Um crítico bissexto
Ciências Humanas e Sociais

Um crítico bissexto



Um crítico bissexto
MARCIO SUZUKI
É fato bem conhecido que, para o amante da literatura, para o público em geral e para os críticos do século 18, o inesperado aparecimento de um autor do porte de J.W. Goethe na cena literária alemã tinha um quê de inexplicável e intrigante. Quando ainda se arrastavam as discussões acerca da possibilidade de implantação de um teatro genuinamente alemão, livre de todas as imposições do gosto clássico francês, via-se surgir com Goethe não só uma dramaturgia, mas também uma poesia épica e lírica inteiramente novas. Para muitos, era como se ele viesse desempenhar, embora tardiamente, o papel de fundador de uma literatura nacional, proeza somente comparável à de Dante, Cervantes e Shakespeare; para outros, mais exigentes, era preciso dar conta desse prodígio, explicando o ''gênio'' de Goethe.
As produções originais do autor do ''Werther'' colocavam problemas tanto mais inquietantes para a teoria e crítica quanto menos ele mesmo se mostrava preocupado em explicitar, por meio de ensaios, como entendia a poesia e a literatura. É o que se pode observar com a publicação dessa seleção de seus ''Escritos Sobre Literatura''. O leitor não deve se impressionar com o pequeno volume: à parte algumas resenhas e comentários circunstanciais, à parte as referências autobiográficas esparsas em diversos trechos da obra, um bom apanhado de sua produção ''teórica'' pode ser encontrado nesse livrinho.
Mas seria certamente um equívoco tentar estabelecer comparações entre a gigantesca fecundidade artística de Goethe e sua mirrada expressão teórica. Desde o período do ''Sturm und Drang'', a ''teoria'' de Goethe não aparece como suplemento à obra, como uma hera agarrada ao tronco da árvore, mas corre no interior do organismo misturada à seiva que nutre suas flores e frutos. O melhor exemplo disso são ''Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister''.
Nos livros três, quatro e cinco, o ''Wilhelm Meister'' contém uma extensa discussão da poesia dramática transvestida em forma romanesca. A análise que ali se faz de Shakespeare é guiada pelo propósito de mostrar as dificuldades de encenar as peças dele, sendo portanto necessário ''romancear'' a dramaturgia do autor inglês. É desse modo que o leitor do romance se torna espectador de uma ''encenação narrada'' do ''Hamlet'', e é igualmente desse mesmo modo que o fracasso de Meister como diretor e ator de teatro não pode ser imputado à sua falta de talento ou a uma fatalidade do destino, mas representa uma necessária mudança na maneira de enfocar o herói: este já não pode ser um herói ''ativo'', trágico, que ''apressa'' o desenlace da trama, removendo ''os obstáculos de seu caminho'' ou sucumbindo a eles, mas deve se transformar num herói, se não inteiramente passivo, ao menos num herói ''retardante'', que dá um andamento mais lento à evolução dos acontecimentos: o ''livre jogo do acaso'' tem de ser de certo modo ''conduzido e governado pelos estados de ânimo da personagem'' (''Wilhelm Meister'', livro cinco, cap. 7). A ''tese'', no fundo, é esta: impossível de ser encenada nos ''tablados'' alemães, a complexa estrutura da tragédia shakespeariana tem de dar lugar à narrativa, ao romance.
Tema capital da estética do século 18, o problema da unidade das peças do dramaturgo inglês também é decisivo, como se vê, para os rumos da estética de Goethe. Em dois escritos do livro, ele ensaia uma solução para o problema: em ''Para o Dia de Shakespeare'', de 1771, defende a idéia herderiana de que os planos no teatro shakespeariano não são construções do arbítrio humano, mas obedecem a uma teodicéia, a um desígnio inescrutável da sabedoria divina. Shakespeare seria, assim, uma espécie de ''deus dramaticus''. Em ''Shakespeare e o Sem Fim'', há retomada das idéias do ''Wilhelm Meister''. Nesse ensaio da maturidade (1813-1816), mostra-se que a poesia de Shakespeare ''fala ao nosso sentido interior'', é menos ''ação sensível'' que ''palavra espiritual'', feita mais para a imaginação que para os olhos. Pela vitalidade de sua palavra, uma peça shakespeariana não deveria ser declamada, mas ''recitada em voz alta por uma voz segura e natural''. Shakespeare, conclui o ensaio, não é um ''autor de teatro'', mas um ''poeta dramático'', pois o drama é uma ''fala feita de ações'' sustentado apenas pela imaginação.
Essa interpretação é uma explicitação da tese defendida no ''Wilhelm Meister''. Como obra de criação, o romance de formação já contém também uma crítica de literatura e de arte. O primeiro a assinalar essa originalidade do ''Meister'' foi Friedrich Schlegel, que disse a respeito dele: quem caracterizasse devidamente o ''Meister'' de Goethe do ponto de vista da crítica literária _''não precisaria fazer mais nada''.
Em tempo: apesar da edição ser despretensiosa, alguns pequenos cuidados poderiam ser tomados na publicação desses escritos de Goethe. Falta uma nota informando o leitor sobre a época em que os ensaios foram escritos e que explicasse, ao menos em princípio, o critério de seleção. A tradução também comete alguns deslizes em passagens importantes: não tem sentido dizer, por exemplo, ''unidade do lugar'' (mas sim ''unidade de lugar''), nem ''panos de fundo'' das peças de Shakespeare, quando se trata literalmente de ''planos'' (''Plane''); não se faz uma ''leitura inicial'' das peças, mas uma ''leitura em voz alta'' (''Vorlesen'').

Marcio Suzuki é professor de estética no departamento de filosofia da USP.

Folha de São Paulo



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