Fronteiras da modernidade
Otília Arantes
Pensando bem, achei que a melhor maneira de abrir uma coletânea sobre arte brasileira, de autoria de um crítico tão fora de esquadro como Mário Pedrosa, seria começar por onde a rigor tudo começa neste país, pelas missões culturais estrangeiras. Refiro-me, no caso, à Missão Francesa. Sobre ela, o crítico deixou uma tese inédita, apresentada, em 1955, à cadeira de história do Colégio D. Pedro 2º, "Da Missão Francesa: Seus Obstáculos Políticos", e, para variar, altamente polêmica, na contramão de todas as versões consagradas, oficiais ou não.
Como indicado no título do trabalho, o autor concentra-se sobretudo na emaranhada rede de intrigas políticas, trocas de favores e outros arranjos menores entre franceses emigrados, portugueses encastelados em privilégios e brasileiros interessados nas mesmas sinecuras, tudo em nome do aprimoramento espiritual do país. A tese revê a versão original e acreditada daqueles fatos que retardaram a criação da Escola de Belas Artes e descaracterizaram em parte a função atualizadora de uma "missão cultural", mesmo improvisada como aquela, de fato não exatamente uma missão, antes um grupo de ex-bonapartistas que se refugiaram por aqui (feitas as ressalvas de praxe a alguns raros talentos verdadeiros como os da família Taunay).
Independente do acerto maior ou menor de sua interpretação histórica, o que nos interessa por agora é sobretudo a discussão paralela, conduzida nas entrelinhas: o problema das influências externas na nossa história da arte. A seu ver, a presença daqueles artistas franceses no Brasil de D. João 6º e início do Império bem poderia ter contribuído, como muitas vezes se disse, para interromper uma tradição local que mal e mal se esboçava, portanto teria sido uma força desintegradora, ao mesmo tempo em que apresentava características que favoreciam igualmente a cristalização do repertório iconográfico de um país que se renovava. Além do mais, também não seria fácil discernir, nela, a melhoria real no estado das artes do simples retrocesso, sem falar no atrelamento institucional ao arbítrio do poder constituído. E assim por diante. São dilemas conhecidos e recorrentes na história da nossa arte, do modernismo às neovanguardas, passando é claro, pela abstração e pela arquitetura moderna. Etapas desse processo de promessas e desenganos, bem de acordo com a própria marcha recalcitrante da modernização brasileira, à observação da qual Mário Pedrosa nunca deixou de ajustar o seu ponto de vista, desde a primeira hora mais explícita de empenho político.
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Sabemos que Mário Pedrosa era antiimperialista convicto, mas temia igualmente o nacionalismo. Também não era etapista. De acordo com uma de suas fórmulas preferidas, sobretudo quando se tratava de definir a civilização do país numa só frase: estávamos "condenados ao moderno" porque não estávamos condenados a reproduzir em nosso futuro o passado dos mais adiantados numa corrida que poderia não ser a nossa, nem da humanidade. Por outro lado, suas leituras, especialmente trotskistas, lhe ensinaram que uma onda modernizante, talvez inevitável, podia muito bem agravar relações arcaicas de dominação. O mesmo valendo para a dimensão estética.
Para Mário Pedrosa, portanto, a preponderância do influxo externo -que se espelha com maior nitidez em "civilizações-oásis" como a nossa (como veremos adiante, uma de suas chaves interpretativas da nossa formação)-, parte indescartável do processo cultural de um país dependente, não é algo que nos diminua ou mesmo engrandeça por definição. Sendo assim permanente o descompasso, o que interessa é o seu funcionamento atual, cujo desfecho é sempre incerto: nefasto quando atalha experiências locais penosamente elaboradas, mola propulsora quando desmancha fantasias em torno de falsas tradições, elas mesmas remanescentes de antigas transposições ultramarinas. A Itália atrasada gerou o futurismo, que a Rússia ainda mais atrasada adotou -num e noutro lugar houve acertos notáveis e incongruências gritantes. Como o atraso é expressão de um movimento mundial e não atrofia individual, cabe ao crítico -como era a convicção de Mário Pedrosa- verificar o modelo pelo qual se combinam tais elementos descompassados que ora asseguram à forma moderna importada um funcionamento produtivo ou, não podendo andar juntos, decretam a falência do arremedo.
Veja-se, para começar, o barroco. Nas vezes que o menciona, quase sempre para efeito de argumentação "ad hoc", Mário Pedrosa enfatiza tanto o abrasileiramento da matriz portuguesa e as continuidades que daí se seguem, quanto o fato bruto de sua transposição direta, sem retoques: mas foram os acasos e as injunções da colonização que nos permitiram estrear na "vanguarda", por assim dizer, ela não brotou espontaneamente do solo nacional em virtude de algum sexto sentido brasileiro para as grandes rupturas artísticas. O que faz o crítico recorrer àquela arte da colônia tanto para tomá-la como paradigma de civilização-oásis, quanto para sugerir que um processo de aculturação acabou ocorrendo e cobrar, se não fidelidade, ao menos uma certa coerência com um tal passado. Ou seja, no fundo, a Missão Francesa teria emperrado a consolidação de um processo pelo qual a civilização portuguesa começava a ganhar aqui contornos de cultura local. Mas não era apenas isso, ela vinha também interromper uma atualização que possivelmente nos seria melhor assegurada via Portugal, que, na ocasião, (justamente por ter ficado para trás) se aproximava do romantismo inglês, que depois triunfaria em todo o continente.
Ora, não deixa de ser um mérito tirar proveito de um vínculo tradicional de dependência, como a de Portugal em relação à Inglaterra, como também é familiar a recomendação implícita de que diversifiquemos nossas fontes de abastecimento cultural. Mas o recado de Mário Pedrosa vai mais além, nele não só ainda ecoa uma antiga palavra de ordem modernista, mas aflora a convicção de que já corríamos por um caminho próprio, "orgânico", incompatível com a intromissão neoclássica: "Os nobres davidianos vinham alterar o curso da nossa verdadeira tradição artística (sic), que era barroca, via Lisboa". Obviamente que não ocorreria a Mário Pedrosa utilizar um tal chavão nativista para repudiar, por exemplo, a introdução da Arquitetura Nova no Brasil, em particular o purismo "racionalista" de Corbusier -longe de nosso autor profissões de fé tradicionalistas ou revivalistas. Ele se mostra tão reticente em relação ao artifício "neocolonial", como o fora em relação ao neoclassicismo de arribação.
Confrontado pois com a falsa continuidade entre aqueles dois purismos de importação, Mário Pedrosa recorre a uma importante distinção, inspirada por Lewis Mumford: se o neoclassicismo -que chegava quando o país ia se transformando em nação independente e começava a se integrar de norte a sul- podia ser considerado uma linguagem universal, como virá a ser o racionalismo de Corbusier e da Bauhaus numa outra fase de modernização, o primeiro teria sido, na sua neutralidade geométrica de "grande comodidade para a dominação dos colonizadores" (no dizer do autor americano, formas coloniais exportadas "prontinhas"); já a arte e a arquitetura moderna apresentavam, na sua pureza e autonomia formal, uma dimensão diversa, prospectiva, utópica, representando assim "a primeira expressão antecipatória da marcha da humanidade para afinal enquadrar-se numa só história". Num caso, portanto, estamos diante de um ato autoritário de dominação, no outro (sem desconsiderar as ambigüidades do transplante), de um impulso emancipatório.
Além disso, na esteira do mesmo Mumford, Mário Pedrosa acreditava que um caráter regional florescente é o último a se cristalizar. Mas quem lhe fornecerá a chave do enigma, posto justamente pela ambígua apoteose da nossa arquitetura moderna, que culmina em Brasília, será Worringer, mais exatamente um estudo dele sobre a arte egípcia, do qual adota o conceito, já citado, de "civilização-oásis". Brasília não faria senão reproduzir, ainda uma vez, o paradigma dos reiterados enxertos que ocorreram ao longo do nosso processo de colonização.
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De fato, parece ter sido a polêmica gerada pela Nova-Capital que induziu o crítico a tentar formular algo como uma teoria sobre as nossas importações culturais. A idéia de uma capital "plantada" na aridez espiritual do cerrado central aparece-lhe como a repetição do gesto de nossos antepassados que para cá "transplantaram" sua cultura européia, não tendo encontrado cultura ou civilização que devesse ser preservada. O Brasil não passava de imenso viveiro de formas importadas -tal qual um "oásis" no meio do deserto (que podia ser a nossa mata virgem). Por isso mesmo Mário Pedrosa prefere falar de civilização, dado o seu caráter antinatural, e não em cultura, que resultaria, ao contrário, de uma relação orgânica entre o homem e o seu meio.
O termo "civilização-oásis" enfeixaria assim o arco dessa mitologia da condição colonial, da qual Brasília ainda faz parte -não apenas por se instalar lá longe em meio a terras bárbaras, mas por se afastar daquelas áreas onde se desenvolve o "processo vital" de simbiose entre o ambiente natural e a história cultural e política do Brasil. Como se vê, a abundância do oásis pode se transformar em algo nefasto e, ao usar esse esquema, nosso crítico tem em mente essa outra dimensão: o insulamento de uma civilização desenraizada. Estaria assim sintetizada, naquele conceito, a ambiguidade mesma de nossa modernização.
Sem dúvida, há uma certa desproporção entre a disciplina egípcia (a que se referia Worringer) para vencer pela técnica os obstáculos de uma natureza adversa e a nossa formação cultural. Mário Pedrosa, é claro, sabe disto: "No Brasil, nem nos entregamos à natureza, nem a dominamos. Estabeleceu-se um "modus vivendi' medíocre". Mas ficou a deixa para o que lhe convinha ressaltar: "nunca tivemos passado nem rastro por trás de nós". Observação otimista, no vezo modernista de converter o negativo em positivo, o atraso como plataforma para um salto à frente. A América não era exatamente um oásis entre desertos, mas era simplesmente nova, isto é "um lugar onde tudo podia começar do começo". E começar tudo de novo é sinal dos novos tempos, a modernidade em pessoa. Se antes nos deprimia tudo o que havia de postiço numa civilização mimética, a teoria do oásis vinha reabilitar os sucessivos enxertos que nos permitiam estar "à la page". Forçando um pouco a nota, seria o caso de ressaltar que, naqueles anos de 50, o espírito do tempo corria a favor das importações que ajudassem a queimar etapas, como se dizia, da indústria automobilística à arte abstrata.
A mata virgem, propriamente dita e estilizada, era um convite à "tabula rasa" das vanguardas, e a imitação quase um privilégio. Assim, os colonos que desembarcaram no novo continente "puderam transplantar, por assim dizer intactas, suas formas culturais mais adiantadas, como se tratasse de uma transplantação de oásis". É óbvia a intenção de polemizar com o gosto retrógrado dos nacionalistas, mas ao mesmo tempo, por outro lado, a de demolir o mito de uma civilização orgânica que a matriz européia nos impingira e que, embora conservador, servia de argumento ao progressismo de uma certa esquerda. Como não nascemos naturalmente, mas pela irrupção artificial e exógena de aglomerados urbanos, estaríamos "condenados ao moderno', isto é, a desenvolver um "formidável poder de absorção de quaisquer contribuições culturais, por mais complexas e altas que sejam". Modernos de nascença, banimos de vez o espírito conservador "que só admite a evolução histórica como fruto espontâneo e orgânico de fatores naturais e da tradição".
Ao mesmo tempo, rebaixado, tal tipo civilizatório, à condição de fase colonial pretérita, as dúvidas voltam a pairar sobre Brasília, o estopim de todas essas idas e vindas, pois justamente ela ainda obedeceria à mesma concepção de civilização-oásis, porém num momento em que o país já teria superado a fase colonial. O que o leva a se perguntar se não seria paradoxal pensar uma capital fora das áreas onde se formaram os primeiros rebentos de uma cultura autóctone. Assim, de trampolim, ou de plataforma de lançamento de nossa modernidade, o oásis passaria a ser um quisto ameaçador.
Na dúvida, Mário Pedrosa se volta para a solução de Lúcio Costa: um avião pousando suavemente sobre o chão rústico da ex-colônia, como a despertá-lo de sua aparente letargia pré-histórica. Afinal, o arquiteto projetava para um futuro no qual todos confiavam e que não haveria de ser apenas brasileiro. Posta assim em perspectiva utópica, ficava reabilitada a capital-oásis e, com ela, outra vez, a tipologia da civilização-oásis tomada em sua derradeira acepção, a que superpõe oásis e utopia. Lembremos que a hora desenrolava-se então sob o signo do Plano -plano de metas, plano-piloto (do urbanismo à poesia concreta) e assim por diante. Com este último curto-circuito, Mário Pedrosa completava a recapitulação neomodernista de nosso destino: varando o tempo, a capital da antiga colônia, fecundada pelas novas técnicas construtivas, corria ao encontro da utopia da nova era...
Há momentos todavia, naqueles escritos de uma época quase visionária, em que Brasília, além de figuração exemplar, é quase um pretexto para se discutir e entronizar o papel da arte na reconstrução do mundo. Não será demais lembrar que na mesma ocasião Marcuse ressuscitava a utopia estética de Schiller -traduzida, é claro, na linguagem surrealista que impregnava os ares do tempo-, ela mesma, ora um sucedâneo, ora a antecâmara da revolução social. Dentro deste espírito, Mário Pedrosa redigirá em 1967 o artigo-manifesto -"À Espera da Hora Plástica"- que encerra o presente volume. Mas já não tinha mais ilusões quanto ao destino da utopia que em grande parte compartilhara com Lúcio Costa: a nova capital encontrara enfim a sua verdade, totalmente sintonizada com um país que em princípio ela deveria ter ajudado a subverter.
Otília Arantes é ensaísta, co-autora, com Paulo Arantes, de "Sentido da Formação" (Paz e Terra). Este texto foi extraído do prefácio ao livro "Textos Escolhidos - Acadêmicos e Modernos" (vol. 3), de Mário Pedrosa, a ser lançado brevemente.
Folha de São Paulo
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