Águas no Brasil: gestão e intervenções
Ciências Humanas e Sociais

Águas no Brasil: gestão e intervenções


Um agente erosivo fundamental é a água. Seu movimento na superfície terrestre se orienta con­forme a gravidade e, nesse movimento, estrutu­ram-se rios maiores e menores que se articulam, formando bacias hidrográficas. Estas, por sua vez, terminam sendo a referência para medir, contro­lar e administrar as águas sobre a superfície. Isso porque, ao se falar de água, estamos nos referin­do ao principal recurso natural que dá suporte à vida humana e à vida de modo geral.

Neste capítulo, vamos iniciar as discussões sobre os recursos natu­rais e as formas de uso e gestão empregadas no Brasil.

O que inaugura essas discussões é justa­mente a questão da água: a grande disponi­bilidade em nosso território, sua distribuição no território, marcadamente desigual e os pro­blemas associados ao seu uso e desperdício.

Uma afirmação que já se tornou senso comum: o Brasil tem uma posição bem favorável em matéria da presença daquele que é, sem dúvida, o principal recurso natural do planeta: a água. Em 2005, o país dispunha de 8233 km3 (km cúbicos) de recursos hídricos anuais renová­veis (água doce), ou seja, 14,9% dos 55273 km3 do planeta. A disponibilidade média anual por habitante é de 45 573 m3, o que é um índice muito elevado.

Sendo assim, o Brasil enfrenta problemas com o abastecimento de água para o consumo da população e para as atividades econômicas que exigem o uso da água?

Uma desconfiança é saudável em rela­ção a afirmações muito otimistas nessa área. A questão da gestão e do uso de recursos naturais está sempre cercada de muita complexidade, pois são vários os fatores que interferem e, por vezes, o fato de um país ter boa disponibilidade de um dado recurso não garante que seja bem utilizado ou que não venha a faltar.

Alguns elementos, que problematizam o nosso "privilégio" em relação à água, foram listados na página 31 do caderno do aluno. Essa lista dá uma idéia da multiplicidade de problemas que envolvem o uso da água como recurso natural. É evidente que é me­lhor ter a disponibilidade de água que há em nosso país do que não ter, mas, como já foi dito, isso por si só não garante o abasteci­mento justo e sustentável desse recurso em benefício de toda a população; portanto, tal disponibilidade não dispensa a necessidade de uma gestão inteligente desse recurso.

A distribuição geográfica da água é um deles: a região de menor densidade demográfica do país, a Amazônia, tem o maior volume de água doce, representando, na verdade, mais de 70% do volume das águas das bacias hidrográficas do país. Áreas bem mais povoadas não têm toda essa disponibilidade. Algumas delas vivem, inclusive, situações de escassez, como no caso do semiárido nordes­tino, ou, em outra escala geográfica, centros urbanos como a metrópole de São Paulo. O que mais pode ser acrescentado a esse pro­blema relativo à distribuição das águas no ter­ritório nacional? Há problemas de abastecimento de água no cotidiano de cada um? Falta de água? Custo elevado? Água de má qualidade?

Água: da abundância à escassez, uma questão de gestão

O mapa ?Brasil: regiões hidrográficas?, na página 30 do caderno do aluno, dá uma idéia da abundância de água no Brasil. Em comparação com o restan­te do mundo, o Brasil detém 12,7% da água doce superficial do mundo e, em razão disso, é considerado um país rico nesse recurso funda­mental para a vida; porém, o mapa e esse dado em relação ao planeta não são suficientes para mostrar a desigualdade dessa distribuição no Brasil. Por isso, observe a tabela ?Brasil: área e produção hídrica absoluta e relativa das regiões hidrográficas?, na página 29 do caderno do aluno.

O intuito é contrastar o que significa a região amazônica e sua hidrografia no conjunto brasileiro, algo que não é possível se constatar somente por meio do mapa. Em comparação com outras áreas mais habitadas, fica eviden­ciado que o Brasil mais populoso, urbanizado e industrializado não tem tanta água disponí­vel. Daí, quem sabe, surjam projetos ousados e temerários que transfiram água de localidades abastadas (ricas) para as carentes, algo que na esca­la territorial do Brasil está muito longe de ser simples, como, por exemplo, a transposição das águas do Rio São Francisco, que será discutida mais adiante. Para trabalhar a questão do uso e da gestão da água no Brasil, muitas possibilidades podem ser adotadas, haja vista a imensidão de situa­ções e relações em que esse recurso está presente. Exploraremos duas situações de escalas distintas:

Um rio é uma realidade regional. Porém, suas condições variam segundo escalas menores. Nesse momento, vamos explorar a condição local dos rios na escala da metrópole de São Paulo.

A cidade de São Paulo possui alguns rios no seu espaço, na sua paisagem: Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, mas como exemplo, vamos falar do Rio Tietê, um dos mais importantes. Qual é o problema do nosso mais impor­tante rio, na mais importante cidade do Estado e do país? O Rio Tietê corta a capital paulista próximo à região central, assim como o Rio Sena corta Paris. Veja a foto do Rio Tietê, na página 33 do caderno do aluno.

Como é a estrutura básica do Rio Tietê na área de metrópole e como ela favorece a de­gradação do rio? O rio é muito usado pela população? Como é usado? Que efeitos tem esse uso para o rio?

Essas questões a propósito do Rio Tietê resumem os dramas que cercam o uso dos recursos natu­rais no Brasil.

O Rio Tietê nasce na região metropolita­na de São Paulo, logo, esse é o segmento onde ele possui menos água, ao mesmo tempo em que é nessa área que ele re­cebe a maior sobrecarga de poluentes e objetos sólidos de todos os tipos. Em direção ao interior, a sobrecarga diminui e o volume de água aumenta. Isso explica porque o rio está praticamente morto na metrópole, mas adquire vida no interior. Esse também é o caso do Rio Sena, na França; no entanto, obras de desvios de outros rios para o Rio Sena na área metropolitana de Paris aumentaram seu volume de água, ajudando a melhorar as condições de suas águas.

O Rio Tietê sofre uma imensa sobrecar­ga, não por ser muito usado, mas por ser usado de uma única maneira na área me­tropolitana, o que inviabiliza outros usos. Fosse mais intensamente usado, melhor seria seu estado. Parece contraditório? Mas não é! E como isso pode ser de­monstrado? O Rio Tietê é parte (e já foi a principal) dos sistemas de saneamento e de limpeza da cidade. E isso se mantém até os dias de hoje, sem que as autorida­des mostrem força para conter o que já é proibido por lei. Esse uso impede todos os outros. É possível fazer uma lista:

- As águas do Tietê não podem ser usa­das para beber nem para irrigar plantações. A cidade tem de captar água no Alto Tietê, região menos poluída, sendo que o segmento que corta a ci­dade não pode contribuir para o seu abastecimento;

- O Rio Tietê não é fonte de alimentação, não há peixes em um rio poluído;

- A navegação na área metropolitana poderia ser ao menos utilizada como transporte e lazer, e isso, nas condições atuais, é impossível;

- Suas águas poluídas dificultam o seu uso para a geração de energia;

- O rio não se apresenta como uma área de lazer e suas várzeas não são valo­rizadas, em razão da imensa poluição. Suas várzeas são usadas também para escoar uma frota automobilística gi­gantesca;

- O Rio Tietê não pertence positivamen­te à paisagem da cidade de São Paulo, que, em geral, procura ignorá-lo, sem deixar de usá-lo da forma inadequada como faz.

Assim, pode-se dizer que houve uma opção por um uso limitado do Rio Tietê e, desse modo, ele está sendo muito deteriorado. Se esse uso (sistemas de saneamento e de lim­peza) fosse encerrado, todos os outros pode­riam ser colocados em prática, e ele estaria em melhores condições.

O semiárido é uma região do Nordeste brasileiro que sofre de escassez hídrica na­tural, afetando gravemente sua população. Isso soa estranho em um país com tamanha abundância de água. Na região, vindo do sul, há um grande rio, o São Francisco, que constitui uma das mais importantes bacias hidrográficas do país e se estrutura em par­te no domínio morfoclimático marcado pe­las depressões interplanálticas semiáridas do Nordeste, como podemos observar no mapa ?Brasil: domínios morfoclimáticos?, na página 25 do caderno do aluno. Este rio, que já teve vários usos, encontra-se em situação problemática: suas águas diminuíram de volume; há barragens e represas no seu cur­so; está bastante assoreado (entulhado) e a carga de po­luentes que recebe das áreas urbanas e das zonas agrícolas tem aumentado.

Como gerir e revitalizar esse rio? Será essa a discussão mais importante?

Não, não é! O Rio São Francisco é alvo, atualmente, de uma grande e controversa obra que busca transpor para o interior do semiárido, parte de suas águas. Essa empreitada ficou conhecida como trans­posição do São Francisco. O termo trans­posição significa a transferência de águas de uma bacia para outra. No que diz respeito à escala da obra, quando se interfere no curso de um rio tão grande quanto o São Francisco, influencia uma vasta bacia hidrográfica e não se sabe ao certo como isto pode impactar o meio ambiente, com suas formações vegetais e fauna. As consequências sociais e econômicas de uma obra desse porte não podem ser previstas com se­gurança. Uma demonstração disso é que existem variadas opiniões a respei­to: opiniões contrárias e favoráveis, de engenheiros, de ambientalistas, de geó­grafos, de geólogos, de especialistas em hidrografia etc.

            Vamos ler um documento oficial, do Ministé­rio do Meio Ambiente, ?Águas: um bem público em risco?, na página 34 do caderno do aluno. Uma questão a respeito desse texto deve ser destacada a fim de integrar as preocupa­ções e as reflexões. Se a gestão pública dos recursos hídricos do país é tão precária, inclusive em ações mais simples, se praticamente não há políticas públicas de conservação desses recursos (e a descrição do texto não deixa dúvidas), que confiança se pode ter na pertinência da obra na correção e previdência dos estudos que a fundamentam?

Uma obra dessa envergadura, e que já está em andamento, foi suficientemente discutida por todos os setores da sociedade? Essa é uma questão de fundamental impor­tância em uma sociedade democrática. Seria muito bom refletir sobre tudo isso. Aqui vale lembrar uma fábula para esti­mular a reflexão: o aprendiz de feiticeiro. De acordo com esta fábula, conhecida e repeti­da muitas vezes na literatura e no cinema, por meio de diversos personagens, a con­fiança excessiva no poder da magia (no caso do Rio São Francisco, no poder da técnica) pode levar os aprendizes a perder o controle do que fazem. Qual a segurança e a certeza a respeito dos des­dobramentos e consequências da obra? Isso é muito importante para a análise do texto: verificar se os argumentos são cercados de "pode ser que", "é provável que", "não se sabe quanto", "é possível que", "se tudo der certo" e outras expressões do gênero. Qual o nível de incerteza que uma obra dessas pode comportar? Será que vale a pena correr o risco de uma intervenção que pode salvar ou melhorar vastas áreas, mas também pode ser um imenso desastre?

Esses exemplos ilustram-se formas possíveis de questionar as políticas referen­tes aos recursos naturais, um dado impor­tante das relações que estabelecemos com o mundo natural: a primeira forma trata mais de gestão do uso; a segunda, refere-se prin­cipalmente à reorganização da distribuição dos recursos naturais na superfície terrestre, com o ser humano pondo em prática (e arris­cando) o seu engenho técnico.




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