INSTITUTING SCIENCE
Ciências Humanas e Sociais

INSTITUTING SCIENCE


A política da ciência
11/Jul/98
Anna Carolina Regner

TIMOTHY LENOIR
Como entender a ciência hoje? A tradicional pauta filosófica de questões e discussões (realismo/instrumentalismo, internalismo/externalismo, ciência pura/aplicação tecnológica, teoria/experimentação) parece não ser suficiente para dar conta dos traços mais distintivos da ciência, hoje apresentada em termos de "programas de pesquisa" e de "campos (inter)disciplinares", pedindo a consideração de uma complexa rede institucional envolvida na sua produção e sustentação.
Nesse quadro, "Instituting Science" (Instituindo a Ciência), de Timothy Lenoir, coordenador do programa em história e filosofia da ciência da Universidade de Stanford (EUA), vem decisivamente contribuir para o novo conceito de ciência a ser trabalhado.
Instituições, como observa Lenoir, guiam, viabilizam e restringem quase todos os aspectos de nossas vidas. Apesar desse lugar-comum, a originalidade de sua análise da ciência como instituição começa com sua introdução mediante a metáfora do "Metaverse", mundo de realidade virtual criado por Neal Stephenson na novela "Snow Crash". Nos campos científicos, a atividade profissional dá-se num contexto de instituições que se entrelaçam, justapõem, interagem e, algumas vezes, conflitam, impondo suas regras e exigindo dos seus participantes -assim como o "Metaverse" o exige dos usuários dos PCS- a corporificação de determinadas habilidades, de uma dada cultura.
As instituições científicas são vistas como "sites" para a coordenação e corporificação de habilidades, antes que abstrações teóricas desmaterializadas. Quem desconhece seus requisitos, choca-se contra seus muros "invisíveis". Quem os domina, é capaz de evitar suas restrições, inovar dentro de seus parâmetros, explorar suas brechas. O nível de aculturação institucional é testado pelo sucesso ou não em buscar algo novo ou uma nova posição, fora do repertório permitido pelo contexto.
A metodologia e embasamento teórico de Lenoir distinguem sua visão de outros enfoques da ciência como culturalmente produzida. Mediante estudos de caso, explora os processos dinâmicos pelos quais as instituições que constituem e suportam a ciência são formadas, mantidas e tornadas "invisíveis" para os possuidores da cultura requerida.
Como no caso dos fisiologistas e engenheiros das universidades técnicas alemãs do século 19, com seus interesses e luta por reconhecimento acadêmico e social, do desenvolvimento de uma política científica para a sua formação, do exame das relações entre ciência (ótica), arte (pintura) e ideologia na Alemanha de 1845 a 1895, dos desenvolvimentos advindos do estreitamento das relações entre pesquisa científica e interesses da indústria farmacêutica alemã, em 1900, e entre produtores de instrumentos e construtores de disciplinas, no exame feito por Lenoir e Cristophe Lécuyer do caso da ressonância nuclear magnética.
Embora simpático a direções recentes nos chamados "science studies", Lenoir quer "ressuscitar" certos aspectos da investigação da formação das instituições ausentes de tais estudos. Sua abordagem é dupla e mutuamente remissiva: busca caracterizar a ciência enquanto instituição culturalmente construída no contexto social, político, econômico mais amplo e geradora de cultura própria. Não significa ver a ciência como política feita por outros meios, mas reconhecer o papel constitutivo das condições objetivas para o surgimento e sustentação, incluindo os interesses aí envolvidos, mesmo dos campos mais abstratos de investigação.
Expõe sua posição contrapondo-a às de Merton e Ben-David (definição essencialista e "presentista" de ciência), discutindo com Latour e Woolgar (importância dos microestudos), encontrando contribuições em Bourdieu (conceito de "habitus", capital cultural e dinâmica de campo), Peirce e James (idéia de verdade como historicamente situada, realismo pragmático e suas relações com a idéia de comunidade), Husserl (conceito de "mundo da vida"), Foucault (análise das formações discursivas), Ian Hacking (relação teoria-experimento) e Nancy Cartwright (análise dos modelos), entre outros.
Sua análise não descarta, mas redimensiona a pauta de questões e discussões tradicionais em seu teor e relevância. Assim, considera a "história interna" da ciência -usualmente identificada com o "conteúdo da ciência"- um elemento crucial da complexa rede social, política, econômica e técnica de inserção da ciência. Nesse contexto, enfatiza-se uma visão centrada na "prática" que evita os problemas das dicotomias interno/externo e trata a busca do conhecimento por meio de seus critérios imanentes como uma forma de ação social interessada.
Declarações no âmbito da teoria, método e técnicas são também estratégias sociais de poder; mudanças externas à operação do campo específico, no financiamento e desenvolvimento de projetos ou expansão da clientela de alunos, se refletem na sua lógica. Tal visão traz um novo enfoque às relações entre ciência e tecnologia, ciência e indústria, desde o papel que a instrumentação específica e o treino na sua utilização e interpretação passam a exercer na tarefa, antes exclusivamente acadêmica, da formação de disciplinas.
Em suma, sua análise defende a idéia de que o esforço para construir disciplinas é, simultaneamente, um esforço para inscrever estruturas de sustentação de uma cultura. Essa análise continua com novos desdobramentos em seu "Inscribing Science" (Inscrevendo a Ciência, Stanford Press, 1998), que aprofunda temas relacionados à realidade virtual e sua aplicação na área médica.

Anna Carolina K.P. Regner é professora do departamento de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Folha de São Paulo



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