GALERAS CARIOCAS
Ciências Humanas e Sociais

GALERAS CARIOCAS



HERMANO VIANNA

Gangues e galeras
ANTONIO S. GUIMARÃES
nove pequenos ensaios sobre as ''juventudes'' cariocas são aqui reunidos por Hermano Vianna. Quatro deles tratam diretamente das ''galeras'', mas o título do livro se deve menos a esta superioridade proporcional e mais ao predomínio simbólico das galeras sobre as diversas imagens identitárias dos que reivindicam a juventude. Nas grandes cidades brasileiras, partidas pelas mais brutais desigualdades, seria mesmo exótico falar de ''juventude'', do modo como se falava de ''mocidade'' no início do século. Esse modo de falar só era possível porque seu referente se restringia aos brancos de classe média ou alta; mas as múltiplas juventudes atuais eram até pouco tempo atrás um segredo para os sociólogos brasileiros.
O livro tem a grande virtude de propor e de esquadrinhar algumas pistas de como se forma, na vida cotidiana dos jovens, a idéia de uma única sociedade brasileira e de como se tece uma certa solidariedade social, para além das armas, da violência policial e dos abismos de oportunidades de vida entre ricos e pobres, brancos e negros. Paulo Lins, em ''A Cidade de Deus'', retratou recentemente um tipo de juventude que continua a não ser reconhecida por este nome: a dos ''bichos soltos'', dos bandidos adolescentes que infestam as favelas cariocas. Hermano Vianna nos apresenta agora alguns outros mundos _o das galeras, o das ONGs, o dos jovens atores, o dos adés, o dos ''hackers''.
Alba Zaluar abre o livro com uma reflexão conceitual sobre as semelhanças e dessemelhanças entre as nossas galeras, as ''galères'' francesas e as gangues americanas. Seu diagnóstico é, em geral, sombrio: estaríamos experimentando uma interrupção ou mesmo involução do ''processo civilizador'', tal como descrito por Nobert Elias.
No passado, nos diz Alba, ''a rivalidade, que não excluiu totalmente o conflito violento, era expressa na apoteose dos concursos e desfiles carnavalescos, nas competições esportivas, atestando a importância da festa como forma de conflito e sociabilidade que prega a união, a comensalidade, a mistura, o festejar como antídotos da violência sempre presente, mas contida ou transcendida pela festa''. Hoje, ao contrário, assistimos ao esvaziamento dos movimentos sociais, à paralisação das organizações vicinais e de classe, a um acentuamento do isolamento, da atomização e do individualismo que estariam levando os ''homens jovens, negros, pardos e brancos pobres que, após várias repetições, deixaram a escola'' a se reunir em galeras ou quadrilhas.
Jane Souto, no segundo ensaio, é mais otimista. Ao analisar o ''funk'' carioca, o mundo das galeras, observa quatro pontos fundamentais. Primeiro, o ''funk'' já não está restrito ao morro, mas encontra clientela em segmentos das juventudes de classes médias, mais abastadas e ''incluídas''. Segundo, já se criou um mercado _produção, distribuição e consumo_ brasileiro do ''funk'', que oferece emprego e oportunidades de vida para centenas de jovens. Terceiro, ainda utilizando a conceituação de Elias, os bailes ''funk'' passam a ter consequências civilizadoras. Quarto, apesar disto, permanece fixada, por parte da imprensa e do sistema, uma visão estigmatizadora do ''funk'' e das galeras.
A função integradora e civilizadora do ''funk'' se deve ao fato dele ter-se convertido ''numa espécie de hino da juventude pobre do Rio'', fazendo-a a um só tempo, ''produtora e consumidora de sua própria cultura e de seu próprio estilo de vida''. Ademais, o ''funk'' acaba rompendo certas barreiras de classe: ''Com jovens de classe média, partilha-se da mesma dança, do mesmo som, de um mesmo repertório de gírias, de uma mesma emoção, de um mesmo habitus social, que se renova aos fins de semana, através dos bailes''.
O ''funk'' é também analisado por Fátima Ceccheitto, em outro ensaio, que se encarrega de nos fazer entender as diferenças entre os bailes ''de corredor'', os bailes ''comunitários'' e os ''festivais de galera''.
Em outro ensaio, Regina Novaes enfrenta diretamente a questão com que abri a resenha: como, numa cidade partida, restabelecem-se pontes e mediações entre pessoas e grupos de status tão díspares, como se recria a solidariedade social? Acompanhando um grupo de jovens de classe média, filiados a uma ONG, em sua interação (''trabalho nas favelas'') com os jovens de Vigário Geral, Regina registra a ''tomada de consciência'' desta nova geração engajada, a perceber que, afinal, os jovens favelados sabem mais do nosso modo de ser _por meio das novelas, do cinema e da cultura de massa_ do que o nosso desprezo e estigmatização deixam-nos perceber deles. Para além das ciências sociais, será a arte das danças, das músicas, da literatura, será talvez a linguagem dos jovens, mas será sem dúvida a solidariedade da presença física dos ''privilegiados'' nas favelas, nos ônibus e nas filas que recuperarão o sentimento de uma só nação.
Os outros ensaios nos transportam para mundos bastante diversos, ajudando a conformar um mosaico urbano ainda incompleto. Dois deles nos levam de volta ao passado, para explicar a ausência atual de dois movimentos tão fortes na nossa história _um nos leva em direção à mocidade militar de antes da Segunda Grande Guerra, esgotada com a profissionalização e militarização das academias militares; o outro em direção à juventude revolucionária dos anos 60 e 70. São dois bons ensaios, o primeiro assinado por Celso Castro, o último por Alzira Alves de Abreu. Os ensaios finais nos remetem a três destinos alternativos, construídos nos dias de hoje _o dos jovens atores, o dos adés_ jovens homossexuais pobres que descobrem o candomblé por meio do fascínio performático da dança dos orixás _e o dos internautas e ''hackers'' da zona sul carioca, sintonizados à globalização e aos avanços tecnológicos.
Maria Cláudia Coelho nos introduz o inconformismo corrente que conduz moços e moças a escolherem o teatro como profissão, recusando as carreiras valorizadas pelo ''sistema'', em busca ''de um estilo de vida marcado por uma aversão à rotina e por uma despreocupação com a ambição financeira''.
Patrícia Birman enfrenta um aspecto bastante visível, mas pouco tratado, dos candomblés atuais, a performance da possessão e, às vezes, o fingimento desta, realizada por homens jovens, geralmente homossexuais, invasores de um espaço _de dança e de possessão_ considerado feminino. Ao fazê-lo, Patrícia aponta também um típico caminho de salvação, tanto religiosa, quanto laica (salvação da marginalidade e da morte violenta), para alguns jovens da periferia: a religião _principalmente os cultos afro-brasileiros e as igrejas pentecostais.
Hermano Vianna fecha o livro com um belíssimo ensaio sobre o amor, o encontro e a inteligência vivenciados com a ajuda da Internet. Recusando a crítica fácil de esquerda que vê no ''plugamento'' mera alienação e fuga da vida real, Hermano retrata uma vida virtual que oferece motivos para otimismo: uma vivência que, mesmo sem militância, amplia os limites e as fronteiras entre grupos e identidades e acende uma busca constante de conhecimentos e de liberdades. Só assim se explica, por exemplo, a obstinação de Storm, o ''hacker'', personagem do ensaio de Hermano, de frequentar os bailes ''funk'' ''de corredor'' de Jacarepaguá, os clubes ''de mauricinhos'' da zona sul e as rodas de ''skinboard'' do Leblon, circulando nestes ambientes com a mesma desenvoltura com que navega na ''rede'', numa clara opção pela vida, seja ela real ou virtual.
''Galeras Cariocas'' oferece, assim, um retrato atual e multifacetário dos modos de vida dos jovens e adolescentes no Brasil urbano. Sua melhor contribuição será talvez a de mostrar que há ainda pontes possíveis, além das drogas, entre os jovens favelados e os do ''asfalto'', e que entre ''alemães e sangue-bãos'' existe mais que a violência. Para os especialistas, é uma mostra da boa sociologia urbana que se faz hoje no Rio de Janeiro.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães é professor do departamento de sociologia da USP.

Folha de São Paulo



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