O contato furioso da existência
Carlito Azevedo
A obra de Apollinaire produziu uma recepção das mais ambíguas. Os surrealistas, por exemplo, admiravam nele o "encantador de palavras" capaz de escrever um texto em que, sem medo de anacronismo, dialogam livremente personagens tão distanciados como Helena, Tirésias, os Druidas, o Arcanjo Miguel e Merlim ("L'Enchanteur Pourrissant"), afirmando-se como "um exemplo da vitalidade da corrente hermética que secretamente tem alimentado a poesia do Ocidente desde o Renascimento", como bem notou Octavio Paz nas páginas de "Os Filhos do Barro".
Mas, apesar disso, nem Breton nem Aragon jamais alardearam seu nome como precursor, tanto quanto fizeram com os nomes de Rimbaud e Lautréamont, por certo incompatibilizados com o "esprit nouveau" excessivamente francês do poeta. Na outra face da moeda, os poetas concretos citaram-no em seu "Plano-piloto": "apollinaire ("calligrammes'): como visão, mais do que como realização". Elogio do poema mais como algo a ser "apresentado" do que "transposto", mas que já trazia embutida a crítica dura, muito provavelmente dirigida ao excesso e ao transbordamento desse que foi o poeta lírico por excelência, dados que não combinavam com a defesa de concisão e rigor matemático expressa naquele documento de 1958.
Além disso, no já citado "Os Filhos do Barro", Paz constata que a colagem poética de Pound e Eliot foi no mínimo precedida pelo "simultaneísmo" de poemas como "Zone" e "Le Musicien de Saint-Merry", sem que por isso Apollinaire tivesse assegurado um lugar no "paideuma" de Pound, onde no entanto brilhavam como estrelas de primeira grandeza um Théophile Gautier e um Rémy de Gourmont, ou que, no caso de Eliot, ele fosse tão lembrado como um Laforgue ou um Baudelaire.
Finalmente, como não pensar que, para além do coloquialismo, a "poesia em vozes" de alguns poetas contemporâneos encontra a sua matriz num poema como "Lundi Rue Christine"? Poema em que Apollinaire se põe simplesmente a anotar as conversas que ouve numa "segunda-feira na rua Cristina". Todos estes exemplos servem para demonstrar eloquentemente que, como bem afirmou a crítica Marguerite Bonnet ("André Breton - Naissance de l'Aventure Surréaliste", José Corti, 1968), Apollinaire pode não ser hoje o que se convencionou chamar de "influência", mas jamais deixou de ser uma presença.
Presença ainda mais problemática quando se pensa que, à exceção do caso especialíssimo de Jacques Prévert, Apollinaire foi o último poeta realmente popular da França, com alguns de seus poemas, como o célebre "Le Pont Mirabeau", decorados por gerações e gerações. Mas essa recepção "equívoca" de Apollinaire, longe de ser um golpe de azar que atingiu sua obra, está intimamente ligada com seu projeto poético: a partir do momento em que Apollinaire resolveu colher no cotidiano menor das vidas comuns, bem ao rés-do-chão, o material de sua poesia, teve que passar a trabalhar com o surpreendente e o inesperado da vida, o "contato furioso da existência".
Imaginem um sujeito que anda pelas ruas e vê um apaixonado casal de namorados, dobra uma esquina e vê um imenso arranha-céu sendo construído ao lado de um velhíssimo casarão onde membros de alguma seita esotérica entoam invocações com palavras de real delícia sonora e significado hermético e, finalmente, entra numa biblioteca para estudar bestiários medievais. Ora, Apollinaire era tudo isso (e mais), e disso tudo é que tirava sua poesia, dessas experiências líricas, urbanas, esotéricas e eruditas. Nenhuma tendo mais importância que a outra. Os caligramas são uma face do poeta, os poemas a Lou são outra face, e todas elas formam a sua múltipla face.
A que face pertencem os poemas de "O Bestiário ou Cortejo de Orfeu", livro publicado em 1911 e que nos chega agora em tradução problemática de Álvaro Faleiros? Aqui temos um feliz casamento entre o poema de circunstância e o poema de cifra esotérica. Acompanhados de gravuras realmente inspiradas de Raoul Dufy, estes poemas remetem aos bestiários medievais, livros que mudaram a concepção de diálogo entre texto e imagem, diálogo tão caro ao autor de "Os Pintores Cubistas" e que buscou no "orfismo de Delaunay a inspiração para uma escrita "simultânea' ".
Em um dos poemas mais interessantes da série se pode ler: "Que teu coração seja isca e céu, piscina! Pois pescador, peixe de água doce ou salina/ Pode igualar-se por sua forma e sabor./ Ao peixe divino, Jesus, Meu Salvador" ( "Orfeu"). Apesar de misturar no mesmo poema Orfeu e Jesus Cristo, Apollinaire não pratica aqui um anacronismo gratuito, mas remete a uma bela tradição. Em seu livro sobre as relações entre orfismo e cristianismo ( "Orphée"), André Boulanger enumera alguns casos em que a figura de Orfeu surge na arte cristã. Num dos casos mais antigos, vê-se Orfeu tocando sua cítara para vários animais selvagens no medalhão central de um teto na catacumba de Domitila; bem posterior a isso, numa cripta do século 4, encontramos Orfeu cercado por seis ovelhas. Boulanger observa que, nessa transposição do motivo inicial, Orfeu vai deixando de ser "o mágico que encantava feras" para ser um "Bom Pastor".
O que Apollinaire desenvolve é essa mescla. Com que intenção, é o que fica bem claro em outro poema, também chamado "Orfeu": "A fatal fêmea do Alcião,/ O Amor, as aladas Sereias,/ Sabem uma mortal canção/ Inumana e cheia de teias./ Que não te encantem tais ruídos,/ Só anjos devem ser ouvidos". A questão é simples: o que interessa a Apollinaire não é adaptar a imagem do encantador de feras à do bom pastor, como se Orfeu fosse mais um dos anúncios da vinda de Cristo. Mas trocar a idéia da sedução pelo canto (atributo de Orfeu), pela idéia de divulgação e conquista pela palavra divina.
O grande problema da tradução é que, para manter a rima, o tradutor fez inversões ou adaptações estranhas. Assim, "vous rongez peu à peu ma vie" vira "roído assim faço-me idas" e estranhamente a medusa que no original tem "chevelures violettes", na tradução está "coberta de lilás plunagem" (!)
Mas vale uma olhada para se conhecer uma esquecida faceta deste poeta de quem poderíamos dizer, parodiando Eduardo Milán: com Apollinaire nunca se sabe, com ele sempre se aprende.
Carlito Azevedo é poeta e autor de "Sob a Noite Física" (Sette Letras).
Folha de São Paulo
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