A cultura luso-brasileira. Da reforma da Universidade à independência do Brasil
Ciências Humanas e Sociais

A cultura luso-brasileira. Da reforma da Universidade à independência do Brasil



Angela Domingues
Centro de Estudos Africanos e Asiáticos do Instituto de Investigação Científica Tropical de Lisboa

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura luso-brasileira. Da reforma da Universidade à independência do Brasil. Lisboa, Editorial Estampa, 1999.

Este livro é sobre a definição de uma "elite da cultura" ou de uma comunidade cultural em Portugal durante o iluminismo, sobretudo após a reforma da Universidade de Coimbra e a criação da Academia Real das Ciências, e que a autora sustenta ser a mesma no império português dos dois lados do Atlântico. Esta "identidade cultural" caracterizar-se-ia por uma mesma formação acadêmica, por uma afinidade de leituras e de idéias, pelo enciclopedismo de interesses que não compartimentava os diferentes ramos do saber, como também se definiria pela forma indistinta com que ocupava lugares preponderantes na política e na administração, na hierarquia religiosa ou nos meios científicos e culturais. Expressar-se-ia ainda no aparecimento tardio de um programa político estruturado que suportasse ideologicamente os movimentos independentistas na colônia.

Nizza da Silva tinha já firmado a sua posição em relação a esta homogeneidade cultural das elites de Portugal e Brasil da segunda metade de Setecentos em artigos que contribuíram de forma inovadora para o estudo do tema*. Mas agora, em cultura luso-brasileira, a autora, para além de fundamentar esta tese com base na "cultura científica", considerada na sua acepção mais restrita, fortalece-a ao considerar aspectos tão originais como os da intervenção dos engenheiros militares no planejamento do espaço urbano e da racionalização dos núcleos populacionais pela construção de infraestruturas básicas com vista ao benefício da saúde pública; da formação do clero colonial e seu papel na assistência religiosa dos povos ou na detecção de manifestações de irreligiosidade (e sedição política) dos grupos ilustrados; das leituras proibidas e consentidas e da difusão do saber livresco pelas bibliotecas públicas e privadas ou através da imprensa reinol e colonial; da renovação do pensamento político colonial pela participação da elite ilustrada nos organismos de cúpula do poder; ou da consciência que do Brasil, colônia e reino, se foi formando entre a intelectualidade portuguesa e lusobrasileira como potência nascente e auto-suficiente.

É em torno destas temáticas que se estruturam os seis capítulos que constituem esta obra. Através deles o leitor é transportado para questões tão fundamentais como as da atuação das instituições culturais e corporativas na formação dos indivíduos e na difusão de conhecimentos, das redes de transmissão do saber entre pessoas, universidades e academias, portuguesas e européias, do pragmatismo científico e da aliança entre ciência e técnica com vista ao desenvolvimento da economia e ao bem-estar dos povos, da onipresença da razão na política, na percepção da natureza, nas relações entre indivíduos e civilizações.

O papel interventor do Estado Absolutista está claramente apontado: como promotor, financiador e patrono. Esta intervenção da coroa na vida científica e cultural justifica-se na medida em que o soberano era o responsável pela felicidade e bem-estar dos súditos e pela prosperidade do reino. É em função destes objetivos que se redefiniram diretrizes científicas e campos de experimentação, se reformou a Universidade de Coimbra e contrataram especialistas estrangeiros ou se apoiaram as atividades das academias literárias e profissionais. Constituir-se-ia, assim, uma elite científica composta por naturalistas, matemáticos, juristas, engenheiros, médicos e cirurgiões ao serviço dos interesses reais e interveniente na planificação de núcleos urbanos, no saneamento e na saúde pública, no controle de epidemias, na inventariação das espécies naturais, na experimentação de novos fármacos, na construção de técnicas que permitissem racionalizar e rentabilizar a agricultura, a mineralogia e as manufaturas.

A cultura luso-brasileira aborda, também a atividade pedagógica e educacional do Estado. A "democratização" do saber das elites era considerada como um meio de incentivar uma participação racional e produtiva dos súditos no desenvolvimento dos povos e na riqueza das nações. Neste sentido, a obra em análise aborda a atuação das impressões régias e privadas como veículos difusores de conhecimentos técnicos e científicos, a que muitas vezes se articulavam informações de caráter social, político e econômico.

Determinando que o campo de análise abrange o período compreendido entre a reforma da Universidade de Coimbra e a independência brasileira, a autora proporciona não só uma visão evolutiva da formação desta comunidade cultural luso-brasileira, como refere as conseqüências da atuação desta elite ilustrada: no pensamento político e econômico, no campo das idéias e das mentalidades, na dinamização das atividades produtivas e na vida quotidiana dos povos. Aponta, igualmente, que a mudança da corte para o Rio de Janeiro serviu de estímulo à intelectualidade e acelerou o "processo de racionalização" que se pretendia implementar com vista à felicidade dos povos e à prosperidade da colônia e do reino.

Nizza da Silva deixa claro que as novas idéias se implantavam por todo o Brasil, desde os sertões mais recônditos de Mato Grosso até as cidades mais desenvolvidas do litoral, graças à atuação de vice-reis e governadores esclarecidos, que difundiam panfletos educativos junto de fazendeiros e agricultores, criavam novos espaços de sociabilidade, promoviam a construção racional e planejada de povoações, dinamizavam a vida cultural e informavam a administração central do "programa colonial ilustrado" que, em última instância, conduziria à riqueza das "nações".

Impressionando o leitor por um conhecimento exaustivo de fontes textuais, cartográficas e iconográficas e beneficiando de documentação existente em arquivos portugueses e brasileiros, a autora surpreende, ainda, pela utilização inusitada que faz dessa informação como quando, por exemplo, usa inventários post mortem e de transmissão de heranças para estudar os hábitos de leituras da elite culta luso-brasileira setecentista.

* Veja-se, por exempto, "A História Natural no Brasil antes das viagens do Príncipe Maximiliano" In Oceanos, 24, Outubro/Dezembro 1995 e "A cultura luso-brasileira (1772-1808)", separata da revista Arquipélago, História, 2ª série, II (1997).

Revista de História - USP



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