame de Alba Zaluar. É a riqueza do material e da análise por ela apresentados que me estimulam a dialogar com a autora: não para cobrar o que deixou de ser feito, mas tão-somente para sugerir novos problemas cujas respostas certamente demandarão novos investimentos de pesquisa.
LYGIA SIGAUD é antropóloga

Folha de São Paulo



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