Antropologia, Voto e Representação Política
Ciências Humanas e Sociais

Antropologia, Voto e Representação Política



PALMEIRA, Moacir e GOLDMAN, Marcio (orgs.). 1996. Antropologia, Voto e Representação Política. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria. 240 pp.

Claudia Fonseca
Profª de Antropologia, UFRGS


São muitos os motivos pelos quais o livro Antropologia, Voto e Representação Política organizado por Moacir Palmeira e Marcio Goldman é bem-vindo à cena acadêmica nacional. Gostaria de apresentar três. Em primeiro lugar, traz uma perspectiva inovadora para uma discussão minada de clichês, repetições e retórica: a da cidadania. Justamente por não ceder à tentação de modismos (a palavra "cidadania" mal aparece no texto) essa coletânea garante um trabalho original e consistente. Nela, os comportamentos políticos são vistos como parte integrante de processos envolvendo as mais diversas dimensões da vida social - representações "nativas", faccionalismos, vida comunitária, família e redes sociais, imprensa, identidade étnica, festividades, biografias, estruturas de mediação e cultura parlamentar. Apesar da diversidade de enfoques, há uma coerência na proposta dos diferentes autores, todos pensando a questão da participação política a partir do estudo de populações inseridas em contextos específicos - dos camponeses gaúchos e teuto-brasileiros catarinenses aos moradores da Zona Sul carioca e sitiantes nordestinos.

O segundo ponto forte desse livro, visto da perspectiva do campo antropológico, é que traz à tona uma área que nossa literatura deixa freqüentemente em segundo plano: a antropologia política. Trata-se daquele "estrutural-funcionalismo" britânico, tão afeito a assuntos políticos, que parece subestimado especialmente nos nossos cursos de graduação. Associando a tendência brasileira para o pensamento intelectual francês com dificuldades com a língua inglesa, os alunos pouco sabem dos Firth, Fortes e Gluckmans da vida. No livro de Palmeira e Goldman, temos um resgate criativo dessa tradição, enriquecida pela interlocução com o campo intelectual brasileiro e atualizada para se adequar ao estudo de nossa realidade.

Em terceiro lugar, o livro é uma lição viva da complementaridade entre teoria e pesquisas empíricas. Os três primeiros artigos do volume anunciam as bases teóricas da discussão. Goldman e Palmeira, sobrevoando - de Maine a Bourdieu - os estudos antropológicos de sistemas e processos políticos, alinhavam em poucos parágrafos as etapas históricas de nossa disciplina. No segundo artigo, Goldman e Sant'Anna propõem uma pauta para a investigação do voto em sua densidade de escolha individual e de agenciamento coletivo. Para tanto, dirigem suas atenções para o campo de estudos da política local no Brasil, procurando construir um objeto de análise que incorpore as lições do passado. Retomando pontos da apresentação, recomendam evitar tendências pouco produtivas ou já gastas, tais como: a definição do "político" que se limita às políticas institucional e partidária; o parti pris que identifica determinados processos políticos em termos de "positivo ou negativo"; a ênfase em aspectos puramente ideológicos da política em detrimento do estudo dos mecanismos que os sustentam; e a confiança superdimensionada em perspectivas macroscópicas. Propõem, em vez disso, uma ampliação do campo de análise que estende o "político" a uma multiplicidade de áreas de comportamento; uma reintrodução de dimensões sociológicas que leve em consideração as relações pessoais e as posições sociais dos sujeitos (dos eleitores, assim como dos candidatos, e cabos eleitorais); e, finalmente, a desnaturalização de noções tais como "voto", "eleição" e "democracia", a fim de ressaltar a dinâmica de processos que divergem de modelos "ideais".

Moacir Palmeira retoma com "Política, Facções e Voto" a crítica aos modelos teóricos tradicionais (mandonismo, faccionalismo etc.) na análise da política local no Brasil. Por apresentarem uma imagem fixa dos blocos políticos, esses modelos não explicam as freqüentes infidelidades partidárias e a mobilidade interpartidária. Pensando nos recortes sociais do tempo, Palmeira destaca que o período eleitoral só pode ser compreendido levando-se em consideração os rearranjos de compromissos que foram se delineando no período entre as eleições. Não basta conhecer as lealdades familiares e vinculações partidárias para entender o processo eleitoral. É preciso levar em consideração as esferas de sociabilidade regidas pelo compromisso pessoal, pois é através dos múltiplos fluxos de trocas - presentes, favores, ajudas -, dentro e fora do "tempo da política", que se trava o processo de adesão. Afinal, o voto não deve ser pensado, necessariamente, em termos de uma escolha, uma decisão individual tomada conforme os atributos dos candidatos ou partidos, mas antes como adesão - um processo que vai comprometendo o indivíduo, a família, ou outra unidade social significativa, ao longo do tempo.

Nos capítulos subseqüentes, a pauta de investigação é viabilizada em pesquisas empíricas por doutores, mestres e bacharéis ligados à equipe do PPGAS-MN. Um conjunto de artigos trata de regiões rurais e urbanas do Nordeste, alvo clássico dos debates sobre mandonismo. Retomando a idéia do "tempo da política", Beatriz Heredia, em "Política, Família, Comunidade", apresenta sua experiência com colonos gaúchos e sitiantes pernambucanos para pensar como o período eleitoral afeta as comunidades interioranas, modificando as relações interpessoais. Lembrando que, dentro da família, cabe ao homem a intermediação com o mundo público, destaca o lugar central do pai na definição dos votos dos demais membros da família. Procura entender também as motivações do voto, reportando-se a noções nativas de ajuda, compromisso e dívida, especialmente quando acionadas nas relações com pessoas de fora da comunidade. Nota-se, nesse contexto, uma certa "exterioridade" da política partidária: a comunidade resiste em lançar candidatos próprios, justamente por medo de introduzir relações de desigualdade (clientelismo) entre iguais (da comunidade). Em "O Bar de Tita: Política e Redes Sociais", Claudia Guebel leva o leitor a um palco urbano no interior nordestino onde examina a prática cotidiana de uma coordenadora de campanha do Sindicato dos Trabalhadores Rurais durante as eleições estaduais e nacionais de 1990. Comparando as diferentes esferas de sociabilidade - trabalho, família, política e lazer - procura entender o jogo de cruzamentos e evitamentos nas relações pessoais para inferir como as fronteiras do espaço social modificam-se durante o "tempo da política". Mediante uma leitura particular do Diário de Pernambuco, Marco Antônio Bonelli examina a dimensão simbólica do processo eleitoral no artigo "O Retrato da Política: Cobertura Jornalística e Eleições". Ali, comícios e caminhadas são diferentes meios de celebrar vínculos sociopolíticos e eventos emblemáticos de uma verdadeira "festa política". Há campanha de rua, visitas em casa por cabos eleitorais, cartazes, pichações, distribuição de camisetas, tudo aproveitando laços de vizinhança, parentesco e afinidades pessoais para conquistar as primeiras adesões. Mas, indo além, o autor toma o jornal como interlocutor - ator social que constrói a realidade política que descreve. Na análise de estilo e conteúdo semântico da cobertura de campanha verificam-se alguns processos que personalizam a política, mostrando como assuntos locais e a imagem pessoal do candidato são, nesse âmbito, fundamentais.

Saímos do sertão e entramos na metrópole - eleições municipais no Rio de Janeiro de 1992, com Karina Kuschnir e Gabriela Scotto. Em "Campanha de Rua, Candidatos e Biografias", Scotto centra-se na idéia da política enquanto campo entrecruzado por relações personalizadas - um campo em que um aperto de mão, um abraço ou um beijo passam a ter uma conotação política em termos de proximidade, distância, hierarquia, popularidade e disputa. Procura identificar nos panfletos da campanha os elementos que melhor contribuem para o reconhecimento do candidato, concluindo que "não há proposta sem candidato, não há candidato sem rosto e uma biografia" (:177). Por outro lado, o processo eleitoral que resgata o candidato do anonimato produz um efeito semelhante no eleitor: ao saudar seu candidato, ao comunicar seus problemas, o eleitor deixa de ser um cidadão anônimo e se converte, também ele, em uma pessoa com história e relações. Em "Cultura e Representação Política no Rio de Janeiro", Kuschnir procura entender os múltiplos planos da cultura que motivam o voto, mostrando que o indivíduo situa sua "escolha" dentro de um leque de opções, um campo de possibilidades: "Podem estar em jogo, não só o bairro e o time de futebol, como a religião e o conselho do sogro" (:199). Para testar essa hipótese, a autora compara o perfil de determinados candidatos com os votos recebidos conforme as diferentes zonas eleitorais, criando três tipos de comportamento eleitoral. Um primeiro, em que há votação concentrada em uma só zona, corresponde aos candidatos que sublinham sua presença na própria comunidade (construção de obras, participação em movimentos do bairro etc.) e apresentam-se como quem entende os problemas daquela população. Em um segundo tipo, vê-se a votação espalhada uniformemente por todas as zonas; trata-se, nesse caso, de candidatos defensores de determinadas categorias profissionais (bancários etc.), étnicas ou religiosas. O terceiro tipo, denominado "o voto ideológico", diz respeito a candidatos que receberam votos principalmente na Zona Sul, que falam genericamente em "cidade", e apelam para noções abstratas tais como "ética", "cidadania" e "trabalho". Nesse artigo vemos claramente uma adesão ao princípio expresso pelos organizadores da coletânea: "sociologizar" as teorias de comportamento eleitoral, indo além de uma "mera contextualização" das ações individuais para explorar como as estruturas sociais e simbólicas perpassam as diferentes unidades sociais, incutindo-lhes significado.

Com seu artigo sobre "Decoro Parlamentar: Esfera Privada e Domínio Público", Carla Teixeira nos traz para a política nacional. Ao examinar os processos de perda de mandato dos deputados Ibsen Pinheiro e Ricardo Fiuza (1993-94), mostra não somente a grande importância da imprensa na definição de culpa e responsabilidade, mas também certas particularidades no tratamento dado aos casos. Enquanto Pinheiro - que durante sua defesa manteve uma atitude reservada, dando, com sua linguagem impessoal, "um tratamento institucional de si mesmo" (:222) - resguardou sua vida privada e ateve-se a questões legais, Fiuza, por seu lado, assumindo que "aos homens públicos não é dado o direito de ter vida privada", jogou-se em uma defesa marcada pelo apelo pessoal. Em vez de optar pelos valores do universo jurídico, apostou na fórmula decoro=honra... e ganhou. Assim, paradoxalmente, a CPI que, ao condenar o lucro pessoal obtido no exercício de cargos públicos, parecia afirmar a separação entre as esferas pública e privada, acabou transmitindo um recado quase oposto ao associar decoro parlamentar à honra pessoal do político.

O objetivo de Christine A. Chaves, em "Eleições em Buritis: A Pessoa Política", é repensar a noção de pessoa, na sua complexidade significativa, como categoria nativa. A autora sugere, em seu artigo, que boa parte dos formuladores teóricos brasileiros, em razão de uma profunda identificação com os valores da modernidade, têm tratado a pessoa como um "indivíduo despido de interioridade" (:154), e procura, a partir de suas observações sobre a política local em Buritis (interior de Minas Gerais), restituir a especificidade local do termo. No Brasil, apesar de manifestar-se em todas as relações sociais, a hierarquia não é um valor socialmente reconhecido. A noção de pessoa, além de referir-se a um universo hierárquico, também remete-se a uma igualdade moral calcada na cosmologia cristã e católica. Essa igualdade não se traduz em termos sociológicos (não se coloca como reivindicação consciente no plano das relações sociais), mas sim como aspiração a ser reconhecida enquanto igual no plano humanista. (A importância da festa no plano político explica-se, justamente, por ela ser palco de encenação da intimidade e da igualdade entre político e eleitor, tanto quanto de renovação da hierarquia.) Chaves, em vez de pensar em termos de "um código duplo", expresso pela oposição teórica entre indivíduo e pessoa, reconhece os paradoxos inerentes à pessoa brasileira que encerra uma noção de igualdade que é permanentemente dependente das relações.

Finalmente, em "Pluralismo, Etnia e Representação Política", Giralda Seyferth recua na história para estudar a participação política e, em particular, a mobilização de lideranças teuto-brasileiras, na virada do século, entre imigrantes alemães no sul do Brasil. Verifica como, em 1883, quando a colônia de Blumenau foi politicamente emancipada, menos de 20% de seus residentes tinham direito a voto - apesar de uma taxa relativamente alta de alfabetização. A exigência de falar (bem) a língua portuguesa eliminava boa parte dos imigrantes e seus descendentes que, frontalmente, se opondo à política assimilacionista do governo, abraçavam uma noção pluralista de cidadania. Consideravam-se parte do Estado brasileiro, ao mesmo tempo que mantinham sua identidade com a nação alemã. O contexto de então, limitado principalmente a eleitores luso-brasileiros, fez com que comerciantes, pequenos industriais e outras lideranças locais fossem "atropelados" por intrusos que usavam uma retórica nacionalista considerada xenófoba - situação que durou até as eleições municipais de 1903. Em um comentário às ideologias racistas da época, Seyferth sublinha um fato irônico: tanto os assimilacionistas que pleiteavam a miscigenação a fim de branquear a população, quanto os pluralistas que, rejeitando intercasamentos, procuravam resguardar sua germanidade pressupunham uma crença na desigualdade das raças humanas. Os debates sobre as diferentes formas de nacionalismo simplesmente opunham um racismo contra outro.

Assim, olhando voto e eleições através de diferentes filtros - classe, etnia, família, vizinhança - e, considerando tanto os discursos como os processos e relações que subjazem a esses discursos, os autores acabam alcançando seu objetivo, fazendo do voto um tipo de fato social total que revela as especificidades simbólicas e sociais do contexto político brasileiro.

Revista MANA



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