Antropologia do Parentesco - Estudos Ameríndios
Ciências Humanas e Sociais

Antropologia do Parentesco - Estudos Ameríndios



VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (org.). 1995. Antropologia do Parentesco - Estudos Ameríndios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. 382 pp.

Denise Fajardo
Mestranda de Antropologia Social, USP


Em busca de uma estrutura que dê conta da variabilidade e complexidade dos sistemas das terras baixas sul-americanas, Antropologia do Parentesco é, certamente, uma obra de caráter inédito na história da etnologia amazônica, tanto por sua abrangência, quanto por sua competência.

A abrangência etnográfica alcançada é fruto de um trabalho em equipe: um grupo de pesquisa, constituído por antropólogos formados no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, que se integraram ao projeto "Etnografia e Modelos Analíticos: Tipos de Estrutura Social na Amazônia Meridional", coordenado por Eduardo Viveiros de Castro, a partir de 1984. Pelo escopo das sociedades estudadas, percebe-se que o projeto deu prioridade a grupos indígenas até então pouco explorados etnograficamente: Waimiri-Atroari, Parakanã, Mura-Pirahã, Arara e Wari. A exceção são os grupos xinguanos e Kayapó, também incluídos na coletânea.

Se levarmos em conta que até 1985, época em que o projeto estava apenas no início, o tema do parentesco parecia estar longe de ocupar uma posição de destaque na etnologia indígena brasileira - principalmente se comparado ao peso dos estudos sobre contato interétnico -, é impossível deixar de constatar que, atualmente, o campo dos estudos do parentesco vem sendo qualitativa e quantitativamente revigorado e que, na base dessa renovação encontramos Viveiros de Castro e seus alunos. A dedicação desses pesquisadores a um programa de estudos voltado para o parentesco certamente fortaleceu não só suas pesquisas individuais, como o tema parentesco ameríndio.

Antropologia do Parentesco é uma coletânea cujos artigos aparentemente encerram-se em si mesmos, sem dialogar uns com os outros. Isso porque cada um deles, com exceção do texto de Marcela Coelho de Souza, analisa aspectos de uma única sociedade indígena. Entretanto, se o leitor tiver fôlego para ler artigo por artigo, será recompensado com uma outra dimensão que emerge do conjunto do livro, na forma de um diálogo interno.

Cabe ressaltar que os artigos traduzem uma discussão de especialistas a respeito do parentesco amazônico, dentro de um modelo teórico inovador, ainda em construção, inspirado nos estudos sobre os sistemas dravidianos da Índia, pelas semelhanças entre ambos os contextos, no que diz respeito às regras de casamento e à estrutura social, com filiação indiferenciada e inexistência de unidades permanentes de troca exogâmica. Por isso mesmo, exigem por parte do leitor um mínimo de familiaridade com o vocabulário utilizado. Nesse sentido, uma sugestão útil é recorrer, prévia ou posteriormente, aos ensaios do próprio organizador, citados na bibliografia.

Um esboço geral da paisagem sociológica da Amazônia e do Brasil Central encontra-se na introdução de Viveiros de Castro, e o modo como esse esboço é traçado - por um lado, atentando para a variabilidade e complexidade dos sistemas de parentesco ameríndio e, por outro, propondo uma estrutura que dê conta de tamanha diversidade - parece refletir o duplo movimento constitutivo da empreita desse grupo de pesquisadores.

O que é dito na introdução, sob a forma de um "sobrevôo" no parentesco ameríndio, somado aos comentários iniciais do artigo que abre o livro, "Sistemas Dravidianos na Amazônia", constitui-se em uma boa porta de entrada para o que segue. Nesse primeiro artigo, Márcio Silva mostra, de forma breve mas instrutiva, o modo como, ao longo da história da antropologia, certas terminologias de parentesco foram sendo abordadas sob perspectivas distintas, desde Morgan, passando por Radcliffe-Brown, Lévi-Strauss, Dumont, Yalman e Trauttman, até chegar aos autores que possibilitaram um diálogo entre os contextos sul-americano e indiano, a saber, Peter Rivière e Joanna Overing.

E é justamente nesse diálogo que repousa o projeto dos autores da coletânea, a começar pelo próprio artigo de Márcio Silva, em que a distinção básica entre sistemas de parentesco, como o dos Waimiri-Atroari, e sistemas indianos, como os estudados por Dumont, Trauttman e outros, é atribuída ao cálculo de classificação social. Adiante, passa-se pelo artigo de Marcela Coelho de Souza, "Da Complexidade do Elementar: Para uma Reconsideração do Parentesco Xinguano", em que o material bibliográfico disponível sobre o parentesco xinguano é analisado à luz das hipóteses teóricas do grupo. Trata-se de um artigo de fôlego que passa em revista as sucessivas interpretações propostas para a organização social dos grupos xinguanos, discute suas implicações e propõe um novo tratamento para os sistemas de aliança desses grupos. Até chegar ao artigo de Vanessa Lea, "Casa-se do Outro Lado: Um Modelo Simulado de Aliança Mebengokre (Jê)", cuja inclusão no livro se justifica pela afinidade de seu trabalho com o que está no horizonte do projeto em questão, ou seja, o estabelecimento de relações entre os sistemas sociais amazônicos e centro-brasileiros.

Tomando como parâmetro o paradigma tamil utilizado por Dumont como modelo de terminologia dravidiana, a maioria dos artigos da coletânea conduz suas análises no sentido de evidenciar em que aspectos o dravidianato encontrado nas sociedades indígenas amazônicas se diferencia do dravidianato indiano.

Na seqüência do artigo de Márcio Silva, Carlos Fausto, em "De Primos e Sobrinhas: Terminologia e Aliança entre os Parakanã (Tupi) do Pará", desenvolve sua argumentação com o objetivo de mostrar em que aspectos o caso parakanã se distancia, complexificando, do modelo dravidiano simétrico, na medida em que, se opera com as distinções terminológicas básicas, previstas pelo modelo clássico, o faz de maneira singular, ou seja, através de uma articulação entre duas estruturas terminológico-matrimoniais: a dravidiana (horizontal) e a avuncular (oblíqua). Além de explicar como essa articulação opera na lógica parakanã, Carlos Fausto lança mão do recurso estatístico, analisa as práticas matrimoniais e demonstra haver um alto grau de congruência entre essas práticas e as prescrições e preferências dos Parakanã em torno de um regime de aliança avúnculo patrilateral.

Guiado pelas particularidades da etnografia pirahã, Marco Antônio Gonçalves, em "A Produção da Afinidade no Sistema de Parentesco Pirahã", assim como os demais autores, também está interessado em analisar um sistema de parentesco em particular. Entretanto, diferentemente dos demais casos analisados na coletânea e, com certeza, ao contrário do que ocorre na maioria das sociedades indígenas da Amazônia, entre os Pirahã são os nomes e não os termos de parentesco que ocupam o cenário das relações interpessoais. De tal forma que, nesse caso, a mera observação do modo como as pessoas se designam mutuamente não basta para que se conheça os termos de parentesco. Marco Antônio Gonçalves explica que foi necessário dar um passo além ao da observação e induzir seus informantes a reproduzirem suas classificações. De posse dessa terminologia, passa a analisar o sistema de parentesco pirahã e o faz tomando como ponto de partida o modo como se dá a transmissão da aliança de uma geração a outra. Na seqüência, analisa tanto os termos quanto os comportamentos e instituições que definem as relações entre pessoas casáveis, buscando explorar, nesse terreno, o papel da afinidade no sistema pirahã.

Partindo de uma análise do sistema terminológico, bem como das regras de casamento e residência entre os Arara (Caribe), Márnio Teixeira Pinto, em "Entre Esposas e Filhos: Poliginia e Padrões de Aliança", discute o estatuto do casamento polígamo nessa sociedade. Para tanto, recupera o modo pelo qual diferentes autores, como Murdock e Lévi-Strauss, definem a instituição da poligamia em suas teorias de parentesco e casamento, procurando mostrar que, apesar de possuírem perspectivas teóricas distintas, tanto um quanto outro consideram a poligamia enquanto um composto de várias uniões monogâmicas, como se todas as relações de aliança envolvidas nesse composto fossem homogêneas entre si. Em seu artigo, Márnio Teixeira Pinto se contrapõe a essa visão e - a partir de seus dados sobre terminologias, padrões de aliança e residência entre os Arara - procura mostrar que a poliginia, nessa sociedade indígena, resulta de "uma composição de duas instituições matrimoniais diferentes: os casamentos 'primários' e os 'casamentos 'secundários'", as quais correspondem à presença de dois sistemas de classificação paralelos, um - que o autor define como "horizontal" - atuando no nível das relações entre pessoas que se originam de um mesmo grupo residencial, e outro, "oblíquo", atuando entre pessoas que se originam de grupos residenciais distintos. Ambos os sistemas, por sua vez, geram dois formatos matrimoniais correlatos: o patrilateral e o avuncular.

"O Sistema de Parentesco Wari'" é o título do artigo de Aparecida Vilaça. Os Wari', comumente conhecidos como Pakaa Nova, habitantes do Estado de Rondônia, apresentam uma série de particularidades em seu sistema de classificação social. Em primeiro lugar, trata-se de uma sociedade amazônica com terminologia de tipo crow, associada à presença de um princípio omaha e sem prescrição matrimonial. Não obstante isso, entre os Wari', inexistem os mecanismos de descendência unilinear freqüentemente associados a essas terminologias. Mais interessante do que as próprias conclusões é o percurso analítico adotado pela autora no decorrer do artigo: ao invés de analisar o material wari' à luz das teorias disponíveis sobre sistemas crow e omaha, Aparecida Vilaça inverte o jogo e examina aquelas teorias que considera mais importantes à luz do material wari'. E, nesse sentido, o artigo vale mais pelas questões que coloca do que pelo nível de compreensão a que chega a respeito do sistema wari'. Mesmo porque, como a própria autora sugere, o problema não são os fatos wari', e sim a necessidade de se buscar novos parâmetros mais adequados à compreensão e classificação de um sistema de parentesco, mesmo que seja necessário buscá-los em outras dimensões da vida simbólica de uma sociedade, tais como na cosmologia, na escatologia, nos rituais.

E me parece ser justamente essa a porta aberta pelos autores de Antropologia do Parentesco, ao se empenharem não só em contribuir para aumentar o corpus etnográfico sul-americano, mas, sobretudo, por fazê-lo buscando uma renovação nos estudos de parentesco.

Revista Mana



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