Trinta anos depois de sua morte, o poeta continua sendo o mestre da modernidade (efêmera)
Trinta anos é a idade da morte de Vinicius de Moraes, o poeta carioca que inundou de lirismo a literatura e a música popular brasileira e que faleceu no amanhecer de 9 de julho de 1980. Perguntado certa vez qual era sua grande musa, não fraquejou: “A morte’, respondeu. A resposta pode até ser retórica poética, mas há visivelmente um sulco depressivo na poesia de Vinicius, por onde correm a tristeza e a ironia, sendo esta última, a grande marca da literatura contemporânea. Em sua obra madura, para quase todo verso de amor há uma correspondência à pulsão destrutiva da vida, como se amar fosse morrer. Nos momentos mais intensos de gozo, amor e morte se abraçam, e numa viagem de entrega, a sensação de prazer que demora pouco parece durar para sempre: é o instante, o mergulho na eternidade, aquilo de que tanto fala o poeta. Só para lembrar uma correlação, no caso do sexo, os franceses chamam o orgasmo de “la petite mort” (a pequena morte). Mas esta sensação do breve que pretende prolongar não está só na relação amorosa. Ela está presente na vida moderna de forma muito acentuada em tudo que se faz, a tal ponto que Paul Valery, tido como o mais lúcido e agudo pensador da poesia do século XX, chegou a dizer que “o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado.” É claro que, neste caso, a intenção é sempre abreviar a materialidade das coisas e tentar esticar na alma a sensação do vivido. Neste sentido, Vinicius de Moraes é moderníssimo. Dos poetas mortos, das gerações do século passado, é um dos mais significativos e não deixa nada a desejar a Carlos Drummond de Andrade, nem a João Cabral de Melo Neto, nem a Murilo Mendes, poetas que sem dúvida, cada um a seu modo, construíram a base da poesia brasileira contemporânea. Vinicius canta magistralmente bem os destroços e a balbúrdia da vida moderna, como frutos do efêmero. Vide “Rosa de Hiroshima”, vide “O operário em construção”, os poemas das Cinco Elegias. E faz isso com personalidade de poeta, se joga no lodo da vida sem medo. Por isso mesmo a intimidade de seus versos se confunde com a própria existência do poeta. Por isso mesmo essa intimidade é única, e esta singularidade é também a razão por que tanta gente o repele. Quem mais o nega são os acadêmicos, em particular, os professores da PUC de São Paulo, aqueles que estudaram ou leram o criador mor da grade curricular de literatura ensinada naquela instituição, ou seja, Haroldo de Campos, um intelectual incontestável, um estudioso da poesia que deixou contribuições inestimáveis ao acervo da literatura brasileira, mas que não é dono da verdade, como ninguém o é. A linha teórica deixada como legado por Haroldo de Campos, como a ideia do Barroco em tudo quanto é prosa, de Guimarães Rosa a Milton Hatoum (neste caso, é a tese de seus seguidores), não contempla a poesia de Vinicius justamente porque esta segue outros parâmetros. Há uma complexidade em sua obra que vai da iniciação poética, dos versos que cantam o sublime, às últimas criações, cada vez mais em contato com o chão da vida, livrando-se das asas da águia para se rastejar com a serpente.
Balanço Em Vinicius de Moraes, o Poeta da Paixão – uma biografia, José Castello entendeu bem a maneira como seu biografado pensava poeticamente e como procurava passar a verdade de seus versos. Vinicius “deve ser alinhado, obrigatoriamente, entre os mais importantes estilistas que a língua portuguesa produziu no século XX”, diz Castello. Segundo o biógrafo, Vinicius “foi um poeta prolixo, que não sabia jogar nenhum rascunho fora, que escrevia compulsivamente – e que viveu compulsivamente, deixando sempre os versos atrelados à experiência. Isso criou, para alguns, a falsa impressão de um poeta descuidado e até desinteressado no fazer poético.” Contra argumentos, segundo os quais, Castello é de pouca autoridade para falar de poesia, Antonio Candido, outro gigante da ensaística e da história literária brasileira, deixa na fortuna crítica de Vinicius uma contribuição valorosa, embora curta e grossa, em afirmações que valeriam um estudo: “Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e para sentir melhor, e eles não dependem das modas nem de escolas, porque as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos.” O que há por traz da resistência em se aceitar Vinicius como um grande poeta, portanto, não passa de preconceito. Não se pode estudá-lo como se estuda a poesia de Drummond, claro. É outra veia, outra proposta. Mas nem por isso menos importante. Em Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos, mais uma vez Antonio Candido nos oferece uma chave para entender Vinicius ao traçar o perfil de Tomás Antonio Gonzaga, considerando este um dos raros poetas brasileiros “cuja vida amorosa tem algum interesse para a compreensão da obra.” Gonzaga é o poeta mineiro do século XVIII, integrante do famoso grupo dos arcadistas, da qual também faziam parte Basílio da Gama e Claudio Manoel da Costa, cuja obra influenciou a própria criação poética de Gonzaga. Este, ao conhecer uma garota de 17 anos de idade chamada Doroteia de Seixas, no alto de seus 40 anos caiu de amores pela ninfa. É ela o personagem título do poema Marília de Dirceu. Segundo Candido, “amor e poesia refinaram a personalidade de Gonzaga; sem Doroteia e sem Claudio não teríamos a sua obra. Entretanto, mais do que o cantor de Marília, ele é o cantor de si mesmo”, analisa. Algo semelhante acontece com Vinicius de Moraes. Ele também pode ser descrito como fruto do amor e da poesia. Ele também é o cantor de si mesmo. Não foi por outra razão que Drummond confessou que queria ter sido Vinicius de Moraes, porque, em sua opinião, foi o único poeta que viveu como tal. E essa vida mergulhada na sensação do prazer, no hedonismo sem fim, é transposta para a poesia à medida que o poeta, ele mesmo, começa a deixar para trás a experiência místico-religiosa em que estava afundado e passa a viver as experiências abertas do mundo, como o amor e a boêmia.
Infinitude Nascido em 19 de outubro de 1913, no Rio de Janeiro, até os 23 anos, Vinicius era praticamente um carola. Nutria amores furtivos e um sentimento platônico de infância. A essa altura já era um poeta publicado. Seu primeiro livro, O Caminho para a Distância, fora lançado em 1933, quando ainda não tinha feito 20 anos, e já estava no fim do curso de Direito da Faculdade do Catete, onde havia entrado aos 16 anos. Na Faculdade, ele fez amizades com os mais fervorosos pensadores católicos do país, entre eles Octavio de Faria, Mário Vieira de Mello e San Thiago Dantas, junto com os quais varava a noite lendo Blaise Pascal e Sören Kierkegaard, influência que é visível até mesmo nos poemas e sonetos posteriores à fase metafísica. O Caminho para a Distância foi bem recebido pela crítica. Mas nele, o que se vê é um poeta distante da realidade vivida, preocupado com as elucubrações do sublime, enfurnado num desespero impraticável, teórico, letrado, kirkegaardiano. “Desesperados vamos pelos caminhos desertos/ Sem lágrimas nos olhos/ Desesperados buscamos constelações no céu enorme/ E em tudo, a escuridão./ Quem nos levará à claridade/ Quem nos arrancará da visão a treva imóvel/ E falará da aurora prometida?”, canta o poeta em “Os inconsoláveis”, poema do primeiro livro. Pode-se sentir aí o ritmo alucinado, uma musicalidade em transe. Este ritmo permanecerá em muitos de seus poemas, mas não com um conteúdo tão carola. Em todo caso, em 1936, Vinicius conheceu Manual Bandeira, e sua vida não seria a mesma. Nos anos seguintes, Bandeira, que era pernambucano, ciceroneou o jovem poeta carioca pelos bares e noites do Rio de Janeiro, principalmente pelo ambiente de prostitutas e beberrões da velha Lapa. Em meio à boêmia e à poesia de Bandeira, a aventura foi um descobrimento, um deslumbramento do qual nunca mais o poeta se curaria. A ironia maior, no entanto, aconteceu no ano seguinte, quando Vinicius conheceu Beatriz Azevedo, a Tati, sua primeira grande paixão, com quem viveria até 1950, para depois engatar em mais oito casamentos vida adentro. Tati, que muito tempo depois viraria nome de perfume, era sobrinha de ninguém menos que Octavio de Faria, o intelectual católico que levou Vinicius a ser o poeta do sublime. Ela foi a musa que inspirou este mesmo poeta a compor nada menos que “Soneto de Fidelidade”, em 1939, quando, apaixonado, voltava de Oxford, Inglaterra, onde havia estudado literatura. “De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais pensamento”, diz a primeira estrofe do poema mais conhecido e recitado de Vinicius. Já na primeira leitura, sente-se a ambiguidade dos versos, em que se pode atrelar o significado de ‘amor’ à própria mulher, no caso, Tati, ou ao sentimento, que no fim das contas era aquilo de que falava o poeta. Percorrendo o corpo do poema, também vemos a presença da morte ao falar de amor, a morte como angústia da vida e a solidão como a ausência de afeto. O desfecho é, sem dúvida, arrebatador. Esse amor vai acabar, seja pela chegada da morte, seja pelo abandono do ser amado. O fato é que quando isso acontecer, já não importa mais, porque o que interessa não é a imortalidade, é a infinitude, é o desdobramento infinito do amor no ser que ama, mesmo que dure um piscar de olhos. Este infinito amor de um ano faz Que é maior do que o tempo e do que tudo Este amor que é real, e que, contudo Eu já não cria que existisse mais.
Este amor que surgiu insuspeitado E que dentro do drama fez-se em paz Este amor que é o túmulo onde jaz Meu corpo para sempre sepultado.
Este amor meu é como um rio; um rio Noturno interminável e tardio A deslizar macio pelo ermo
E que em seu curso sideral me leva Iluminado de paixão na treva Para o espaço sem fim de um mar sem termo.
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