Sônia Salzstein
Quer se queira quer não, a idéia de "moderno" mais profundamente enraizada e reconhecida na arte brasileira é aquela que se construiu e se irradiou a partir dos nomes de Emiliano Di Cavalcanti e Cândido Portinari, desde os primeiros anos da década de 30. É claro que há as presenças inaugurais de Anita Malfatti, Lasar Segall e Tarsila do Amaral, cujas obras tinham alguns anos antes (e cada uma a seu modo) plantado a questão moderna na incongruente paisagem brasileira. Mas essas obras não se demonstraram influentes o bastante para consolidar o paradigma cultural que ainda hoje faz com que Di e Portinari se apresentem para nós como os grandes emblemas de uma certa noção do "moderno". Esta comparece admiravelmente combinada, na pintura de ambos, a uma ideologia do "nacional", componentes que de resto se revelariam importantes não só na arte, mas também na configuração da imagem de uma cultura brasileira em geral.
Sabe-se que Anita e Tarsila, diante do apagamento precoce do ânimo renovador de suas obras, tocaram apenas fugazmente uma espacialidade moderna para a arte brasileira; Segall, por sua vez, havia forjado fora daqui a matriz moderna e verdadeiramente experimental de seu trabalho. O fato é que o que vingou e se estabeleceu culturalmente como emblema de uma arte moderna, e "brasileira", foram as obras mais longevas de Di Cavalcanti e Portinari (menos vulneráveis, também, às tensões culturais que logo arrebentariam a pintura de Tarsila), mesmo que em torno de Tarsila tenha se cultivado a mesma inquietante figura de modernidade, às custas, certamente, da elisão de todas aquelas tensões tangenciadas em sua obra.
Da fórmula "nacional/moderno" acabamos herdando, dessa maneira, uma noção bastante conservadora do que significou ou ainda pode significar uma experiência moderna para a arte brasileira. Em vez de ser percebido como marco na conquista de um horizonte experimental, contra o "bovarismo cultural" então reinante, o modernismo emblemático desses artistas foi sendo revestido de uma legitimidade "oficial", que ao longo dos anos nada fez senão encobrir os limites que o projeto moderno encontraria fora de seu centro, e que ainda hoje encontra, mesmo emergindo sob novas formas e modalidades, em meio ao mais recente surto internacional de modernização que alcança o país.
É esse sistema de lugares-comuns sobre o modernismo brasileiro, tão perfeitamente bem articulados entre si, e ainda bem ativos na atualidade, que o livro de Carlos Zilio ajuda a arruinar. Ao longo de três eixos principais de abordagem ("Introdução/Pressupostos à Conceituação"; "Surgimento do Espaço Moderno Brasileiro" e "O Estilo Modernista na Obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari"), o autor desenvolve uma cuidadosa análise dos modos como se obliteraram os compromissos conservadores presentes nas obras daqueles três artistas.
Dentre nossos três notáveis, talvez apenas Tarsila tenha tentado enfrentar a questão dos modelos ou da dependência cultural. É que o apelo nacional não se apresentava prescritivamente a ela -era uma questão interna do trabalho, movendo-se nele como um processo reflexivo, de autocompreensão de uma cultura que queria se atualizar no estrangeiro, mas segundo critérios próprios, e a partir de uma consistência cultural própria. Por isso, mesmo tendo associado a conquista de uma espacialidade moderna à exigência de uma consciência nacional, esta era vislumbrada de modo bastante heterodoxo por Tarsila: não a forma a priori da ideologia nacionalista, mas a instância de autoconhecimento e de "libertação de uma série de recalques literários, sociais, étnicos", que em sua obra seriam "trazidos triunfalmente à tona", para citar aqui o comentário que Zilio toma a Antonio Candido, a propósito do modernismo de 22.
Para Tarsila, então, tratava-se de assimilar a paisagem inculta, "as cores feias e caipiras que o ramerrão do gosto apurado da época" tinha condenado como estigmas do país sem tradição, para poder compreendê-las à luz dessa irrestrita liberdade de invenção que a arte moderna ensinava. Ao contrário das soluções de compromisso que a conciliação do "nacional" com o "moderno" deixava entrever na pintura de Di e Portinari, ao contrário do tom defensivo e compensatório com que o sentido do nacional condicionava o sentido do moderno na obra destes (como tão claramente apontam as análises formais encetadas por Zilio), a pintura de Tarsila sorvia a cultura moderna européia com descarada curiosidade, com a inocência desprevenida da nação jovem, sem pretender afetar a tradição culta da metrópole e, muito pelo contrário, irreverentemente relativizando-a e submetendo-a à particularidade do ponto de vista regional.
Dessa atitude desarmada resultou um olhar moderno brasileiro bastante peculiar, cheio de incongruências, cuja graça residia justamente em que não dissimulava, enfim, o punhado de contradições que a expansão modernizadora internacional da virada do século legava às bordas do sistema. Daí em Tarsila se realizar essa esquisita soma, da percepção naturalista com uma astuciosa inteligência analítica, desmontando e remontando a paisagem brasileira segundo as veleidades da nova ordem social que submetia, tal como faria a artista, "afetivamente", suas personagens domésticas e populares aos rigores da superfície planar e impessoal da nova paisagem industrial.
Aí está um campo de pistas, comentários e sugestões interpretativas sobre o período formativo de nossa arte moderna, certamente tributário da reflexão inaugural do ensaio redigido por Zilio em 1979, publicado pela Funarte em 1982 e agora relançado. E de fato o livro, que tem como subtítulo "A Questão da Identidade Brasileira: A Obra de Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari/1922-1945", pela primeira vez na história da arte brasileira descreveu o moderno como problema, isto é, desmanchou o discurso positivo que o envolve (e que elide as contradições que faz nascer na obra desses três artistas), mas sobretudo tratou-o em suas repercussões culturais mais sutis, sugerindo-nos que a questão moderna continua no centro de um processo de renovação e emancipação da arte brasileira, do qual o modernismo das gerações de 20 a 40 terá sido apenas uma etapa inaugural.
Isto não é pouco. Decorridos 15 anos da primeira edição desse livro, raras foram as iniciativas preocupadas em propiciar um quadro interpretativo abrangente da história recente da arte brasileira, em que a questão moderna -verdadeira ferramenta de análise da arte brasileira, em seus percalços na direção de uma densidade cultural própria- emergisse como motivo central.
Como motivo central: livre dos habituais enquadramentos ideológicos nacionalistas ou populistas que a retêm todas as vezes em que está em jogo um processo de ruptura cultural. Porque a questão moderna parece ser, para nós, a questão de todas as questões: pelo menos as duas gerações pioneiras do modernismo viveram-na intensamente, enfrentando-a no cerne mesmo de suas obras. Lembremos que são raríssimos, na história da arte brasileira dessas décadas iniciais, os artistas que conseguiram efetivamente construir uma obra moderna, ou melhor: plenamente moderna... Na maior parte das vezes esses artistas revelaram segmentos luminosos, seguidos entretanto de fabulosos retrocessos, concessões de todo tipo ao provincianismo dominante, diluições dos próprios achados e outras inconsistências. Assim foi com Tarsila, Di, Portinari, e mais tarde com artistas como Pancetti e Guignard. A reflexão de Zilio é um convite a que se investiguem as razões desse fenômeno.
A bem da verdade, tudo nesse campo parece ainda por ser feito; cabe mesmo admitir que ainda não constituímos uma bibliografia básica sobre arte brasileira moderna e contemporânea, não obstante trabalhos importantes tenham até aqui se produzido de modo pioneiro e estimulante. Sob esse aspecto, a originalidade da contribuição de Zilio é que seu texto se desenvolve como uma espécie de meta-história da arte brasileira, propondo-nos certas balizas metodológicas e pistas interpretativas para a constituição dessa história, procedendo a uma espécie de limpeza ideológica do sentido do "moderno". Abre-se assim, doravante, a possibilidade de escrever uma história que não a da modernidade epigonal, de artistas atormentados pelo fantasma da assincronia e da dependência cultural.
Nota:
1. Aracy Amaral, "Tarsila, Sua Obra e Seu Tempo" (1986).
Sônia Salzstein é crítica de arte.
Folha de São Paulo
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