A literatura como lugar de experiência da realidade
Hélio de Seixas Guimarães
HISTÓRIA E LITERATURA, volume de ensaios de Francisco Iglésias organizado por João Antônio de Paula, oferece uma boa introdução às preocupações recorrentes na obra do historiador, apresentando-se como continuidade de outra grande coletânea de seus textos, História e ideologia, publicada pela mesma Editora Perspectiva em 1971. O novo livro, cujo lançamento rememora os dez anos da morte do seu autor, traz um amplo panorama do influxo das teorias e ideias europeias sobre o ambiente brasileiro e analisa o papel dessas ideias em textos clássicos do pensamento social brasileiro.
Formado pela reunião de prefácios, resenhas, artigos, conferências e capítulos de livros publicados de maneira esparsa entre 1973 e 1999, o livro está dividido em dez partes, cada uma delas concentrada em torno de um autor: Joa-quim Nabuco, Alberto Torres, Oliveira Vianna, Caio Prado Júnior, Sérgio Buar-que de Holanda, José Honório Rodrigues, Raymundo Faoro, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, tendo como única exceção o capítulo dedicado ao modernismo, que caracteriza o movimento a partir dos acontecimentos de 1922 e traça seu quadro histórico; mas mesmo este confirma a regra, ao girar em torno de outro pensador do Brasil: Mário de Andrade.
Ao longo dos capítulos, acompanhamos a entrada das ideias da École des Annales, criada por Marc Bloch e Lucien Febvre no final da década de 1920; a assimilação inteligente do marxismo por Caio Prado Júnior, na década de 1930; a presença da moderna ciência social alemã e do pensamento de Max Weber, numa obra como Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e mais tarde também em Os donos do poder, de Raymundo Faoro; a voga da história do cotidiano, da petite histoire, registrada nos escritos da década de 1990.
Ao tratar de várias gerações de historiadores, e também de cientistas sociais e literatos que à sua maneira também praticaram a história, Francisco Iglésias revela suas filiações intelectuais e políticas. Em muitos momentos, ressalta sua adesão ao marxismo e a admiração por Marc Bloch, com suas proposições de abertura da história às outras ciências sociais, como a sociologia, a economia e a antropologia.
No Brasil, essa renovação encontraria eco nas obras de três autores considerados essenciais por Iglésias: Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. No autor da Formação do Brasil contemporâneo, assunto de um dos capítulos mais entusiasmados do livro, Iglésias reconhece "o padrão de inteireza e dignidade". No autor de Casa grande e senzala, admira o uso habilidoso de métodos e materiais pouco convencionais, como diários, correspondências, cadernos de receitas e retratos, dos quais extrai informações inusitadas: "Se sua obra não valesse pelo conteúdo, já valeria pelo método, que lhe confere lugar de pioneirismo na prática da história, não só em perspectiva brasileira, mas até geral". No autor de Raízes do Brasil encontra "o historiador mais culto e de amplo domínio do social", que não teoriza, não faz citações, "exatamente pelo temor de generalizar com idéias abstratas". Com Sérgio Buarque, compartilha o interesse pelos aspectos materiais e práticos da realidade, em detrimento das grandes abstrações, valorizando a "impressão de experiência" no texto historiográfico.
Menos entusiasmado e muito mais crispado é o capítulo dedicado a Raymundo Faoro. Ainda que mencione o culto que rendeu a Os donos do poder desde o primeiro aparecimento do livro, em 1958, Iglésias deixa clara sua insatisfação com duas das principais obras de Faoro. Em Machado de Assis - a pirâmide e o trapézio, enxerga especialmente um enorme conjunto de dados, ao qual faltaria "o sentido de síntese". Com relação a Os donos do poder, o diagnóstico é o oposto: admira a síntese interpretativa, resumida na tese de que o Estado sempre foi onipresente no Brasil, onde o poder sempre pertenceu ao estamento burocrático; mas considera que falta ao livro fundamentação baseada em dados empíricos, que só poderiam ser obtidos por meio do trabalho exaustivo em arquivos.
O desconforto, no entanto, concentra-se nas alterações que Faoro fez para a edição de 1975 de Os donos do poder , com o triplo de páginas da primeira. Identificando no Weber de Economia e sociedade a matriz principal do estudo de Raymundo Faoro ("terá sido o cientista que mais usou o aparelho conceitual weberiano"), Iglésias estranha que na nova edição sejam incluídas muitas citações de Marx e autores marxistas, ausentes na edição de 1958, e que, ainda assim, Faoro afirme que as citações não alteram em nada sua tese inicial, ao que retruca: "Ora, é difícil imaginar que o apelo à grandiosa construção marxista não altere uma análise".
Sempre interessado em explicitar o que caracteriza a atividade do historiador, ainda que sempre a pense em perspectiva multidisciplinar, Iglésias encontra em Faoro, mais uma vez, a "melancólica verificação que já é lugar comum de que a melhor historiografia entre nós não se deve a historiadores, mas a sociólogos, cientistas políticos, economistas".
As observações agudas, às vezes ferinas, são mais frequentes e têm mais pico nos capítulos sobre Alberto Torres e Oliveira Vianna. Neles, o autor recompõe alguns elos importantes do pensamento conservador no Brasil (algo que já havia feito com relação a Jackson de Figueiredo em História e ideologia), explicitando as filiações entre Torres, Vianna e os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Este, o Iseb, foi criado em 1955 com inspiração no Instituto de Estudo dos Problemas Nacionais, idealização de Alberto Torres que nunca saiu do papel, pelo menos nos termos idealizados por ele no livro A organização nacional, de 1914.
Sobre Alberto Torres, diz que "chega a ser monótono, pela fidelidade a si mesmo". Leia-se: fidelidade ao seu conservadorismo. A despeito das divergências, Iglésias sabe reconhecer a importância de cada um dos seus personagens na história da historiografia brasileira. Na obra de Torres, vê considerações lúcidas sobre o desajuste entre instituições, leis e realidade, o que atribui à tentativa de imitar modelos externos. E colhe em suas páginas "uma observação fina, digna de ser lembrada", sobre a pouca influência de Machado de Assis no governo e na política:
Ninguém o ouvia, os políticos não o julgavam hábil, senão para engenhar o entrecho de romance e polir o estilo; na realidade ele era uma finíssima natureza de diplomata e possuía a mais lúcida visão das cousas públicas - verdade que hoje se reconhece, mas na época se negava.
Sobre a obra de Oliveira Vianna, descrita com grande minúcia, faz comentários dignos de Machado de Assis a respeito das ideias raciais nela contidas:
Como é a pior parte de obra vultosa, a mais marcada pelos preconceitos, se não foi concluída ou não for editada talvez não se perca muito - afirmativa que se faz com certa cautela e o devido respeito ao autor, afinal um nome ponderável. É comovente ver tanta dedicação a um assunto, no qual não se saiu bem nunca.
Embora quase sempre apresente em detalhes as obras dos autores que estuda, Iglésias em alguns momentos declara dificuldades com os preconceitos de Vianna e recua diante do escabroso:
A segunda parte - Evolução da Raça - não será comentada, pois haveria mais reservas que apoio a quanto se diz aí. Melhor, portanto, deixá-la de lado. Chega a ser cômico, por exemplo, ler em texto de suposta ciência social algo como: "os negros da tribo [...] têm a fealdade repulsiva dos tipos negros puros".
Ainda assim, consegue enxergar e apreciar em Alberto Torres e Oliveira Vianna uma preocupação legítima e sincera com a alienação do pensamento brasileiro, com a mimetização acrítica das ideias estrangeiras, e reconhece que a falta de correspondência entre ideias e fatos não é exclusividade desta ou daquela posição no espectro ideológico.
Crítico também do campo da esquerda, no qual sempre esteve e militou, Iglésias destaca de A revolução brasileira, livro de Caio Prado Júnior publicado em 1966, uma reflexão e uma autocrítica sobre o desastre, então recente, de 1964:
a política de esquerda no Brasil não se aplica aos fatos reais da nossa história, e não passa, na sua maior e principal parte, de um esquema abstrato, copiado de modelos exóticos artificialmente transplantados para a nossa realidade. E assim sendo, aquela teoria, longe de abrir perspectivas para a luta revolucionária e uma ação fecunda, freqüentemente embaraçou e desorientou esta ação e luta, uma vez que propõe objetivos imaginários e irreais nas condições brasileiras [...] e adota como ponto de apoio forças igualmente fantásticas.
A atenção permanente às posições relativas que os autores analisados ocupam no espectro ideológico está sempre combinada, nos ensaios de Francisco Iglésias, com a recusa muito decidida às rotulações. Isso aflora com mais nitidez no capítulo sobre o modernismo, no qual discute as divisões ideológicas e de classe associadas aos movimentos tenentista e modernista da década de 1920, reagindo à categorização dos modernistas como conservadores, ou de direita, e dos tenentes como populistas e esquerdistas.
Evocando as ideias de Ortega y Gasset sobre as gerações, Iglésias discorda que as afinidades entre os membros de uma geração sejam obrigatoriamente maiores que as afinidades ideológicas entre indivíduos de gerações diferentes, mas concorda com a existência de uma "sensibilidade vital de cada época", o que permitiria detectar nos dois grupos, o dos tenentistas e o dos modernistas, a mesma aspiração de renovar o país, ainda que tivessem orientações e motivações as mais variadas:
Não importa que diferissem no ponto de partida ou de chegada, ou no comportamento, mas sim que atuavam movidos por um desejo que tinha muito de comum e que resultava da sensibilidade da geração. Querer que tenentes e artistas tivessem muitos laços comuns é utópico, uma vez que mesmo entre eles havia diferentes linhas - do radicalismo de uns a certo acomodamento de outros, do vanguardismo de uns à conciliação ou até ao reacionarismo de outros. O certo, como lembrou o mesmo Ortega, é que os homens da mesma geração se parecem muito mais que com os de gerações diferentes. Aí é que se deve colocar o interesse, não na busca de verdades ou rótulos, que não cabem à década de vinte no Brasil, ainda inorgânica, mais inquieta, contestadora e polêmica do que propriamente segura e de ideias e programas claros.
A sensibilidade afirmada nesse trecho e praticada ao longo de todo o livro aflora nos capítulos finais, dedicados ao modernismo, a Drummond e a Pedro Nava, e que justificam plenamente o título do livro. História e literatura, para Iglésias, mantêm relação vital, que vem desde os tempos de juventude, da convivência, em Minas, com Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Sábato Magaldi e Murilo Rubião, e mais tarde, em São Paulo, com Antonio Candido, Lourival Gomes Machado e Paulo Emílio Salles Gomes.
O que se torna explícito nas últimas páginas, entretanto, se insinua desde as primeiras. Ao longo de todo o livro transparece o olhar ao mesmo tempo implacável e sensível do escritor, nas observações sobre o cuidado - e o desleixo - dos diferentes autores com a escrita e também no zelo de Iglésias com o próprio texto, sempre muito claro, livre de adereços, muito franco e direto na expressão de suas ideias, de suas posições e também no que ele entende como suas limitações.
A literatura para Iglésias é o lugar em que a experiência da realidade pode ser apreendida em sua inteireza, algo que só poderia ser obtido de maneira imperfeita pelos cientistas sociais e pelos historiadores. Apoiando-se na Poética de Aristóteles, reafirma no capítulo "História, política e mineiridade em Drummond" a capacidade da poesia de apreender o real em sua totalidade, enquanto a história ficaria presa às particularidades e à erudição. Em alguns momentos, há certa idealização da literatura, que para o historiador parece guardar o encanto e a pureza do caminho não escolhido naquele momento da juventude em que a estrada bifurca, permanecendo em algum nível preservada das contingências do mundo e das ideologias, que atravessam tudo o mais.
É notável a equação amorosa que arma entre literatura e história, ao afirmar que o poema "Cidadezinha qualquer", de Drummond, "vale um compêndio de ciência social", e que os flagrantes de "Estampas de Vila Rica" contêm "uma apreensão do cotidiano, produtora de quadros perfeitos, na linha de certo ideal da história do cotidiano da mais moderna historiografia". E é num verso de Drummond que Francisco Iglésias finalmente encontrará a síntese literária de sua visão da história, feita de sofrimento, frustrações e da derrota daqueles de sempre: "Toda história é remorso".
Hélio de Seixas Guimarães é professor doutor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), onde coordena a graduação na área de Literatura Brasileira. É autor de Os leitores de Machado de Assis - o romance machadiano e o público de literatura no século 19 (Nankin/Edusp, 2004). @ -
[email protected]Revista Estudos Avançados
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