Paulo Vieira Neto
Raquel de Almeida Prado enfrenta a difícil tarefa de tentar reconstituir as cores originais com que foi pintada a paisagem ética das "Ligações Perigosas" de Laclos. Os motes desta restauração se encontram, de um lado, no aparente deslocamento da advertência do editor e do prefácio do redator com relação ao corpo da obra, de outro, no próprio desfecho final e no destino que Laclos concede aos seus personagens.
Segundo Raquel, contudo, o verdadeiro problema de interpretação das "Ligações" ainda não aparece quando posto apenas nestes termos. As diferenças entre o tom do discurso do editor, do redator, da narração propriamente dita e, por consequência, do tom assumido ao apresentar o destino final dos personagens são apenas a ocasião de um diagnóstico mais delicado: a narrativa das "Ligações Perigosas" não é um meio absolutamente diáfano que se anula ao deixar transparecer a trama e o destino objetivo dos seus personagens. Contrariamente a isso, a autora irá mostrar que a forma da narração interferirá e mesmo constituirá o sentido mais adequado -isto é, o sentido moral- do desenvolvimento do romance.
Esta opção de leitura exige uma atenção especial dirigida ao gênero de discurso do narrador e, por meio dele, do sentido que vão adquirindo os fatos narrados. Evidentemente este parece ser um cuidado que todo leitor deve guardar com relação a toda e qualquer narrativa. Entretanto, no caso específico das "Ligações", esta tarefa não se mostra tão fácil e tão imediata quanto a simplicidade da máxima parecia sugerir.
Com efeito, quando a forma da narração se imiscui também na forma de constituição dos fatos, o romance daí resultante passa a ter que resolver, passo a passo, a difícil convivência entre a convencionalidade do discurso e a sua precisão descritiva. Mais do que isso. Gera-se, de imediato, uma tensão constante entre o descrever e o julgar. É isto, talvez, que a autora veio a identificar como uma certa ambiguidade estrutural que atinge o coração das "Ligações Perigosas".
Vejamos então quais os lugares em que, segundo a autora, manifestava-se aquela ambiguidade. Em primeiro lugar haverá a ambiguidade na constituição do gênero retórico do discurso pelo qual o autor nos apresenta o enredo e o sentido das "Ligações". Ela se resumirá, nesse caso, na adoção do gênero judiciário, presente nos prefácios, e do gênero deliberativo, presente no desenvolvimento da obra. Aqui devemos levar em conta a advertência da autora que, com razão, não considerará essa mudança de tom como uma ruptura pura e simples.
O tom judiciário do prefácio lança uma sombra de suspeita sobre todo o desenvolvimento posterior do romance, despertando desde logo uma atenção especial sobre o conteúdo moral do que será narrado. A força moral do gênero judiciário não será amenizada pelo gênero deliberativo que o sucede. Muito pelo contrário, aquele primeiro gênero irá adquirir um valor hiperbólico justamente pelo seu contraste com o gênero adotado no restante da obra.
A próxima figura da ambiguidade, ainda segundo Raquel, surge no interior da estratégia própria à narração do romance. Esta última, por certo, reflete exatamente uma articulação teatral -tema tão caro aos estetas e aos moralistas setecentistas. Mas o ambiente teatral permite que o leitor assuma a peripécia do romance por duas perspectivas diferentes. A primeira mimetiza a posição concernente ao palco concreto onde se dá a ação, isto é, se confunde com a perspectiva dos personagens que assistem (ou são vítimas) das manobras de Valmont e de Merteuil.
Por ser próxima demais, esta perspectiva esconde os detalhes da ação e incorre ainda no risco de permitir a interferência dos juízos contingentes e casuais dos personagens no juízo do leitor, na medida em que este vai assistindo ao desenvolvimento da trama. A segunda, mais distante e mais apropriada para revelar os segredos de bastidor e as verdadeiras intenções dos atores, será reservada para os leitores que se colocaram, desde logo, do ponto de vista da platéia. O ponto de Raquel, neste caso, consiste em mostrar que somente no trânsito entre a platéia e o palco, trânsito levado a cabo pela imaginação do leitor, será possível refletir sobre o significado completo da história e julgar efetivamente a conduta dos personagens.
O último foco de ambiguidade se concentra sobre o próprio narrador. Dado o caráter epistolar do romance, o seu narrador será muito mais um campo de forças -com o perdão da metáfora- do que uma personalidade individualizada e determinada. Isto, no entanto, não impediu a autora de identificar, convincentemente, o papel fundamental do redator na constituição deste campo. Mas não devemos nos esquecer que, segundo a autora, todos os personagens das "Ligações", inclusive o redator, são entes retóricos -sua substância é feita apenas pela matéria dos seus discursos, isto é, da elocução dos seus valores e dos seus sentimentos.
O discurso do redator, mesmo interferindo no discurso que narra, não passa de uma posição a mais, que precisa ser julgada, isto é, assentida ou rejeitada. Se quisermos recuperar alguma substância por trás da narração das "Ligações Perigosas", teremos que ter em mente, o tempo todo, de onde e para quem as coisas estão sendo ditas. Aqui, novamente, a autora demonstra a tarefa delicada envolvida na leitura das "Ligações". É preciso desconfiar da transparência do discurso e adivinhar as modulações do seu poder de revelação ao longo de quase toda a narração.
Acompanhando a autora até este ponto poderíamos dizer que Laclos resolve a tensão entre o mote e a coisa, entre o discurso e o fato narrado, por meio dessa ambiguidade muito peculiar que foi sendo construída junto com a elocução da trama das "Ligações Perigosas". Resta ainda levar em consideração que esta figura não envolve nenhuma confusão. Ela, de fato, fornecerá a exata medida em que se transita do gênero judiciário ao gênero deliberativo, da platéia ao palco e em que podemos identificar a substância do que está sendo apresentado naquela obra. Em outros termos: a ambiguidade, por si mesma, fornece a convenção pela qual ela deve ser desvendada.
O simples fato de o leitor poder julgar todos os personagens da obra já aponta para uma solução importante do ponto de vista da apropriação crítica das "Ligações". Com efeito, a figura daquela ambiguidade pode desenvolver-se até dois limites extremos que falsificariam o seu valor para a compreensão da estratégia de Laclos. No primeiro limite, ela poderia redundar em uma anfibolia, isto é, na simples confusão de gênero, de posição e, por fim, no próprio juízo do leitor. No outro limite, ela poderia transformar-se numa antinomia, isto é, numa contradição cujo sentido seria apenas o de evidenciar uma dificuldade intransponível para transitar entre os gêneros, entre as perspectivas possíveis para a compreensão da obra e, enfim, para que o leitor possa julgar os fatos. O que Raquel nos mostrou foi que estas duas formas de compreensão daquela figura pecam por não lhe concederem o caráter positivo, e portanto esclarecedor, que ela irá adquirir quando efetivamente somos capazes de julgar Valmont e Merteuil.
Ora, e aqui vai a justificação desta leitura estrutural da "Perversão da Retórica", isto que Raquel irá determinar como sendo uma forma de ambiguidade positiva na obra de Laclos será precisamente o motivo pelo qual poderemos reincorporar aquele autor no quadro de uma discussão muito mais ampla. O que Raquel encontrou especificamente em Laclos foi o sintoma claro de uma solução literária cujo diagnóstico tem por fim reincorporá-lo ao iluminismo literário-filosófico, num sentido bem mais amplo. Isto é: Raquel nos ensinou a interpretar mais uma figura pela qual se pode pensar a sociabilidade do século 18, a partir das suas próprias convenções.
Paulo Vieira Neto é doutorando no departamento de filosofia da USP.
Folha de São Paulo
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