Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke. Nísia Floresta, O Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural. São Paulo, Ed. Hucitec, 1996, 212 pp.Fraya Frehse
Mestranda do Departamento de Antropologia ¾ USPO que podem ter em comum três jornais femininos ingleses de início do século XVIII, um periódico literário francês de meados do mesmo século, outro jornal, desta vez um pioneiro da incipiente imprensa brasileira de inícios do XIX e a suposta tradução livre, por uma brasileira daquele mesmo momento, de um tratado feminista do século XVIII? Muita coisa. É o que demonstra o instigante trajeto histórico-literário que a educadora-historiadora Maria Lúcia G. Pallares-Burke nos convida a realizar pelos cinco ensaios de seu recém-publicado livro Nísia Floresta, O Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural.
Por um lado, o que une os cinco ensaios-capítulos é a natureza do material neles analisado. Trata-se das "chamadas obras menores", de "segunda grandeza"; textos, portanto, cuja própria denominação deixa intuir uma certa discriminação que os envolve e que se refere não só à sua qualidade literária mas também à sua utilidade em termos propriamente "científicos". A fim de justificar a escolha do seu objeto de pesquisa, a autora faz uma breve incursão pela história das idéias, demonstrando que o preconceito com relação a essas obras é combatido já em inícios do século XVIII. Nesse sentido, nota Pallares-Burke, um historiador francês daquele momento, Ricarol, enfatiza que "tão absurdo quanto escrever uma história natural só citando 'os elefantes, os rinocerontes e as baleias' é escrever a história do espírito humano 'como se a natureza não tivesse feito medrar ao redor de Eurípides, de Sófocles e de Homero... uma multidão de pequenos poetas que viviam frugalmente da charada e do madrigal'" (:10).
Apoiando-se em historiadores dos mais diversos períodos, como Sainte-Beuve (século XIX), Arthur Lovejoy (década de 1930) e, mais recentemente, Robert Darnton, Roger Chartier e Edward Thompson, a autora enfatiza que esses textos são fundamentais tanto pelo imaginário de época que refletem quanto pela influência educacional ¾ sobretudo no período iluminista ¾ que têm sobre o seu público. Entretanto, nem por isso ignora as dificuldades que o material, principalmente aquele produzido no século XVIII, traz consigo, pois que, "sendo em tantos respeitos tão próximo de nós, pode iludir-nos quanto a afinidades de fato inexistentes" (:11).
Por outro lado, o elo entre os ensaios se dá pelo tema de que tratam. Afinal, abordam, a partir de perspectivas distintas, não só espacial- mas também temporalmente, a questão da dinâmica envolvida na circulação e recepção intercultural de idéias, na qual a "imitação" ocupa uma posição de destaque. Nesse sentido, permitem pensar um tema já recorrente do debate intelectual brasileiro e relativo ao dilema "original-cópia", que reaparece constantemente na tentativa, nem sempre bem sucedida, de abarcar a complexidade da dinâmica cultural brasileira e definir o que, afinal de contas, somos, situados que estamos no cruzamento de tantas influências distintas.
Com efeito, o que Maria Lúcia Pallares-Burke busca é fornecer novos matizes para a discussão sobretudo de sociólogos da cultura e historiadores quando, a partir de um diálogo com a antropologia, cunha a noção de "tradução cultural", subjacente a uma idéia de "cultura" comum na teoria antropológica no mínimo desde que pensadores como Clifford Geertz (1989/1973), a partir de um diálogo com a fenomenologia de Paul Ricoeur, preconizaram que, tal como a ação e a história, também a cultura pode ser vista e, portanto, interpretada como "texto"1. Entretanto, como bem indica a autora na Introdução (:13) apoiando-se no estudo de Gísli Pálsson, de 1993, uma certa intuição dessa concepção de "tradução" aparece muito antes, por exemplo, na metáfora utilizada por Malinowski para descrever o seu trabalho de campo sobre The sexual life of savages in North-Western Melanesia (1929): "o aprendizado de uma cultura estrangeira é como o aprendizado de uma língua estrangeira". Evans-Pritchard, por sua vez, é o primeiro a teorizar a respeito da relação entre as dificuldades envolvidas na tradução de textos e aquelas que o antropólogo enfrenta ao buscar compreender outras culturas.
Segundo a autora, a expressão "tradução cultural", própria para caracterizar o trabalho antropológico, aplica-se também ao tema da circulação intercultural de idéias. Afinal, em ambos os casos vivencia-se consciente ¾ ou inconscientemente ¾ a tensão entre a fidelidade almejada e a inteligibilidade possível, o que, portanto, implica o reconhecimento de que toda apropriação é original uma vez que, como bem frisa Marshall Sahlins (1989/1981), a reprodução de uma estrutura carrega em si sua transformação, dada pelas apropriações culturais plurais que as idéias e ações humanas vão sofrendo, inseridas que estão em estruturas de significado submetidas à dinâmica da história.
Chamar atenção para a relação entre a "tradução" consciente que envolve o ofício do antropólogo e o processo inconsciente referente à circulação de idéias permite à autora colocar em relevo os percalços que vivencia o agente da "tradução cultural" de idéias, seja ele o antropólogo num contexto cultural diverso, o tradutor de uma língua estrangeira ou o homem comum na vida cotidiana, ao buscar tornar aquilo que é estrangeiro conhecido. Nesse sentido, igualam-se o estudioso e o seu tema de análise, Maria Lúcia Pallares-Burke e os seus objetos de pesquisa, os editores do Journal Étranger, as editoras de três periódicos feministas europeus do século XVIII, o editor pernambucano de O Carapuceiro e Nísia Floresta, tradutora de um tratado feminista inglês do século XVIII. E o dilema "original-cópia" repentinamente ganha personagens discerníveis a partir de seus produtos literários, sobre os quais a autora lança o seu olhar detetivesco de historiadora da literatura a fim de desvendar alguns detalhes microscópicos e fundamentais envolvidos na apropriação que essas personagens fazem de elementos culturais estrangeiros naquele período.
No primeiro ensaio-capítulo, trata-se de desvendar a estratégia literária do Journal Étranger, periódico mensal de duzentas páginas publicado nos quatro cantos da Europa por editores e correspondentes famosos espalhados por todo aquele continente, entre 1754 e 1762. O trajeto argumentativo da autora, porém, permite-lhe mais do que somente caracterizar a dinâmica editorial do jornal. O que vale sobretudo é elucidar as várias dimensões do conceito de "tradução cultural" através da análise desta enquanto projeto inconsciente dos idealizadores do Journal. Afinal, estes utilizam o conceito de "estrangeiro" ¾ presente no título do periódico que é "étranger" onde quer que seja publicado e aludindo, assim, à relatividade que o termo em si carrega ¾, no intuito de explorar as suas potencialidades educacionais e beneficentes, bem à moda do momento iluminista que vivem.
Tratando de variados assuntos coletados nos mais diferentes lugares do mundo ¾ desde "pesquisas sobre eletricidade e botânica até contos árabes, tragédia chinesa e notícias sobre os lapões" (:28) ¾ o que importa para os editores do Journal é, segundo a autora, negar o caráter pejorativo associado ao termo "estrangeiro" através de um duplo mecanismo: "de um lado, procurar pelo estranho, o não-familiar, o estrangeiro nas próprias produções; e, de outro, procurar pelo familiar, o conhecido nas produções estrangeiras" (:43). A estratégia para tal é a imitação. Como diz Pallares-Burke, "um tema tão central que se é tentado a descrever o Journal Étranger como uma 'Ode à Imitação'. Valorizando sistematicamente o elemento de imitação em qualquer produção cultural, o periódico procurava o 'nós' nos 'outros' e s 'outros' em 'nós'" (:44).
O que a análise da autora ressalta é o recurso à imitação como uma virtude, tão fundamental quanto o contato intercultural, cujo palco de encenação par excellence seria o Journal Étranger. Dessa forma, revela um caráter semântico original para o termo "imitação" e que deve ser levado em conta na reflexão histórica a respeito do tema da circulação de idéias: a categoria aparece não "como impedimento para a originalidade, e a 'boa imitação' era descrita em termos surpreendentemente modernos, como a arte de 'se apropriar' de tudo o que nos possa enriquecer e também como uma 'contínua invenção'" (:44).
Cabe aqui notar que a simples existência dessa acepção positiva do termo "imitação" revela o processo de apropriação cultural sofrido pela palavra ao longo do tempo histórico. Este se deixa intuir pelo estranhamento que sentimos quando, ao lermos a análise de Maria Lúcia Pallares-Burke, somos forçados a reconhecer que o "nosso" uso semântico do termo, que associa o "imitar" a algo negativo e nos parece absoluto, é em si uma transformação original do significado vigente na Europa do século XVIII (como se verá no segundo ensaio) e no Brasil do século XIX (tal como abordado nos dois últimos capítulos do livro).
Tendo mostrado como a "tradução" implica sempre apropriação, a qual se dá, conforme pregam os editores do Journal, mesmo que o objetivo seja "imitar", a autora pode dedicar-se a explicitar, nos próximos três ensaios, a "tradução cultural" que fazem os seus outros objetos de estudo, as editoras européias de periódicos feministas, um padre político brasileiro e a tradutora nordestina de um tratado feminista inglês.
O segundo capítulo e ensaio trata, como o próprio título indica, da "ousadia feminina e ordem burguesa" da Europa de inícios do século XVIII, analisando a "tradução cultural" como processo que se revela nas entrelinhas de três periódicos feministas europeus ¾ um francês, uma inglês e um espanhol ¾ que, apropriando-se do efêmero porém famoso jornal inglês The Spectator (1711-1712), assumiram respectivamente os nomes sugestivos La Spectatrice (1728-1729), Female Spectator (1744-1746) e Pensadora Gaditana (1763-1764). Partindo do pressuposto de que o influente Spectator, que Rousseau chega a recomendar como leitura feminina primordial em seu clássico Emílio ou da educação (1762), divulga o modelo da mulher doméstica cujo domínio é o lar, a autora demonstra, por meio da análise comparativa das proposições educativas dos outros três jornais, que estes, emergindo como "discípulos" do primeiro, acabam por constituir-se em focos de resistência àquele através da apropriação criativa que fazem de seus princípios educacionais.
Aqui, portanto, o conceito em operação. "Tradução cultural" implica necessariamente a construção de novos significados a partir de recombinações insuspeitas de antigos elementos de cultura: no caso específico dos vários espectadores e espectadoras, a transformação do gênero de imprensa cultural a partir do diálogo com aquilo que a autora chama "subcultura feminina" (:16).
Na segunda metade do livro, Maria Lúcia Pallares-Burke volta-se para o contexto brasileiro, a fim de entender a "tradução cultural" que um político e padre pernambucano, Miguel do Sacramento Lopes Gama, faz do mesmo Spectator no "periódico sempre moral, e só per accidens político" que foi O Carapuceiro (1832-47). O intuito específico da autora é, dessa forma, questionar a "abordagem objetiva" vigente na análise que vários estudiosos brasileiros fazem sobretudo de jornais do passado: a concepção, defendida por intelectuais como Gilberto Freyre, de que o discurso jornalístico reflete o contexto social a partir do qual emerge. Seguindo essa mesma linha, Leonardo D. Silva, editor da edição fac-similar d'O Carapuceiro (1983), ressalta que este periódico seria "o mais importante documentário crítico da primeira metade do século XIX no Brasil" (:131).
Centrando seu foco sobretudo na questão da mulher, a autora coteja trechos d'O Carapuceiro com outros do Spectator ¾ que, note-se bem, circulou na Inglaterra mais de um século antes ¾, demonstrando que grande parte das cenas descritas no jornal brasileiro são de fato "empréstimos apresentados aos leitores brasileiros como representações de sua própria realidade e de seus ideais" (:144)2. Com o objetivo de difundir sua própria concepção daquilo que seria moralmente desejável ¾ a passividade feminina frente à sua condição de submissão ¾ e correto do ponto de vista político ¾ o fim da escravidão e a manutenção da monarquia ¾, Lopes Gama faz um bricolage de cenários, personagens e fatos: escravos tornam-se elementos fundamentais quando o tema é a vida familiar; descrições de paisagens inglesas são ornadas com "fragrâncias da terra ¾ alfazema, Macaçá, beijoim" (:154) ¾; situações cotidianas, permeadas por características sociais propriamente locais, como os conflitos intergeracionais, o gosto pela ostentação, tão bem analisado posteriormente por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1936). Assim, o objetivo principal do Spectator ¾ a defesa das mulheres ¾ dilui-se frente à importância que o editor d'O Carapuceiro atribui a temas como a escravidão e a discussão sobre o regime político ideal para o Brasil.
Em seu trajeto analítico, Pallares-Burke desvenda o paradoxo vivido pelo próprio Lopes Gama na momento mesmo da tradução do Spectator. Se, por um lado, o editor se insurge contra "'o nosso gosto de macaquear' idéias estrangeiras, hábitos estrangeiros, modas estrangeiras, línguas estrangeiras, vícios estrangeiros", revelando-se vítima do mal-estar próprio aos intelectuais brasileiros que Roberto Schwarz destaca em seus clássicos ensaios sobre as "idéias fora de lugar"3, por outro, é, ele mesmo, um "macaqueador", que se utiliza do Spectator argumentando que, como bem lembra a autora, "imitar o que os estrangeiros 'têm de bom e proveitoso' é algo que 'sempre será louvável'" (:148). De novo, portanto, a imitação aparece, dessa vez carregada de ambigüidades que, por fim, desencadeiam uma certa equivalência entre o estereótipo da mulher inglesa dos primórdios do século XVIII e o da brasileira da primeira metade do XIX.
No último ensaio do livro, Pallares-Burke deixa de lado a imprensa a fim de dedicar-se a um texto apresentado como a tradução, em 1832, do tratado feminista da inglesa Mary Wollstonecraft, A Vindication of the rights of woman: with structures on political and moral subjects (1792), pela jovem potiguar, radicada em Olinda, Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia Gonçalvez Pinto: Direitos das mulheres e injustiça dos homens.
Partindo da concepção de "tradução cultural", Pallares-Burke mais uma vez abre um espaço analítico para buscar a riqueza das apropriações culturais às quais Nísia, que se autodenomina "tradutora", submete o material bruto sobre o qual se debruça. Novamente, tal como no terceiro ensaio, um cotejamento do texto tomado como objeto de análise com o original ¾ neste caso, o tratado de Wollstonecraft.
Pelas linhas do texto vamos acompanhando os conexões que Pallares-Burke vai construindo a partir das linhas de Nísia e, tal qual a "tradutora da tradutora", somos repentinamente surpreendidos com a revelação: "é (...) com um misto de constrangimento e entusiasmo que devo dizer que, de fato, jamais houve a aclamada tradução para o português da polêmica obra de Mary Wollstonecraft" (:168). Com destreza de detetive a autora migra por vários tratados feministas europeus do período até solucionar o mistério. Nísia "traduziu literalmente e na sua totalidade um livreto de 1739, intitulado Woman not inferior to man, cujo autor ou autora desconhecida se escondia, e ainda se esconde, sob o pseudônimo de Sophia, a Person of Quality" o(a) qual, por sua vez, apropriou-se de trechos do texto ainda mais antigo de François Poulain de la Barre (1673) De l'égalité des deux sexes. Num trocadilho, a síntese: "plágio-tradução de outro plágio" (:178).
Quais as razões que teriam levado a brasileira a mentir a respeito da tradução? A autora elenca alguns motivos: admiração por Mary Wollstonecraft, paralelismos em termos de biografia com relação à autora inglesa, etc. Entretanto, mais importante do que conjecturar a respeito desses aspectos, cuja pertinência ou não, como bem diz Pallares-Burke, nunca teremos como confirmar, é concluir, com a ajuda da autora, a respeito do dilema por que passa o "tradutor cultural" ¾ pressionado entre a busca da fidelidade e a necessidade de inteligibilidade, que é, por definição, cultural -, dessa vez encarnado na figura da suposta tradutora oficial do tratado de Mary Wollstonecraft. Presa nessa tensão, Nísia optou por aquela tradução que mais se ajustava ao seu próprio contexto social, marcado por um patriarcalismo e conservadorismo, visíveis, de alguma forma, no texto de Sophia.
Assim, é através de sua variedade de dados e riqueza analítica que se torna possível para Maria Lúcia Pallares-Burke abordar as vicissitudes envolvidas na transposição de idéias de um contexto sociocultural para outro. Dessa forma, pode contribuir com novos elementos para o debate que antropologia e história vêm travando no Brasil sobre o tema específico da "originalidade da cópia" brasileira dos modelos sobretudo europeus no passado4.
Entretanto, esse é um aspecto que a autora parece ignorar, uma vez que, concebendo a antropologia como disciplina "dedicada a tornar o 'estrangeiro' compreensível a nós', ou seja, a atravessar fronteiras espaciais" (:14), privilegia como interlocutores historiadores, sociólogos e estudiosos da literatura. A meu ver, contudo, se levasse em conta os rumos recentes da antropologia, sua aproximação cada vez mais substancial com a história e, conseqüentemente, o seu esforço de pensar também "fronteiras" temporais, ser-lhe-ia possível ampliar o escopo da discussão que trava no livro sobre a dinâmica cultural envolvida na circulação intercultural de idéias, inserindo novos interlocutores, tal como Marshall Sahlins (1990/1981; 1994/1985), Carlo Ginzburg (1976; 1993/1989) e, no panorama brasileiro, estudos como o de Lilia Schwarcz (1993).
Isso, contudo, não deve desviar a nossa atenção da importância da contribuição de Maria Lúcia Pallares-Burke. Sua estratégia narrativa, que mescla considerações teóricas com a análise do material e reproduções literais dos textos respectivamente cotejados, acaba por garantir ao leitor o acesso tanto quanto possível ¾ dada a distância temporal que nos afasta do período estudado ¾ aos detalhes dos mecanismos de apropriação por que passaram ¾ sobretudo no Brasil, tema da segunda metade do livro ¾ concepções de mundo inglesas.
Dessa forma, de repente as idéias, fortemente marcadas por sua condição de estarem "fora do lugar", ganham um lugar original, que se torna discernível a partir do momento em que acompanhamos personagens como Lopes Gama e Nísia Floresta e reconhecemos que os dilemas vividos por cada um deles individualmente refletem os anseios vividos sobretudo pelas elites do contexto sociocultural específico que é o Brasil daquele momento. Afinal, concentradas em lançar as bases de construção de uma nação, estas oscilam entre a necessidade de "macaquear" e realidade de mal-estar, produzida não só pelo reconhecimento de que se está copiando (como explicita a reflexão de Roberto Schwarcz), mas também e sobretudo porque o imitador, em sua intimidade, reconhece a impossibilidade cultural da reprodução.
Enfim, é precisamente por meio da exploração do viés antropológico intrínseco a todo ato de traduzir que Maria Lúcia Pallares-Burke fornece novos matizes ao clássico paradoxo das "idéias fora do lugar". Matizes esses fundamentais não só para que se defina a dinâmica envolvida na circulação e recepção de idéias de outros lugares, mas também e principalmente, para que se pense os lugares de outras idéias, tão comuns no debate intelectual brasileiro, como é o caso da complexa questão da "identidade nacional"...
Notas
1 Com base em um diálogo com a filosofia hermenêutica de Dilthey e Gadamer, o filósofo Paul Ricoeur (1969) preconiza a importância de um "enxerto hermenêutico na fenomenologia", possível a partir do momento em que se concebe que a hermenêutica não se preste somente à análise de textos escritos, mas também à compreensão da "ação" e da "história". Partindo das características da narrativa textual, "coisa do texto" autônoma ¾ como o dizia Gadamer -, o autor mostra como as suas características se aplicam tanto à ação humana quanto ¾ conseqüentemente ¾ à história: por um lado, porque "l'action humaine est à bien des égard un quasi-texte. Elle est exteriorisée d'une manière comparable à la fixation caractéristique de l'écriture". Por outro lado, porque "certains textes ¾ sinon tous les textes ¾ ont pour référent l'action elle-même" (1986:175). Se tais teses valem para a ação humana, não é diferente na história ¾ da historiografia ¾ que, segundo Ricoeur, é um discurso sobre a ação humana no passado: "suivre une histoire, en effet, c'est comprendre une succession d'actions, de pensées, de sentiments présentant à la fois une certaine direction mais aussi des surprises" (:179). É, entre outros, da influência da fenomenologia ricoeuriana que Clifford Geertz se utiliza para inserir a discussão hermenêutica sobre a compreensão na disciplina antropológica e realizar aquilo que Roberto Cardoso de Oliveira (1988), parodiando Ricoeur, chama de "enxerto (la greffe) hermenêutico na antropologia". Se a ação humana pode ser "lida" ¾ e compreendida ¾ como texto, por que também não a cultura? Eis o que leva Geertz a elaborar a técnica da "descrição densa" e, dessa forma, questionar as condições do conhecimento que se colocam para o sujeito cognoscente na Antropologia: "o etnógrafo 'inscreve' o discurso social: ele o anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente" (1989/1973:29).
2 Não se pode esquecer que a imprensa brasileira só adquire espaço institucional para se desenvolver com a chegada de Dom João VI no Brasil, em 1808, uma vez que até então a Coroa portuguesa proibia veementemente a instalação de instituições de ensino e orgãos de imprensa no país. Nesse novo momento e até meados do século, a influência cultural inglesa foi particularmente marcante, subsidiando a iniciativa de Lopes Gama de tomar um periódico inglês como modelo de referência.
3 Refiro-me aqui aos textos "As idéias fora do lugar" (1992/1976) e "Nacional por subtração" (1997/1987). Neste último, assinala o autor: "desde o século passado exite entre as pessoas educadas do Brasil ¾ que é uma categoria social, mais do que um elogio ¾ o sentimento de viverem entre instituições e idéias que são copiadas do estragneiro e não refletem a realidade local." (1997/1987:38-9)
4 Ver, a esse respeito, entre outros os estudos de Lilia Schwarcz (1993), José Murilo de Carvalho (1997).
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Revista de Antropologia
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