Doces-de-sinhá e doces-de-rua
Leila Mazan Algranti
Como o produto que lhe confere o título, "Açúcar" é um livro que agrada aos mais variados paladares. Atrai tanto os sociólogos, etnólogos, historiadores da cultura e folcloristas, pelas análises e informações detalhadas sobre as raízes longínquas de nossa doçaria, quanto o leitor menos especializado que procure uma boa receita de doce, atraído pela curiosidade de desvendar os segredos de alguma sobremesa de todo dia, como arroz-doce, goiabada ou cocada.
Publicado pela primeira vez em 1939, reeditado em 1968 e 1986, a edição que acaba de chegar às livrarias é acompanhada de dois estudos (o prefácio à terceira edição e uma introdução), ambos de Gilberto Freyre, e também de vários anexos interessantes. A maior parte da obra, entretanto, é composta por receitas que agradam ao paladar, mas que se comem também com os olhos, com o olfato, pois, como diz o autor, "a receita de doce é quase que só arte", o que lhe confere "constante mocidade".
O objetivo do livro é recuperar essa arte simbólica mediante receitas do período patriarcal, originárias das cozinhas das casas-grandes do Nordeste, da fase de esplendor da cultura açucareira. Agrupadas em três capítulos -"Alguns Bolos", "Alguns Doces" e "Alguns Sorvetes"- encontram-se variadíssimas receitas, resultado exótico da feliz combinação do açúcar com frutos tropicais, mandioca e especiarias.
A alimentação é um tema vasto, e a sua história e sociologia no Brasil não têm sido exploradas com a atenção que merecem. É certo que não faltam ótimos e múltiplos livros de receitas; refiro-me não apenas a elas, mas às práticas antigas, à forma de preparar e decorar os doces, aos utensílios utilizados e à própria geografia e usos do açúcar, questões que são discutidas em "Açúcar". Talvez um dos méritos do livro de Gilberto Freyre seja empreender, segundo suas próprias palavras, uma "sociologia do açúcar", apresentando ao leitor os doces que saem de moda ou permanecem, as preferências infantis e adultas, o doce de rua e de confeitaria, a arte das quituteiras negras e das sinhás brancas, sempre assinalando seu objeto de estudo como elemento de uma cultura específica: a cultura do açúcar.
O leitor encontrará no livro, além de apetitosas receitas, outros pratos para saborear, como a escrita impecável de Gilberto Freyre, repleta de metáforas e frases únicas que só sua sensibilidade soube eternizar, ou então certos conceitos criados às pressas, movido como ele era pela constante necessidade de definir algo que observava e sentia, mas para o qual não encontrava palavras exatas para exprimir. Por exemplo, "simbiose eurotropical", termo utilizado para definir o estágio final de adaptação atingido por alguns doces meio-portugueses, meio-brasileiros, temperados com pitadas da cozinha africana, indígena e portuguesa.
Não falta tampouco ao livro o ar familiar da obra mais vasta de Freyre, como as generalizações, a imprecisão temporal -uma vez que não é possível afirmar se se trata de receita do século 16 ou 18-, o vaivém nos assuntos, e seu modo de dizer as coisas mais complexas e sofisticadas como se estivesse brincando com as palavras. Enfim, muitas das genialidades e qualidades -e alguns dos defeitos- de sua obra, tantas vezes assinalados por comentadores criteriosos, podem ser observados nos dois ensaios introdutórios.
Por outro lado, nota-se também que o modelo analítico de "Casa-Grande & Senzala" foi transposto para "Açúcar". Poucos anos separam as duas obras, e muitas das idéias e explicações que sustentaram a famosa análise sobre a origem, o desenvolvimento e a decadência do patriarcalismo encontram-se reproduzidas neste livro, no contexto da alimentação brasileira. O binômio "casa grande e senzala", por exemplo, transforma-se em "doces-de-sinhá e doces-de-rua" (estes feitos pelas negras quituteiras). A escravidão continua amalgamando os costumes e acentuando nossos traços culturais, pois, para Gilberto Freyre, ela explica inclusive a arte brasileira do doce (trabalhosa, minuciosa), receitas no seu dizer quase impossíveis para os dias de hoje (1937!), dada a trabalheira e o fator econômico, pois são muito dispendiosas. Por outro lado, assim como procedeu em relação às raças, que para ele acabaram se fundindo numa democracia racial na América portuguesa, também os doces deste lado do Atlântico abandonaram suas origens aristocráticas e populares para se fundir simplesmente em "doces".
A modernização e a transição do mundo rural para o mundo urbano, que levaram à decadência do patriarcalismo, também afetaram a confecção dos doces, e o doce de rapadura e de melado dos engenhos acabou dando lugar, com o tempo, ao biscoito de fábrica e ao doce de padaria, o que leva o autor a sugerir que, se não é possível frear a industrialização, que pelo menos se industrializem os doces regionais do Nordeste. No auge do entusiasmo, não resiste e chega mesmo a citar certas passagens presentes em sua primeira obra, lembrando as habilidades das freiras portuguesas e brasileiras como exímias doceiras.
Por fim, ao considerar o doce brasileiro excessivamente doce, explica que o paladar é condicionado à cultura, e o nosso, predisposto a abusar do doce, herança moura que os portugueses trouxeram para a América, o que lembra certamente sua explicação da facilidade com que os portugueses se misturavam com as índias e com as negras, pelo gosto das mulheres de pele escura, as "mouras encantadas". Ou seja, no esquema analítico de Gilberto Freyre tudo nos trópicos é levado ao exagero: a sexualidade, a natureza, a aventura e, no caso deste livro, até mesmo o uso do açúcar. Seu olhar sobre o Brasil a partir do Nordeste também não poderia estar ausente. Assim, embora essa tradição cultural do açúcar não seja específica do Nordeste, é ali que ela se acentua. A cozinha de Pernambuco, para o autor, tem o equilíbrio quase perfeito das nossas três tradições (européia, indígena e africana). É também lá que melhor se resistiu à influência dos doces franceses e italianos.
Portanto, como se vê, a originalidade do livro fica por conta das receitas, da cuidadosa coleta de dados, e do valor desse material empírico oferecido ao estudioso da vida material, dos costumes e do cotidiano do Nordeste.
Ainda como em "Casa Grande", Gilberto Freyre inova em muitos sentidos. Primeiramente, ao abordar as técnicas de fazer doce e de enfeitar os tabuleiros, destacando a importância do aparato material e o caráter lúdico dos doces. Depois, ao apontar os usos dos doces e ao procurar fazer uma análise do ponto de vista pictórico, sociológico. E, por último, nas fontes utilizadas. Se no conjunto sua obra é um manancial inesgotável de referências para novos estudos, esta breve compilação de receitas abre um sem-número de possibilidades para análises históricas e antropológicas. Sempre apontando para novas fontes, a introdução de 1939 já chama a atenção para dois livros raros de receitas portuguesas e semelhantes ao que publica: "A Arte de Cozinha", de Domingos Rodrigues, de 1692, e o "Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria", datado do século 14, ambos recentemente também reeditados em Portugal, sinal de que o assunto, como diz Freyre, é eternamente jovem, moderno e continua a atrair os leitores ao longo dos anos, até mesmo dos séculos. Este o segredo de "Açúcar", depois de 50 anos, um livro inovador e extremamente instigante. Vale a pena lê-lo, pois se trata de um passeio pelo que há de melhor na doçaria e nos costumes da região Nordeste, tudo temperado com a arte e o sabor do estilo de Gilberto Freyre.
Leila Mezan Algranti é professora do departamento de história da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de "Honradas e Devotas - Mulheres da Colônia" (José Olympio-Editora da Universidade de Brasília).
Folha de São Paulo
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