Gaveta dos guardados
09/Mai/98
Iberê Camargo
LITERATURA; IBERÊ CAMARGO /ARTISTA PLÁSTICO/ GAVETA DOS GUARDADOS
A memória é a gaveta dos guardados. Nós somos o que somos, não o que virtualmente seríamos capazes de ser.
Minha bagagem são os meus sonhos. Fui o poeta das ruas, das vielas silenciosas do Rio, antes que se tornasse uma cidade assolada pela violência. Sempre fui ligado à terra, ao meu pátio.
No Rio Grande do Sul estou no colo da mãe. Creio que minha fase atual, neste momento, em 1993, reflete a eterna solidão do homem.
A obra só se completa e vive quando expressa. Nos meus quadros, o ontem se faz presente no agora. Lanço-me na pintura e na vida por inteiro, como um mergulhador na água. A arte é também história. E expressa a nossa humanidade. A arte é intemporal, embora guarde a fisionomia de cada época. Conheci em Paris um escultor brasileiro, bolsista, que não frequentava museus para não perder a personalidade, esquecendo que só se perde o que se tem.
Cada artista tem seu tempo de criação. É difícil saber quando começa a gravidez e quando se dá o parto. Há pintores que são permanentemente prenhes, parindo ninhadas, como era o caso de Picasso. Eu, antes de iniciar a viagem -o quadro-, consulto minha bússola interior e traço o rumo. Mas, quando estou no mar grosso, sempre sopra um vento forte que me desvia da rota preestabelecida e me leva a descobrir o novo quadro. Todo criador é um Pedro Álvares Cabral. A lenda chinesa ensina que a espontaneidade -Tchuang-tseu desenhou um siri num abrir e fechar de olhos- exigiu de Tchuang-tseu anos e anos de aprendizado e observação da natureza, que, como se sabe, é a fonte do conhecimento. O exemplo do mestre chinês foi há muito esquecido pelas gerações. Hoje, predomina a pressa...
VIVER é andar, é descobrir, é conhecer. No meu andarilhar de pintor, fixo a imagem que se me apresenta no agora e retorno às coisas que adormeceram na memória, que devem estar escondidas no pátio da infância. Gostaria de ser criança outra vez para resgatá-las com as mãos. Talvez tenha sido o que fiz, pintando-as. As coisas estão enterradas no fundo do rio da vida. Na maturidade, no ocaso, elas se desprendem e sobem à tona, como bolhas de ar. Como se vê, a criação se faz com o agora e com o tempo que recua. O pintor cria imagens para expressar seus sentimentos. Estes podem ser do real ou formas abstratas, pouco importa. Creio que sua criação e duração na obra do artista são determinadas pelo subconsciente.
A memória é a gaveta dos guardados, repito para sublinhar. O clima dos meus quadros vem da solidão da campanha, do campo, onde fui guri e adolescente. Na velhice perde-se a nitidez da visão e se aguça a do espírito.
A memória pertence ao passado. É um registro. Sempre que a evocamos, se faz presente, mas permanece intocável, como um sonho. A percepção do real tem a concreteza, a realidade física, tangível. Mas como os instantes se sucedem feito os tique-taques do relógio, eles vão se transformando em passado, em memória, e isso é tão inaferrável como um instante nos confins do tempo.
Escrever pode ser, ou é, a necessidade de tocar a realidade que é a única segurança de nosso estar no mundo -o existir. É difícil, senão impossível, precisar quando as coisas começam dentro de nós.
Em verdade, não sou um admirador das coisas que faço. Não sou uma pessoa extasiada com seu fazer, como se eu merecesse um pedestal. Essa decantação da forma em muitas águas, tanto nas palavras como nas linhas, na pintura, é uma depuração, uma síntese que leva ao que eu chamo uma "transfiguração" situada além da aparência. Importante é encontrar a magia que existe nas coisas, na vida. Do contrário, seria apenas um testemunho visual de um fenômeno ao alcance de qualquer um.
Não há um ideal de uma beleza, mas o ideal de uma verdade pungente e sofrida que é minha vida, e tua vida, é nossa vida, nesse caminhar no mundo.
Sou impiedoso e crítico com minha obra. Não há espaço para alegria. Acho que toda grande obra tem raízes no sofrimento. A minha nasce da dor. Das minhas raras alegrias, uma me vem à mente: criança, aguardo ansioso a chegada do trem que traz a Bua (1).
Entendo que a vida é uma caminhada. Os ciclistas de meus quadros são caminhantes, no fundo, sem meta. São seres desnorteados. No andar do tempo, vão ficando as lembranças; os guardados vão se acomodando em nossas gavetas interiores. Como temos cicatrizes! A vida foi causando essas feridas que nos acompanham até o fim. Nós somos como as tartarugas, carregamos a casa. Essa casa são as lembranças. Nós não poderíamos testemunhar o hoje se não tivéssemos por dentro o ontem, porque seríamos uns tolos a olhar as coisas como recém-nascidos, como sacos vazios. Nós só podemos ver as coisas com clareza e nitidez porque temos um passado. E o passado se coloca para ajudar a ver e compreender o momento que estamos vivendo.
O momento é cheio de uma totalidade. Somos alguém envolvido pelas coisas, envolvido pela água, envolvido pelo vento, pelos componentes físicos. O que me prende não é a nomenclatura dos elementos, mas o próprio envolvimento. As coisas são assim: encontramos a última palavra, elas se acabam. Quando eu quero me ver livre, expressar tudo que tenho dentro de mim, lanço o quadro e aparece a imagem. Mas a imagem continua sendo um enigma outra vez. Pensamos que tudo apareceu revelado, e de fato revelou-se. Mas também não se revelou: está visível, mas continua o enigma. Eu apenas objetivei em forma o enigma que estava dentro. A interrogação continua. E a resposta não foi dada.
A vida dói... Para mim o tempo de fazer perguntas passou. Penso numa grande tela que se abre, que se me oferece intocada, virgem. A matéria também sonha. Procuro a alma das coisas. Nos meus quadros o ontem se faz presente no agora. A criação é um desdobramento contínuo, em uníssono com a vida. O auto-retrato do pintor é pergunta que ele faz a si mesmo, e a resposta também é interrogação. A verdade da obra de arte é a expressão que ela nos transmite. Nada mais do que isso!
Porto Alegre, 1993 e 1994.
Nota
1. Apelido de Juliana Burn, ama-de-leite do pintor.
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