São Paulo não esquece!
Samuel Titan Jr.
SAMUEL TITAN JR.
último livro de Zulmira Ribeiro Tavares, "Café Pequeno" é nosso mais recente tributário de uma certa tradição modernista. Quer fazer para o 14 de julho de 1935 em São Paulo algo do que Joyce fizera para o 16 de junho de 1904 em Dublin: capturar, no fluxo linear da narrativa, a proliferação simultânea de acontecimentos numa grande cidade. Nessa forma romanesca transformada, o sentido deve nascer não do comentário autoral ou da trama de intenção moralizante, mas da montagem consoante ou cacofônica de níveis, aspectos, personagens, ambientes os mais variados. Donde, por um lado, a extrema perícia exigida para costurar tanto material, tanta matéria bruta -que não se pode deixar ficcionalizar completamente, sob pena de perder algo de sua autonomia, provocante e moderna.
Essa técnica delineia gradualmente o tema: as pretensões e pecadilhos da burguesia paulistana, ainda com um pé na roça, mal afeita aos refinamentos da civilização, pomposa e senhorial na medida do possível, ressentida quando perde a parada (cf. a genial exclamação "Eu fico com a Vida!") ou quando, malgrado seu, assoma o atraso local (zebus, zebus em São Paulo!). Mestres do casuísmo e do compromisso na esfera íntima, os personagens de Zulmira não fazem outra coisa na esfera pública: mal saíram de 32 e já se preparam para 37 e, sem dobrarem a língua (São Paulo não esquece!), curvam-se a tudo, mesmo ao vilão Vargas.
Neste romance escrito com deliberação, o foco da narrativa é uma festa de aniversário -ou ajantarado, como prefere o engenheiro Alaor Pestana- atravessada por um estouro de boiada, um comício da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma recepção no consulado francês, o mosquito birigui e a ascensão do dr. Getúlio, entre outros. Transitando entre os pontos de vista dos anfitriões, convidados e coadjuvantes da festa, o narrador de Zulmira impõe a seus leitores a construção de uma imagem integral a partir de perspectivas parciais, complementares e conflitantes. O movimento do romance é dado então por uma sucessão de quadros, de enquadramentos concorrentes dos eventos. A ligação entre eles se dá não só por um certo número de acontecimentos centrais que reaparecem de quadro em quadro, como também por um sistema de alusões cruzadas e de circulação de objetos, frases e mesmo parágrafos inteiros entre os vários segmentos.
A consequência mais notável disso é certa neutralização do ímpeto da ação: os cortes entre os quadros impedem a formação de uma trama de feitio costumeiro, a alternância de pontos de vista transforma a ação imediata em objeto da observação de outrem -esvaziando a premência por reações em cadeia que acabassem por configurar o enredo. Note-se como, num de seus lances mais felizes, Zulmira logra o achatamento do diálogo como elemento dinâmico: fazendo uso extenso e por vezes brilhante do discurso indireto livre, compondo falas de banalidade e incongruência ululantes, a autora transforma o diálogo em apenas um elemento a mais no "décor" de seus quadros, ao lado da louça, da empáfia, da mobília, das gravatas tricolores de 14 de julho, dos seios da massagista alemã e dos cachinhos loiros de Maria Antonieta. O resultado final, desastroso para o garbo dos protagonistas, é de um sabor flaubertiano incomum na ficção brasileira, perfeitamente comparável portanto à famosa cena da feira agrícola em "Madame Bovary", onde o romancista francês superpunha galanteios melífluos, discursos pomposos e grunhidos de porcos, com o efeito que se sabe.
Mas essa composição por quadros, se nos poupa de um narrador intrujão, se dá interesse à decifração trabalhosa do esforço construtivo, também não deixa de criar problemas. A envergadura de um romance parece exigir e prometer mais, a saber, um elemento dinâmico no nível da técnica como no da ação.
"Jóias de Família", excelente novela da mesma autora, tirava sua força justamente da exposição quase imediata e concisa de pretensões e realidades: um camafeu pérfido que, terminada a leitura, se tinha inteiro sob os olhos. O romance, ao contrário, dificilmente dispensa um elemento de revelação progressiva -nem Joyce ou Cortázar renunciaram a ele. É justamente este o elemento que parece faltar ao plano básico do livro de Zulmira -a festa do engenheiro- e que a autora, talvez pressentindo o impasse, busca substituir por excursos bem menos felizes. Falo dos capítulos 1º, 3º e 5º, que, sem acrescentarem muito aos outros, prejudicam a nitidez e a coerência do plano geral. O capítulo 3º sobretudo, peça de resistência cujo tema faz pensar nas saúvas de "Macunaíma" e no formigueiro de "Quarup", vale antes como embrião de um belo poema em prosa que como capítulo de romance: não é difícil achar seu lugar no esquema de oposições e anulações do livro, mas pode-se questionar sua contribuição ou seu custo para o balanço final.
Noutras palavras, sente-se que o desejo de fazer romance prejudica algo da condução geral da bela novela que Zulmira poderia ter escrito no veio de seus livros anteriores, esgarçando passagens que desejaríamos mais concisas e espichando sequências que só ganhariam com a brevidade. Donde a estranha impressão de uma obra que, sem absolutamente ser verborrágica, parece prolixa. O que em nada diminui a distância de Zulmira em relação a tanta ficção fácil e desabrida que se publica por aqui. Zulmira apostou alto e pagou para ver; o resultado é um livro que, sendo irregular, é descaradamente inteligente. Coisa rara, convenhamos.
Samuel Titan Jr. é doutorando em teoria literária na USP.
Folha de São Paulo
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